O falecimento de Paula Rego desencadeou uma justificada blitz dos meios de comunicação nacionais e estrangeiros; os especialistas em arte, os críticos e os intelectuais em geral, em Portugal, no Reino Unido e em muitos outros países, para quem deu incontáveis entrevistas, contaram a sua vida, descreveram a obra e julgaram-na com louvores.
O Sr. Amândio, proprietário da tasca da esquina, ao ver a notícia na TV, resumiu assim: “Olha, olha, pirou-se com 16 anos, nunca mais quis saber da gente, e agora vamos ter um dia de luto nacional!”
Nem mesmo o Correio da Manhã, que lhe dedicou, extraordinariamente, uma fotogaleria com 28 quadros, conseguiu mostrar ao vulgo como Paula Rego se tornou internacional mostrando os 'amândios' e 'amândias' da sua terra.
A Arte é assim: quanto mais específica, mais universal. A razão é simples; ao retratar a realidade que melhor conhece, o artista provoca sentimentos que são compreensíveis em todas as realidades. Nenhum inglês, chinês ou venezuelano conhece na pele a situação portuguesa de sofrimento e esperança, revolta e submissão, complacência e crítica. Mas, ao ver uma imagem de Paula Rego, percebe perfeitamente que essa atitude existe, é um destino a que nem os desenraizados conseguem escapar.
Paula, que se tornou conhecida na década de 1980, quando abandonou o pop surrealista e se dedicou ao realismo surreal, andou sempre entre o Reino Unido e Portugal, o país onde aprendeu a expressar-se e o país que expressou. Numa enciclopédia britânica é etiquetada como “artista inglesa nascida em Portugal”. Poder-se-ia dizer o contrário: “artista portuguesa a viver no Reino Unido”. Porque foi em Londres que se formou, sendo a sua arte perfeitamente enquadrada na escola britânica de modernidade, mas o seu modelo é o nosso país profundo, as nossas angústias e aquela violência surda que sempre nos tem acompanhado ao longo da História.
Há o documentário feito pelo filho, Nick Willing, e entrevistas muito conhecidas, como as que deu a Anabela Mota Ribeiro, reproduzidas em livro, a da Ana Sousa Dias, para a RTP3, e as menos conhecidas, como as de Fernando Alvim e Alexandra Carita.
Tomás Albino Gomes resumiu tudo aqui no SAPO24. O The Guardian deu-lhe um obituário notável. No Público, Pedro Lapa chama-lhe “máquina de guerra da pintura europeia”.
Quer dizer, além de se mostrar, Paula também não parou de falar de nós, da sua vida e obra. E, ao contrário do que julga o Sr. Amândio, nunca nos abandonou; instalada em Londres, o centro de Arte internacional que melhor a podia acarinhar e compreender, vinha frequentemente a Portugal e até encomendou a Souto Moura um museu em Cascais para expor o seu espólio.
As entrevistas mostram, persistentemente, uma pessoa meio despistada, meio distraída, com uma verbalidade difícil; nada de contraditório, uma vez que ela se exprime excepcionalmente bem na pintura.
Paula Rego vem de uma família de “gente bem” e que, fora do padrão, era anti-salazarista. O outro nome com esta contradição que logo vem à cabeça é Sophia de Mello Breyner Andresen. Mas o Estado Novo não a perseguiu, talvez por não a compreender. Teve mais sorte do que a outra grande artista do nosso século XX, Maria Helena Vieira da Silva, a quem Salazar retirou a nacionalidade. Dos três portugueses desse século que têm reconhecimento internacional, só falta citar Amadeo de Souza Cardoso, que, quando expôs no Porto, em 1916, levou uma bofetada de um Amândio ofendido.
Diz-se que Paula era anti-salazarista, e isso aparece de vez em quando, como em “Salazar Vomita a Pátria”, de 1960, mas era sobretudo uma crítica do pathos nacional, que antecede e sucede Salazar, e que ele “apenas” tornou a filosofia oficial do seu regime.
Nas entrevistas – e a de Ana Sousa Dias mostra-o bem – parece alheada dos grandes problemas políticos internacionais. O que movia Paula era um sentido de justiça, ou melhor, das injustiças do sistema machista e classista do país da sua juventude.
Mas não interessa o que a movia; o que interessa é o que ela nos faz ver. E o que nos mostra é aquilo que nós somos e não gostaríamos de admitir.
É esse o grande valor da Arte: retratar a condição humana. Artistas como Paula Rego rasgam-se na praça pública para nos dar essa possibilidade.
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