Ao fim de duas semanas de debates, e no dia do último frente-a-frente, quase podemos dizer que existem dois candidatos do PS: um Pedro Nuno Santos apagado e incapaz de fazer valer as suas ideias em confronto com terceiros, outro quando tem a palavra só para si, sem interrupções, perguntas ou escrutínio. Mas o discurso, depois de desmontado, é cheio de falhas, como aconteceu no dia 11 de Fevereiro, na apresentação do programa do PS.
Falou, falou, falou. Para dizer que "nem tudo funcionou como devia". Para dizer que "precisamos de um novo António Arnaut para salvar o nosso SNS". Para dizer que é preciso "mudar as respostas que nós demos generosamente, mas que não produziram os resultados que nós esperávamos".
Durante mais de uma hora e meia o candidato a primeiro-ministro Pedro Nuno Santos, que se assume como líder de continuidade, lamuriou-se e encontrou desculpas para as falhas dos governos dos quais fez parte, primeiro como secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares (final de 2015 a início de 2019), depois como ministro das Infraestruturas e da Habitação (2019 a Janeiro de 2023).
Percebe-se, Pedro Nuno Santos tinha o palco só para ele, no Teatro Thalia, em Lisboa, e preparou um número de stand up (muito pouco) comedy. Fez a festa, lançou os foguetes e apanhou as canas. Um monólogo cheio de equívocos. Em relação ao SNS, em relação à habitação, em relação à educação, em relação à ferrovia.
Não me vou deter na primeira meia hora, no discurso bipolar do "tenho muito orgulho no que fizemos", "nem tudo funcionou como devia", nem na análise de uma versão Pedro Nuno Calimero Santos, "as autorizações que tínhamos que enfrentar eram imensas, dezenas, centenas, que ocupavam o Ministério das Finanças, que ou não dava resposta porque não queria ou não dava resposta porque não podia". É uma injustiça.
"Quantas vezes o ministro sectorial se bate semanas a fio, dias fio com o Ministério das Finanças para conseguir cumprir o seu programa. São anos, são semanas e semanas em que vai minguando a sua medida. A medida que achava que era a correcta, que era a perfeita, sai uma medidazinha. Mas, como somos todos leais uns com os outros, solidários, o ministro vai apresentar a medidazinha como a grande solução para os problemas, quando ele próprio às vezes sabe, ou muitas vezes sabe, que não é". É uma injustiça.
"Verdade e transparência", pede Pedro Nuno Santos. E faz apelos à oposição: "Gostava de dizer algo directamente daqui ao Dr. Montenegro, é que mesmo que as coisas fiquem mais difíceis do que nós prevemos, nós temos condições para cumprir tudo o que está no programa eleitoral do Partido Socialista". Folgo em saber, porque não tem sido assim.
1 - Serviço Nacional de Saúde
"Mas falemos e casos concretos, falemos de nós, da nossa vida. Do que é que acontece quando cada um de nós tem algum familiar ou algum amigo com uma doença grave, rara e complexa. Onde é que ele vai?", começa Pedro Nuno Santos.
"Tenho um amigo meu que tinha um discurso conservador sobre impostos: "Pagamos demasiado em Portugal". Teve um azar na vida que nós não desejamos nunca a ninguém, mas que nos bate à porta sempre. Foi-lhe diagnosticado um linfoma. Tem uma família linda e uma mulher e uma filha pequena. Foram confrontados com a incerteza do que lhe podia acontecer, não sabiam. Hoje felizmente, está em recuperação, em boa recuperação. Esse meu amigo, que ficou com o futuro sombrio, teve resposta no SNS. Ao fim de algum tempo, tratado por excelentes médicos, por excelentes enfermeiros, técnicos, auxiliares, ele fez as contas. Fez a contas com o seu médico. Lá atrás, porque entretanto a factura continuou a crescer. E já tinham gasto com ele 600 mil euros. Aquilo que esse meu amigo diz é "nunca mais na vida falarei de impostos"".
Se Pedro Nuno Santos quer que falemos de nós, da nossa vida, cá vai: o meu pai também tinha um linfoma, estava a ser muitíssimo bem tratado na Fundação Champalimaud, mas morreu com uma fractura do colo do fémur por não ter sido operado no hospital público para onde foi levado. Foi transferido para um privado quatro dias depois, onde chegou com uma bactéria hospitalar e muitíssimo desidratado. A operação correu muito bem, mas acabaria por morrer (vou poupar os pormenores do horror). Porquê? Porque, como muito bem poderá explicar o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, a recuperação é crítica quando um paciente não é operado nas primeiras 48 horas e a taxa de êxito cai vertiginosamente. Em Portugal isso "só" acontece em 48% dos casos. "Ainda não nos comparamos com a média dos países da União Europeia ou da OCDE", disse Manuel Pizarro em entrevista ao SAPO 24, em Dezembro de 2022. "Chegar a 2024 com pelo menos 70% das fracturas do colo do fémur operadas nas primeiras 48 horas" foi um dos objectivos que fixou. Todos os anos são operadas 13 mil pessoas.
Há boas e más histórias no SNS, bons e maus médicos, boas e menos boas equipas. Se calhar, o melhor é não entrar por aqui para falar do estado caótico em que o serviço público de saúde se encontra, o tal, com o maior orçamento de todos os tempos, mais de 15 mil milhões de euros.
Mas, já que falamos de SNS, quem é que prometeu médico de família para todos os portugueses a partir de 2017? Foi António Costa, em Setembro de 2016, num debate quinzenal na Assembleia da República. E repetiu-o vezes sem conta depois disso. No fim de 2023 havia 1.711.982 portugueses sem médico de família, entre eles 145 mil crianças (as tais a quem quer garantir rastreio visual, coisa que já está na lei).
2 - Habitação
"A habitação é um dos nosso maiores desafios. Um dos nossos maiores problemas", disse a determinada altura Pedro Nuno Santos, que durante quatro anos tutelou, em êxito, a pasta da Habitação.
"Demos isenção total no IRS e no IRC a quem arrendasse a sua casa a preços acessíveis para a classe média [...] O programa falhou e nós temos, com frontalidade, que o assumir".
Sim, pode assumir, mas isso não muda nada. Ainda por cima no tempo do PRR e dos 3,229 mil milhões (igual ao montante injectado pelo Estado na TAP) de Bruxelas destinados à habitação. Dinheiro caído do céu para colmatar as falhas de sucessivos programas.
Sem direito a contraditório, Pedro Nuno Santos ainda diz que "termos aquilo que se chama números em política". E dá o exemplo da Câmara Municipal de Lisboa, "em que dizem que os socialistas, durante o período que governaram António Costa e Fernando Medina, foram [entregaram] 17 casas por ano, o que parece que nem sequer é verdade".
Tudo para dizer que "as 1400 chaves" que o actual presidente da CML entregou em dois anos foi obra "do Fernando". Ainda que fosse, a promessa de 6000 casas foi feita em 2017 , era para esse mandato, ou seja, até 2021. Ou estará Pedro Nuno Santos a admitir que o PRR jamais será cumprido, uma vez que tem um período de execução até 2026?
Como era aquela frase de Fernando Medina? Ah, já sei: "Cumprimos tudo o que prometemos, não prometemos aquilo que sabemos que não podemos cumprir". Óbvio.
Mas, já que estamos na habitação, uma palavra sobre o património imobiliário do Estado. Nove anos não são suficientes para fazer um inventário, que diabo? É que a 31 de Janeiro deste ano a Assembleia da República recomenda ao governo a conclusão urgente do inventário do património imobiliário do Estado com aptidão para uso habitacional.
É que logo em 2016 o governo criou um grupo de trabalho interministerial para criação de um portal especializado em imobiliário público. Parece que o resultado está aqui. Ou não, pelo que se depreende da mensagens "Mantenha-se atento às atualizações desta página" ou do reencaminhamento para o Revive.
Mas, ao que parece, o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, tem mais planos para a habitação do que alguma vez Pedro Nuno Santos sonhou. E, quando se candidatou à liderança do PS, fez uma apresentação pública das suas ideias: um pacto político para disponibilizar 180 mil habitações num prazo de dez a 15 anos, um investimento de mais de 21 mil milhões de euros, metade com recurso a financiamento bancário.
3 - Educação
"Se o pré-escolar é teoricamente gratuito, nós sabemos que na prática ele só dá resposta a cerca de 50% das nossas crianças", afirmou. Penso que não preciso de dizer mais nada.
Ou talvez precise. "Queremos que os nossos professores, os professores das nossas crianças, dos nosso meninos, das nossas meninas se sintam valorizados, se sintam dignificados, se sintam respeitados", afirmou o secretário-geral do PS. Dos "nossos" ponto e vírgula. É fácil falar das maravilhas do ensino público quando se tem os filhos no privado. A escolha, acredito eu, devia ser para todos, não apenas para alguns.
Podia ainda falar das greves dos professores (não estou aqui a discutir se justas ou não) e das implicações que isso teve para muitas famílias, que tiverem de encontrar alternativas para deixar os filhos, que foram confrontadas com uma quebra inédita do desempenho dos alunos em Portugal, que não têm professores durante meses a diversas disciplinas.
A solução de Pedro Nuno Santos? "Ir buscar professores aposentados, com energia para ensinar, como se fez com médicos no SNS". Mas isto faz algum sentido?
4 - Jovens
"Queria dizer alguma coisa aos nossos jovens". E disse: "Temos estado ao lado deles ao longo destes anos". Ao lado deles? Só se for por WhatsApp, como os pais daqueles que estão a sair do país. Segundo o Observatório da Emigração, mais 850 mil jovens que têm hoje entre 15 e 39 anos deixaram o país e residem agora no exterior. Isto significa que um terço dos jovens nascidos em Portugal emigrou. É esta a internacionalização que o PS diz querer apoiar?
"O apoio ao alojamento estudantil já não pode ser apenas para o estudantes bolseiros, nós temos de apoiar o alojamento estudantil aos filhos da classe média", disse Pedro Nuno Santos.
Isto, saberá o ex-ministro da Habitação tão bem como eu, implica ter camas para os estudantes deslocados, implica alojamento, universitário ou outro. Vou, então, relembrar o que aconteceu com o Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado, anunciado pelo governo com pompa e circunstância no início de abril de 2016 - um investimento de 1,4 mil milhões de euros na recuperação de 7.500 fogos, 800 mil metros quadrados de habitação e 200 mil metros quadrados de comércio e serviços tradicionais -, a realizar até 2026.
O fundo foi criado com o objectivo de reabilitar imóveis públicos do Estado central e das autarquias para colocar no mercado com rendas acessíveis (pelo menos 60%). O restante seria para comércio, sobretudo tradicional, e “outras tipologias", mas já a valores de mercado, “para garantir a rentabilidade e muito baixo risco”. Não disponibilizou um quarto para estudantes ou uma casa até hoje.
Ainda no que toca aos jovens, Pedro Nuno Santos fala no "IRS Jovem, hoje medida importante, mas que está limitada aos licenciados. Somos um partido socialista inteiro e bem unido e, para nós, é para todos os jovens independentemente do seu nível de qualificação".
A medida pode ser boa, mas é manifestamente insuficiente. Alguns dados podem explicar parte do insucesso da medida: quem recebe o Salário Mínimo Nacional, agora de 820€, não paga IRS. O chamado mínimo de existência passou para 11.480 € euros em 2024, e sempre que o rendimento depois da tributação é inferior a este valor o contribuinte está automaticamente isento de IRS.
Para um jovem com um salário mensal de 1.500 euros, isto poderia representar uma poupança superior a 10.500 euros em cinco anos em IRS. Acontece que a realidade é bem diferente da teoria, e em Portugal 53% dos jovens recebem até 767€ por mês e apenas 3% recebem mais de 1.642€ mensais, segundo um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
A remuneração média mensal em 2021 era de 799€ para a faixa etária entre os 18 e os 24 anos e de 997€ para os que estão entre os 25 e os 34 anos, segundo o INE. Em 2022 havia 1.107.840 jovens entre os 20 e os 29 anos de idade em Portugal, o significa que número de beneficiários é apenas cerca de 6,65% disto.
5 - Ferrovia
Ao falar de coesão territorial, Pedro Nuno Santos lembrou que "temos de investir nos transportes colectivos. Aqui temos feito um grande trabalho, o passe único, um investimento massivo no transporte metropolitano em Lisboa e no Porto, o investimento que temos feito na ferrovia".
"Oiço as coisas mais incríveis sobre a ferrovia, fico apenas com a certeza que não conhecem o país e que não se puseram ao terreno, nem ao caminho". Também eu tenho esta certeza. Aliás, qual foi a última vez que Pedro Nuno Santos andou de comboio ou de autocarro ou de metro? E não falo de viagens para a fotografia.
A política de passes mudou muito e para melhor, sem dúvida. Quando há transportes, claro. Porque só as greves da CP em 2023 e logo no início de 2024 comeram todos ou quase todos os benefícios que lhe estavam associados, causando perturbações na vida dos utilizadores e dos não utilizadores.
Sobre a "ambição" de "investir na alta velocidade - Lisboa-Porto, Porto-Vigo", estão como São Tomé, é ver para crer. E não é por ser desconfiada, é que já ouvi esta conversa antes, há que 25 anos. "TGV vai ligar Lisboa ao Porto em 1h15", foi manchete no jornal Público a 6 de Julho de 1999. Em 2020, outra vez pela mão do PS, a alta velocidade regressou à baila, mas até hoje não sabemos o que se vai passar nem o ex-ministro das Infraestruturas conseguiu ainda explicar.
6 - Economia
"No último trimestre Portugal foi o país que mais cresceu na UE". "Em 2023 fomos o segundo país que mais cresceu na UE". São estes números de político? É que em 2023 o PIB per capita de Portugal estava 21% abaixo da média europeia, éramos o 20.º país dos 27 Estados-membros com o PIB per capita, utilizado para avaliar o padrão de vida médio da população, mais baixo.
"O salário médio não ficou estagnado como disseram, vimos bem que cresceu mais de 30%". Não tenho ainda os números de 2023, mas, de acordo com o Eurostat, em 2022, o salário médio anual variou entre 73.642 euros na Islândia e 24.067 euros na Grécia. Os países com salários mais elevados eram a Islândia (73.642€), o Luxemburgo (72.529€), a Suíça (67.605€), a Bélgica (63.758€) e a Dinamarca (59.405 euros). Portugal ocupava um lugar entre os países com remunerações mais baixas: Grécia (24.067€), Eslováquia (24.337€), Hungria (26.376€), Portugal (29.540€) e República Checa (30.967€).
"Temos mais de cinco milhões de portugueses a trabalhar hoje em Portugal", disse o ex-ministro. Em bom rigor, diz o INE e a Pordata, em 2023 estavam empregadas 4.978.500 pessoas no país e mais de 251 mil portugueses acumulavam dois empregos.
Quanto ao salário mínimo, mesmo com todas as subidas, Portugal desceu um lugar na tabela europeia e foi ultrapassado pela Polónia. O país está em 11.º no ranking, mas em 14.º lugar se olharmos para o poder de compra. O Luxemburgo ocupa o primeiro lugar (2.571€), a Bulgária o último (477€).
Para terminar, o desemprego. Os países da OCDE (21) tinham no final de 2023 uma taxa média de desemprego de 4,8%, com 33,2 milhões de pessoas à procura de emprego, o nível mais baixo da série histórica iniciada em 2001. Os dados são de 15 de Fevereiro, e mostram que ao longo do ano o desemprego nunca ultrapassou 5%. Em dez países, incluindo Portugal, o desemprego jovem ultrapassou os 20% (Espanha 28,6%; Suécia 24%; Portugal 23,1%).
Na União Europeia e na zona euro, a taxa de desemprego ficou em níveis historicamente baixos, de 5,9% e 6,4%, respectivamente. Em Espanha, a taxa de desemprego baixou uma décima percentual, mas ficou nos 11,7%, o nível mais elevado deste conjunto de países. Fora da Europa, a organização destacou as subidas registadas em dezembro na Colômbia, onde a taxa de desemprego passou de 10,3% para 10,8% e na Coreia do Sul, onde avançou de 2,8% para 3,3%.
Podia continuar por aqui fora, mas, como disse Pedro Nuno Santos na apresentação do programa do PS, "sei que estou a levar tempo". Só não me queixo, como o ex-ministro, de estarem "sempre a dizer que eu tenho de falar de futuro e eu quero falar de futuro", mas "naqueles debates toca e foge não dá".
Os debates até podem ser toca e foge, mas há quem consiga fazer mais e menos com eles, responder de forma mais ou menos assertiva às perguntas, apresentar mais ou menos soluções. Nos debates e fora deles, em entrevistas mais longas ou mais curtas. Pedro Nuno Santos sabe disto muito bem, mas acontece que prefere ficar hora e meia a falar sozinho sem ser interrompido do que sujeitar-se a responder a jornalistas e ao escrutínio do público, que pode ser muito incómodo. Foi assim enquanto ministro, foi assim na corrida à liderança do PS, é assim agora, que concorre a primeiro-ministro.
Numa coisa tem razão, é preciso "investir na saúde mental, a saúde mental do povo português". Já dizia Marisa Matias, eurodeputada do Bloco de Esquerda, "Isto já não vai lá com política, só com psiquiatria". Enquanto isso, esperemos que este não seja um Portugal Inteiro todo em estilhaços.
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