Não se pode deixar de comparar a presidência de Donald Trump com a de Joe Biden. É isso que as duas américas têm feito por estes dias – a dos seguidores do slogan MAGA, “Make America Great Again” (fazer a America grande outra vez), e a dos defensores do modelo “Lead by Example - Again” (liderar pelo exemplo – outra vez). Seja qual for a leitura, já se tornou evidente que Biden, embora use o velho mantra do pós-II Guerra Mundial, tem outras ideias; os Estados Unidos não vão voltar à política imperial de décadas passadas. Talvez o modelo FDR (de Franklin D. Roosevelt), o 32.º Presidente, que em 1933 tirou o país da Grande Depressão, seja o mais apropriado para aquilo a que o 46.º se propõe.
Trump, ao reorientar 180 graus a postura internacional que os Estados Unidos seguiam desde 1945 e os objectivos nacionais postulados desde 1933 (com a excepção de Reagan, 1981-89), provocou um verdadeiro terramoto interno e um tsunami no mundo. Não vale a pena estar aqui a relembrar todas as acções e posturas de Trump, relatadas diariamente, para consternação de uns e alegria de outros. Basicamente, retirou o país do seu papel paternalista na cena internacional, abandonando aliados e tratados, ao mesmo tempo que namorou desavergonhadamente os inimigos tradicionais – China, Rússia e Coreia do Norte – para fazer “bons negócios”. A presença norte-americana na NATO era um “bad deal”; o Acordo Climático de Paris era um “deal” pior ainda. O Acordo Ásia Pacífico não interessava para nada – deixou a China a liderar os 15 países que o assinaram em Novembro de 2020. Quanto à invasão russa do sul da Ucrânia, não só não fez nada como continuou a considerar Putin um grande amigo. A lista dos realinhamentos é longa e os resultados práticos, os tais “good deals”, nunca se materializaram.
No plano interno, a Administração Trump desmontou todos os sistemas, regulamentos e leis de protecção do ambiente, tentou desfazer o incipiente seguro social chamado Obamacare, procurou reanimar as indústrias do carvão e do petróleo e perseguiu de todas as formas possíveis – inclusive criando campos que várias vozes chamaram de concentração – a imigração da América Central. Reduziu os impostos das grandes empresas e dos “ricos”, de 35% para 15% (em termos gerais – os regulamentos são mais específicos quanto aos vários níveis de rendimento). Na área política, nomeou dezenas de juízes ultraconservadores, inclusive dois para o Supremo Tribunal, tratou melhor os estados republicanos e pior os democratas, e apoiou os movimentos supremacistas brancos.
Mas o denominador comum destas políticas é que Trump radicalizou o país de uma forma que mesmo os mais optimistas acham que não terá conserto nesta geração. Tornou-se naquilo que alguns comentadores chamam de “Os Estados Desunidos da América”, uma nação dividida pelo racismo, pela pobreza e por valores conflitantes.
Como pano de fundo deste caos, surgiu a pandemia do Covid-19, com o seu rasto de desemprego, pobreza e exclusão social, tudo – a peste e as consequências – minimizado por um presidente que só pensava em termos da sua pessoa e do seu partido.
Foi este o país que Biden recebeu. Daí a primeira comparação com Roosevelt, que foi eleito no auge da Grande Depressão, quando todas as políticas pareciam ser mais problemas do que soluções.
Inicialmente, isto é, durante a campanha eleitoral, Biden não foi o candidato preferencial dos democratas. Estava velho, muito conotado com Administração Obama, ou seja, com um passado que Trump se tinha encarregado de pintar como um “pântano” de interesses divorciados das necessidades dos trabalhadores e era um moderado, numa época em que a moderação era vista como fraqueza. Foi escolhido pela convenção democrata por compromisso com a ala mais à esquerda (protagonizada por Bernie Sanders e Elizabeth Warren) e sem levantar grande entusiasmo. Era preciso derrotar Trump e ele era o único que talvez conseguisse cavalgar as bases radicalizadas por anos de retórica bélica.
Afinal, acabou por ganhar por uma margem muito confortável – vitória ainda hoje não reconhecida por 40% dos republicanos, mas isso é outra história.
A segunda comparação com Roosevelt vem do modo expedito e firme com que Biden enfrentou a situação do país, logo a partir do primeiro dia, revertendo as ordens executivas de Trump até onde os seus poderes lhe permitem, e preparando legislação para o Congresso mudar os rumos do país.
“Mudar os rumos” é uma expressão que em si nada significa, mas neste caso explica-se por factos. Internacionalmente, Biden deu apoio imediato aos aliados da NATO, reentrou no Acordo Climático de Paris, denunciou a ingerência da Rússia nas eleições norte-americanas, endureceu o discurso com Putin e Xi Jiping, ignorou Kim Jong-Il e deu força às relações com o Japão e o Canadá. No palco internacional, a América voltou, literalmente – aquela América que acha que está certa e disposta a bulir com quem não acha.
Evidentemente que a situação não pode ser exactamente a mesma, porque os aliados perceberam que essa América afinal depende de quem está na Casa Branca, e quem está na Casa Branca pode mudar de quatro em quatro anos. O estrago que Trump causou ao prestígio do país levará anos a reparar.
Outro aspecto é que estas eleições mostraram que a democracia que os Estados Unidos venderam ao mundo como uma receita milagrosa, afinal não é a democracia que eles têm. O sistema eleitoral é complicado, cheio de manhas e com muitas falhas. Não é o consagrado “uma pessoa, um voto”, sem mais picuinhices. Há o zonamento dos círculos eleitorais, as exigências absurdas de habilitação dos eleitores e outras manigâncias que não se admitem em nenhuma democracia ocidental. O sufrágio universal directo e livre não existe no país “líder do Mundo Livre”.
Se no plano internacional Biden representa, até onde é possível, a volta do discurso norte-americano, já no plano nacional o que ele propõe é completamente inovador. A ênfase vai para o emprego, a família, as crianças, as minorias étnicas e – coisa nunca vista – um esboço de segurança social. O chamado “pacote de desenvolvimento estrutural”, no valor faraónico de 2,3 triliões de dólares destina-se a criar emprego em novas infraestruturas – novas porque são de energias renováveis, Internet e componentes electrónicos, sectores em que os Estados Unidos estão atrasados em relação aos seus pares. E o chamado “plano para as famílias”, de 1,8 triliões de dólares, vai para cuidados pré-natais, educação gratuita, subsídio de desemprego e habitação social, tudo áreas inéditas no planeamento federal. (É preciso lembrar que os Estados Unidos são o único país industrial desenvolvido que não tem um sistema de Segurança Social ou Serviço Nacional de Saúde – para os americanos, sempre foram considerados ideias “socialistas”).
Quando Biden fala, como falou agora para os congressistas, olha nos olhos dos pobres, dos negros e dos latinos, das mães solteiras sem seguro, de todos aqueles que o sistema tem sistematicamente ignorado, e promete-lhes um futuro melhor.
Conversa de político? Os triliões que ele quer gastar dizem que não. A personalidade de Biden e o seu currículo também dão credibilidade aos empreendimentos a que se propõe. Por falar em personalidade, foi significativo ter realçado, quando começou o seu discurso, que, pela primeira vez na História, o Presidente estava ladeado por duas mulheres – Kamala Harris, a vice, e Nanci Pellosi, a líder da Câmara. Só não acrescentou que Kamala é afro-americana porque poderia ter uma interpretação racista. Mas o seu executivo tem muitas mulheres e várias etnias que nunca estiveram em postos tão altos.
Claro que nem tudo são rosas, ladies and gentlemen. Grande parte da despesa tem de passar pelo Senado, que continua ferozmente trumpista e avesso a concessões sociais – por conveniência política e por convicção. Há uma regra consuetudinária, chamada de “filibuster” que exige uma maioria de 60% para aprovar uma lei, e os democratas só têm 50%. Fala-se em acabar com o procedimento, o que seria possível, e talvez Biden seja obrigado a fazê-lo, para não lhe acontecer como a Obama, cujas reformas foram todas travadas pela câmara. Por outro lado, os republicanos sabem que os norte-americanos apoiam os planos do Presidente; todas as sondagens lhes dão maiorias e em algumas chega aos 68%. Afinal, quem é que não quer dinheiro no bolso?
Estes 100 dias mostraram um presidente pró-activo e cheio de boas ideias. Agora vai entrar em jogo a velha política – o tal pântano onde as melhores intenções ficam enterradas até ao pescoço. Resta o optimismo, que Biden tão bem representa.
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