Na altura, o famigerado massacre de judeus por comandos do Hamas a 7 de Outubro parecia apenas um pique da violência permanente entre Israel e os palestinianos de Gaza. Mas em poucos meses transformou-se num conflito regional que envolve o Irão e o seu inimigo máximo, os Estados Unidos. Os israelitas continuam a ser os protagonistas principais, mas o número de participantes na refrega continua a crescer, apesar dos esforços dos Estados Unidos e dos países ocidentais para conter o conflito. Os últimos beligerantes são os Houthis, localizados no norte do Iémen, a 2.200 km de Israel.

Mas, afinal, debaixo de que pedra surgiram estes Houthis? Não é bem uma pedra, mas um mar de dunas eriçado de rochas, e chama-se Iêmen. É uma república desde 1960, entretanto palco de uma guerra civil interminável. Mas já lá vamos. Fica ali mesmo ao lado de Oman, a sul da Arábia Saudita, e controla uma das margens da esquina entre o Mar Vermelho e o Golfo de Aden - a outra margem é da Etiópia. O ponto mais estreito tem apenas 26 km de largura, mais ou menos o mesmo que o nosso Tejo no Mar da Palha. Na ponta norte do Mar Vermelho abre-se o Canal de Suez (com 55 metros de largura mínima). O canal foi construído pelos franceses entre 1859 e 1869. Começou por ser uma sociedade anónima com 52% de acções francesas e 44% egípcias, mas em 1875 os ingleses compraram a parte egípcia. Como se calcula, foi um negócio fabuloso, uma vez que permitia a navegação de todo o Oriente para a Europa, evitando os 30.000 km da costa de África. Em 2015 foi melhorado com um canal paralelo e actualmente é propriedade de uma empresa pública egípcia. Pela Convenção de Constantinopla, assinada em 1888, o canal pode ser atravessado por navios de todas as nacionalidades, civis ou militares, sem restrições. Houve várias alturas em que esta imparcialidade foi contestada, sobretudo em épocas de guerra, mas não vamos perder tempo com isso, senão nunca mais chegamos a 2024.

Os Houthis não são uma tribo, mas sim uma associação de vários grupos radicais islâmicos que usam o apelido dos três irmãos fundadores, al-Houthi, entretanto mortos em combate. Depois de 2004, o movimento ganhou força e entrou em guerra com o governo legal do Iémen, cujo presidente é Abdrabbuh Mansur Hadi. Os Houthis são maioritariamente xiitas e extremamente radicais, o que os colocou do lado do Irão e contra a Arábia Saudita, sunita. Em 2007 chegaram ao atrevimento de atacar Ryad. Ao fim de dez anos de guerra sangrenta, com todo o tipo de atentados aos direitos humanos, acabaram por tomar a capital, Saana, e Hadi fugiu para Oman. Actualmente dominam cerca de metade do Iêmen, e a guerra contra os outros estados do Golfo entrou num estado de dormência com alguns sobressaltos de quando em quando. Recusam ajuda das ONG caritativas internacionais e fazem o povo passar fome e morrer sem serviços de saúde. Quem os arma com equipamento moderno é o Irão. A Arábia Saudita, embora bombardeie regularmente as suas posições, não tem um exército que lhe permita ajudar Hadi.

Quando começou a guerra entre Israel e o Hamas, os Houthis começaram logo a atirar rockets contra Israel, sem efeitos práticos - a distância é grande e o “Iron Dome” que protege Israel é bastante eficiente. Resolveram então mudar de táctica, atacando os navios mercantes que lhes passavam pela frente, com a justificação de que estavam a enviar suprimentos para os israelitas, ou que eram de países que os apoiavam. O resultado foi que as principais companhias de navegação de carga decidiram evitar o Mar Vermelho, com as implicações óbvias: mais tempo para as mercadorias chegarem ao Mediterrâneo e Europa, logo maiores custos de combustível, aumento dos prémios de seguro, perturbação do fornecimento de petróleo. Considerando que 80% do transporte de mercadorias é feito por via marítima e que 12% passam pelo Canal de Suez, esta situação não agradou a ninguém, mesmo aqueles países que não têm qualquer envolvimento no conflito em Gaza. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha - na realidade os dois países ocidentais que têm marinhas de guerra que se vejam - enviaram uma frota para o Mar Vermelho para proteger a navegação civil.

Os Houthis, que podem ser feios, porcos e maus, mas não são nada cobardes, começaram imediatamente a mandar drones e rockets contra os navios de guerra que, evidentemente, estão equipados para derrubar tudo o que lhes apareça no horizonte. Depois de avisar os miúdos reguilas que era melhor para eles ficar quietos, os aliados ocidentais finalmente perderam a paciência e esta semana atacaram 60 bases houthis. O primeiro ataque atingiu alvos terrestres lançadores de rockets, radares e bases navais e marítimas, numa tentativa de reduzir a capacidade ofensiva do inimigo, segundo informaram oficiais que fazem parte da task-force. “Os alvos foram escolhidos criteriosamente, pois é evidente que os Houthis não vão desistir com um ataque meramente simbólico”, afirmou um deles.

Ao anunciar o ataque, o Presidente Biden justificou: ” Esta operação é uma resposta directa contra os injustificados ataques dos Houthis ao comércio marítimo no Mar Vermelho. Esses ataques colocaram em perigo militares americanos, marinheiros civis, os países nossos parceiros, limitaram os transportes marítimos a ameaçam a liberdade de navegação.”

Perante estas palavras e acções, como reagiram os miúdos reguilas? O Ministro dos Negócios Estrangeiros de Saana, Hussein al Ezzi, publicou na internet: “O nosso país sofreu um ataque maciço e agressivo de navios, submarinos e aviões dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. Estes países podem contar com um custo pesado e aguentar as fortes consequências pela agressão evidente.”

Para um país que nem sequer é um país inteiro (o sul ainda obedece a Hadi), que não tem tropas normalmente treinadas e uniformizadas e recebe as suas armas do estrangeiro, não se pode negar que lhes falta atrevimento. Não vão parar, evidentemente, até porque os ocidentais não querem alargar o conflito israelita a toda a região.

Não sabemos se os ayatollá iranianos têm sentido de humor (não parece) mas devem estar a rir-se perdidamente. O Irão está intocado, e os seus proxies - Hezbolah, Hamas, Houthis, Irmandade Islâmica, etc, etc. - é que matam e morrem em nome de Allah. Nem se vão atrever a interferir directamente, primeiro porque sabem que os israelitas são um país nuclear nas mãos da extrema-direita nacionalista, segundo porque não precisam de fazer muito para transformar o Oriente Próximo e, quiçá, o mundo, num inferno.