1. A história simplificada da nossa tribo
Ora, na verdade, dos três países independentes da nossa península (Andorra, Espanha e Portugal), o mais recente é, precisamente, Espanha... Andorra é um principado desde o século XIII, antes da união dinástica entre Castela e Aragão. E Portugal... Bem, todos sabemos que Portugal já existia por essa altura. Espanha, por mais voltas que se dê, não é a nação mais antiga da Europa. Nem sequer consegue ser a nação mais antiga da península... Bolas, nem a Andorra consegue ganhar.
Se assim é, donde vem aquela estranha frase? E como é que o próprio Mariano Rajoy consegue dizer isto sem que os seus ouvintes reclamem pelo erro crasso? Na verdade, poucos espanhóis parecem importar-se com tal dislate. Mas porquê?
Bem, primeiro, quando alguém diz qualquer coisa a favor da nossa tribo em particular (clube, partido, nação), o sentido crítico fica um pouco embotado. É muito humano.
Depois, enfim, a História que temos na cabeça é um pouco mais maleável do que pensamos e depende do nosso sentido de identidade. O passado — ou aquilo que lembramos e esquecemos desse mesmo passado — é um campo de batalha. E a forma espanhola de olhar para o passado encontra por lá uma nação anterior ao Estado.
2. A Catalunha já foi independente?
Quando falo em campo de batalha, não falo da história feita pelos historiadores (embora também aí haja muita batalha), mas das narrativas simplificadas com que contamos o percurso das nossas nações. Nós, por cá, gostamos de contar esta narrativa muito simplificada: tornámo-nos independentes em 1143 e, a partir daí, andámos a defendermo-nos das invasões espanholas e a descobrir o mundo — e lá conseguimos chegar até aos dias de hoje com a nossa independência intacta.
Pois, por estes dias, é interessante olhar para as histórias simplificadas que estão na cabeça de espanhóis e catalães. Já vimos que, para muitos espanhóis, a sua nação é mais antiga do que todas as outras — apesar de não ser. E os catalães, como contam o seu passado?
Contam desta maneira: a Catalunha foi o centro duma antiga coroa, com sede em Barcelona, que chegou a ter um império no Mediterrâneo e foi independente até 1714 — quando o pérfido rei de Castela invadiu aquele que era também um dos seus reinos e impôs as leis de Castela. Reparem que esta data (1714) é mais recente que a data da união de Inglaterra à Escócia. Para o sentimento nacional catalão, a perda da independência foi ontem! O que estão a fazer agora é a recuperar o que foi deles de direito, como antiga nação europeia.
Já os espanhóis mais centralistas contam outra história: a Catalunha é uma mera região duma antiga coroa medieval (a Coroa de Aragão) que, sem dramas e voluntariamente, se juntou a Castela no final do século XV, fazendo renascer a nação espanhola que, lá no fundo, tem origem na antiga Hispânia romana e no reino dos Visigodos. Virá daí — digo eu — essa estranha afirmação, desmentida por tantos factos, de que Espanha é a mais antiga nação da Europa.
Os dramas, na cabeça dos espanhóis, foram criados pelos separatistas — que terão aparecido, por magia, nas últimas décadas.
3. Confronto de Histórias
Portanto, na cabeça dum nacionalista catalão, a Catalunha é uma nação antiga, com uma História, uma língua e um território — e só em 1714 perdeu a independência.
Na cabeça dum nacionalista espanhol, a Catalunha nunca foi independente e é uma região duma nação antiquíssima, reconstituída no século XV e que, no fundo, já vinha da antiga nação visigoda.
Todas estas formas de contar a História são maneiras de olhar para os mesmos acontecimentos. Mas, atenção: não caio na tentação de achar que todas estas leituras são igualmente válidas. Há narrativas históricas mais simplistas do que outras. Dizer que Espanha é a nação mais antiga da Europa parece-me ser uma forma especialmente errada de olhar para a História.
Depois, se virmos bem, todas estas histórias são um pouco anacrónicas. As guerras e as dinastias eram assuntos de gente nobre e os povos tinham pouca noção de pertencerem a esta ou àquela nação ou a este ou àquele Estado — ao contrário do que acontece hoje em dia, em que todos nós sabemos de que país somos. Antes do século XIX, cada pessoa era da sua terra, tinha a sua maneira de falar própria da região, orava a um deus — e nessas roupagens encontrava a sua tribo...
No século XIX, os vários nacionalismos reinventaram a história, cada um à sua maneira. Essas histórias reinventadas foram transmitidas às populações através da escolarização, da literatura e por todos os mecanismos que hoje são naturais. A tribo de cada um começou a ser a tal nação, que ora é defendida pelo Estado, ora por elites sempre à espreita de criar o seu próprio Estado. Este processo pode parecer especialmente simples num país como Portugal — mas é complicadíssimo noutras paragens — basta olhar para as notícias que vêm de Barcelona.
Não há volta a dar: vivemos com essas histórias nacionais na cabeça. São mitos que fazem parte do que somos. O grande problema é quando essas histórias entram em confronto, como acontece aqui mesmo ao lado. A solução? Não a tenho. Mas talvez o pior que possamos fazer seja acreditar piamente nestas histórias e não hesitar um pouco antes de atirar as nossas declarações superlativas à cara dos outros. Por isso, faça o que fizer com a vontade catalã de votar, talvez fosse aconselhável a Mariano Rajoy não andar a espalhar por aí uma Espanha que, de tão antiga, mais parece um fantasma.
Marco Neves | Autor do romance de aventuras A Baleia Que Engoliu Um Espanhol (Guerra e Paz). Tradutor na Eurologos e professor na Universidade Nova de Lisboa. Escreve no blogue Certas Palavras.
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