Talvez a minha comparação pareça inusitada, mas é possível que esta seja a melhor altura para coisas inusitadas. Mal recebi a notícia do falecimento do bardo canadiano começaram a chegar-me pedidos de depoimentos. A vontade de resumir tudo o que a morte, e sobretudo a vida, de Leonard Cohen significavam para mim – aquele espaço amplo entre o nó na garganta e a bênção – acabou por me roubar a capacidade de falar, mergulhou-me num silêncio que faria corar de inveja qualquer monge Rinzai zen. Descobri que a sofreguidão nas elegias me engasga, mas isso só porque tentava reagir com palavras profundas à marca profunda das palavras de Cohen. Um erro, claro. Desanuviei-me só agora; larguei a profundeza e troquei-a por esta afirmação epidérmica, esta comparação aparentemente inusitada: Leonard Cohen é o meu Bond preferido.

Na biografia “I’m Your Man: The Life of Leonard Cohen”, escrita pela apaixonadíssima e sempre apaixonante Sylvie Simmons, saltou-me à vista um relato da infância do músico que tem tanto de curioso como de determinante. Não me refiro ao episódio do falecimento do pai, tinha Leonard 9 anos. Duvido que seja essa a circunstância mais prenunciadora da obra futura de Cohen (apesar de várias vezes ele identificar no funeral do pai o evento que o atracou definitivamente à escrita). É noutro episódio da meninice, menos feral e mais caricato, que se vão evidenciar os traços imutáveis das motivações literárias e musicais do canadiano: entre os seus interesses juvenis, Leonard envolveu-se no ilusionismo e consequentemente no hipnotismo. Tanto se afincou neste último que, entusiasmado pela bem sucedida hipnose dum cão, apressou-se a procurar cobaia humana. Foi uma criada de sua casa quem caiu no transe imposto pelas novas habilidades do jovem Cohen. O adolescente concluiu depois com sucesso o verdadeiro plano por detrás das recentes aprendizagens: ordenou à criada que se despisse, comando que ela em sono hipnótico cumpriu.

“Olha, tu agora não me conheces, mas em breve vais conhecer, por isso podes deixar-me ver-te nua?” cantava Cohen em 1977, com 43 anos, no mal amado álbum “Death of a Ladies Man”. Uma década depois era qualquer coisa como “Toda a gente sabe que tens sido discreta, mas houve tanta gente que fizeste questão de conhecer sem estares vestida” que se escutava no disco “I’m Your Man”. Estes são apenas dois de vários exemplos onde a nudez literal (porque eu também podia discorrer de forma foleira sobre “nudez espiritual”) sobressai como caríssimo leitmotiv coheniano. Há uma quase puerilidade na forma de acender os rastilhos das suas canções, mesmo que a explosão lírica tenha maturidade e requinte ímpares - seja no contexto estritamente musical, seja no mundo alargado da poesia. É o cronista mais adulto dos fascínios adolescentes. A melancolia, a luxúria, as dúvidas espirituais, os abalos religiosos, tudo isto podiam ser expressões afluentes dum clássico coming of age, mas no fundo são a evidência de inteligência e sensibilidade superiores, capazes de nos deixar sem discernimento do que é contenção e o que é torrente. Só a conjugação do ímpeto jovial com o crivo duma sabedoria madura permitiram toda aquela incerteza imortalizada, todo aquele desejo tornado em beleza. Leonard Cohen é um diamante simultaneamente em bruto e lapidado. Para sempre, como os diamantes.

Não estou a fazer um exercício rebuscado de suposições: o próprio Cohen por várias vezes indiciou, se não o afirmou explicitamente, que se meteu e permaneceu na poesia para conquistar mulheres. Isto pode ser muito mais espantoso do que aparenta, sobretudo se considerarmos o uso da sinceridade, dos tormentos, das inconfidências e das dúvidas como instrumentos de sedução. Muito trabalho para aprimorar tamanha alquimia: é o mesmo comprometimento daquele rapaz que devorou livros sobre hipnotismo só para despir uma serviçal. Leonard Cohen domina-nos porque há um rigor hipnótico na forma como domina também a escrita de canções, seja essa precisão motivada por grandes amores ou pequenas nudezes.

É também por isto que o meu Bond preferido é Cohen; nem com toda a suspension of disbelief - a suspensão voluntária de descrença que nos faz aguentar muitas coisas inverosímeis e incongruentes nos filmes do 007 – conseguiríamos acreditar que um homem com aptidões técnicas e instintos práticos para salvar o mundo teria também aptidões natas de sedução. Enquanto o machismo latente nas histórias de James Bond nos aponta para a descartabilidade das figuras femininas, há alguns episódios (um deles passado em Portugal, mas isso ficará para outra crónica) que nos sugerem a incurabilidade romântica do espião. A conclusão é que não serão as mulheres o acessório; para a confiança do agente secreto se tornar irresistível, salvar o mundo é que serviu como acessório. Lutar contra ameaças globais, preservar a Humanidade, arriscar a vida: tudo a fortificar uma estima-própria sedutora. Salvar o mundo é o trabalho moroso e o afinco auto-hipnótico para alcançar grandes amores ou pequenas nudezes. Bond não deixa de ser abrutalhado e um trapaceiro sexual, mas se acreditarmos que isso é uma máscara, as pontes poéticas reforçam-se. “O agente secreto é um fingidor/Finge tão completamente”...

Amanhã fará uma semana desde que se noticiou a partida de Cohen. Hoje, sendo véspera da efeméride, parece-me a data mais imperfeita: falta-lhe um dia para ser assinalável e tem uns quantos a mais para ser notícia fresca. É, portanto, o melhor dia para eu escrever sobre o titã canadiano, já que a imperfeição liberta. Amanhã forçar-me-ia a escrever coisas assinaláveis, e ontem ainda teria a pungência de lágrimas frescas para reagir à notícia. Não pratico missas do 7º dia, mas esta do 6º parece-me bem eficaz, porque as únicas almas que considero encomendáveis são as dos vivos – desejo que a partir de amanhã possamos seguir o exemplo coheniano de nos inundarmos de palavras sem nunca as esbanjarmos. Hoje até me permito “coisas inusitadas”, “afirmações epidémicas” e comparações com agentes ao serviço de Sua Majestade, mas amanhã, para fazer jus ao mais completo dos bardos, tem de voltar o serviço à majestade do “Senhor da Canção, com nada na minha língua senão Aleluia”.

Sítios certos, lugares certos e o resto

Para minha dupla vergonha enquanto admirador fervoroso de Leonard Cohen, até há alguns minutos desconhecia este fansite dedicado ao músico. Já cá devia ter chegado, e devia ter este empenho na minha admiração. Dupla vergonha.

O final da semana passada não foi feito só de más notícias musicais. Saiu o novo trabalho da Gisela João, “Nua”. É um afugentar airoso dos fantasmas do 2º disco, mesmo que o 1º tivesse sido quase perfeito. A Gisela está irremediavelmente na realeza das intérpretes portuguesas, digo-o sem equívocos – ainda que ela, na entrevista que deu ao excelente Gonçalo Frota no Ípsilon, me tenha acusado de falta de inteligência. Brincadeirinha.