1. Ontem foi Thanksgiving [dia de Acção de Graças] nos Estados Unidos da América, e portanto, enquanto o peru estava a ser preparado por alguém de sangue latino, árabe, africano ou asiático, o presidente Donald Trump deu graças a si mesmo, louvou o petróleo saudita e atacou os imigrantes. Literalmente assim, para perplexidade até dos oficiais que estavam em directo de várias partes do mundo onde os EUA têm tropas. Se algum deles esperava que Trump começasse por lhes agradecer, teve de tirar o cavalinho da chuva. O Thanksgiving é sagrado nos EUA, o país pára, da esquerda à direita. E a tradição é que os presidentes prestem homenagens, deixem mensagens de esperança, tipo Obama a saudar as gerações do futuro. Mas o delírio de Trump sendo Trump nunca cessa. Quando lhe perguntaram o que agradecia acima de tudo, ele respondeu: “Ter uma grande família e ter feito uma diferença tremenda neste país.” Insistiu: “Fiz a diferença. Este país é tão mais forte agora do que quando tomei posse que nem se acredita.” Mais: “Quando estou com líderes estrangeiros, eles dizem que nem acreditam na diferença, em termos de força, entre os Estados Unidos de agora e os Estados Unidos de há dois anos.” Estaria certamente a pensar em líderes como o príncipe saudita Mohammad bin Salman, a quem a CIA já atribuiu o homicídio do jornalista Jamal Kashoggi. Esta segunda década do milénio está a acabar de forma tão estranha que, comparada com Trump, a CIA até parece uma organização comprometida com a justiça.
Indagado sobre Kashoggi, Trump fez tábua rasa das conclusões da CIA, culpou o mundo pelo homicídio, disse que o príncipe Salman odiava a morte tanto quanto ele próprio, Trump, — seja lá o que for que isso queira dizer — e declarou que a aliança Donald & Salman vai continuar. Sanções? Pressão sobre o poder saudita, que além de massacrar a sua própria população continua a massacrar o Iémen? Trump nem faz de conta, cita os negócios. É o petróleo, e o gás, sim, estúpidos.
E enquanto as lagostas eram aprontadas para acompanhar o peru presidencial, a caravana dos migrantes continuava a desaguar na fronteira, levando Trump a puxar o gatilho. Em pleno Thanksgiving, abraçar o assassino, atirar nos esfomeados.
Mais uma vez, literalmente: depois de ter mandado milhares de soldados para a fronteira durante a campanha eleitoral das eleições intercalares, Trump aproveitou o dia de ontem para dar luz verde ao uso de força letal contra os migrantes. Isto, 24 horas depois de o seu secretário da Defesa, James Mattis, ter garantido que a polícia militar na fronteira estará desarmada e não terá poder para fazer prisões. “Eles não têm armas na mão, não há qualquer elemento armado a caminho”, disse. As tropas na fronteira estarão com bastões e escudos, e poderão deter temporariamente migrantes “por minutos, nem sequer horas”, mas não terão autoridade para os prender, explicou. Estas garantias foram dadas na quarta-feira. E na quinta — ontem — Trump fez picadinho delas. Incluindo atacar o juiz federal que bloqueara uma ordem presidencial para negar asilo aos migrantes que tentem passar.
2. A situação em Tijuana, onde já estão milhares de centro-americanos, é de emergência. Enquanto os vizinhos do outro lado da fronteira, na Califórnia, preparavam os seus perus, o autarca Juan Manuel Gastelum convocou uma conferência de imprensa para declarar “crise humanitária internacional” e pedir ajuda às Nações Unidas e outras organizações humanitárias. A atmosfera em Tijuana nas últimas semanas, à medida que estes migrantes subiam pelo México, foi de tensão crescente, com manifestações anti-migrantes. Gastelum aproveitou para acusar o governo mexicano de negligência: “Omitiram e não cumpriram as suas obrigações legais”, disse.
Parto daqui a nada para a Cidade do México, e daí para Guadalajara. Já não apanharei a caravana que fez uma pausa na capital, antes do rumo a norte. Há oito anos e meio, quando viajei pelo México, estive com centenas de migrantes centro-americanos no sul, em Ixtepec, onde partem os comboios que vão para o norte, e que os centro-americanos tentam apanhar, correndo todos os riscos. Até hoje as imagens, as vozes daquelas pessoas estão comigo, e desde que a actual caravana começou a sua marcha, em Outubro, tenho pensado naquele abrigo do padre Alejandro Solalinde, onde tantos migrantes dormiam e comiam antes de seguir viagem, o que podia querer dizer serem raptados, escravizados, violados ou mortos por gangues, maltratados pelas autoridades mexicanas. Quem tenha estado com estas pessoas sabe que elas não têm nada. Fogem da violência dos seus países, causada tantas vezes por políticas dos EUA, do descaso dos seus governos, da fome. Caminham contra o medo, na chuva, na lama, com filhos pequenos, com bebés, mulheres grávidas, velhos. Que um Trump abrace um assassino, mande tropas contra estas pessoas e dê luz verde para atirar nelas, é mais uma obscenidade para a pornografia deste milénio.
Ainda estarei em Guadalajara a 1 de Dezembro, quando toma posse o novo presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador (AMLO, como lhe chamam). Há expectativa sobre a mudança que ele poderá trazer, sendo um homem de esquerda. “A partir de 1 de Dezembro vamos oferecer emprego a migrantes centro-americanos, é um plano de trabalho que temos, que quem queira trabalhar no nosso país vai ter apoio, vai ter um visto”, prometeu AMLO há um mês, quando a caravana de migrantes estava a começar. Será interessante acompanhar entre mexicanos a posse do novo presidente, agora que milhares de migrantes estão a transbordar do complexo desportivo de Tijuana que lhes serve de abrigo.
3. No meio de tudo isto, a rival que Trump derrotou, a senhora Clinton, resolveu dar conselhos aos europeus sobre como lidar com o populismo de direita, ela que não conseguiu evitar o populismo na sua própria corrida presidencial, e que, quando esteve no governo americano entre 2009 e 2013, foi co-responsável por parte do que veio a causar ondas de refugiados e de imigração. O conselho da senhora Clinton é que os governos europeus controlem a imigração, porque a imigração é que dá força aos populismos de direita. O “Guardian” foi ouvi-la sobre o que falhara com ela, e ela fez a manchete assim, lançando a culpa dos fascistas para cima dos imigrantes. Mais coisa menos coisa, é a lógica do “estão a pedi-las”, “põem-se a jeito”: andas de mini-saia, não te venhas queixar da violação; abres os braços aos imigrantes, não te venhas queixar do fascista. Basicamente, Europa, pensa a senhora Clinton, se não queres ter fascistas controla essas levas de bárbaros, fecha as fronteiras. E assim os perus de Natal ficarão a salvo, de fascistas e de bárbaros. Que os bárbaros morram na terra deles, lá na Líbia, lá na Síria, ou no que resta dela depois de toda a guerra desde que a senhora Clinton foi Secretária de Estado.
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