Israel acaba de demonstrar que, quando quer fazê-lo, elimina seletivamente, com altíssima precisão, o alvo que escolhe para matar. Tem mestria operacional alimentada por serviços secretos para o fazer sem causar danos colaterais. Mas em Gaza nem se dá a esse apuro seletivo, pratica há 300 dias o massacre que o futuro vai provavelmente fixar como prática de genocídio, em resposta à infame barbárie cometida pelo Hamas em 7 de outubro de 2023. O atual governo de Israel faz o que lhe apetece e os aliados ocidentais deixam-se levar, sem capacidade para estancar a deriva criminosa que o chefe do governo de Israel, Netanyahu, está a conduzir e que ameaça continuar com a invasão do sul do Líbano.

É sabido que o Estado de Israel assenta em bases que o fazem aparecer nas últimas décadas como a única democracia parlamentar em todo o Médio Oriente. Israel, na sua fundação em 1948, escolheu o modelo ocidental, e é por isso o grande aliado regional do Ocidente – embora sucessivos governos de Israel violem a lei internacional e desprezem, impunemente, sucessivas resoluções da ONU.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas reuniu-se em sessão de emergência esta quarta-feira, horas depois das operações de alta precisão assassina, para eliminar, em Beirute e em Teerão, figuras de topo da Hezbollah e do Hamas. Essa reunião na sede da ONU em Nova Iorque  começou com um rigoroso e detalhado relatório da secretária-geral adjunta Rosemary DiCarlo (EUA) sobre os factos das horas anteriores no Médio Oriente. Logo de seguida, os embaixadores da República Popular da China e da Argélia denunciaram a “grave violação das normas que regem as leis internacionais” por parte de Israel “com prática terrorista”. Seguidamente, intervieram os embaixadores dos EUA, do Reino Unido e da França. Todos passaram ao lado dos factos das últimas horas que determinavam a convocação daquela reunião de emergência e, embora com apelos ao cessar-fogo e à paz regional, preferiram focar-se na denúncia do Irão como grande promotor do terrorismo e da instabilidade na região. 

Nenhuma condenação ocidental dos métodos de Netanyahu. Esta complacência das potências ocidentais com a prática obviamente terrorista do atual governo de Israel e a impotência, designadamente dos Estados Unidos, para impor a Netanyahu que acolha os apelos de Biden e de Blinken para cessar o fogo e parar os abusos que a justiça do Tribunal Penal Internacional já indiciou como crimes de guerra, resulta na cumplicidade ocidental com a continuação do sofrimento, da guerra e do terror.

O alinhamento ocidental com Israel, faça Israel o que fizer, está a aprofundar o fosso entre dois mundos e a propagar a vaga da guerra, que está a espalhar-se de Israel e da Palestina para o Líbano, o Iémen, a Síria, o Iraque e o Irão. Está a fazer crescer a fúria dos povos destes países com esse chamado Ocidente – que faz que não vê ou vê e é cúmplice.

Todos os líderes ocidentais sabem que Netanyahu precisa de manter esta guerra aberta para assim alongar o seu destino político – ele está com o total acumulado de 17 anos como chefe de governo de Israel — e escapar à justiça do próprio Estado de Israel.

Todos sabem que Netanyahu, ao ordenar o assassinato de Ismail Haniyeh na madrugada de Teerão, estava a garantir que o cessar-fogo que delicadas negociações encaminhavam é um cenário que fica afastado. Através de um só golpe, com esta execução terrorista de Haniyeh, Netanyahu enterrou as negociações da trégua que poderia evoluir para acordo de paz, inflamou como pretende o confronto entre o Ocidente e o Irão e pôs todo o Médio Oriente a fervilhar. Ao mesmo tempo, Netanyahu sacrifica os reféns, e enquanto continua a devastar a vida em Gaza incita os colonos para que continuem a ampliar assentamentos na Cisjordânia e trata de garantir que se intensifica mais uma frente de guerra, a norte com o Líbano.

Ao humilhar o regime iraniano ao ter ousado eliminar Haniyeh quando este estava em Teerão como convidado para a posse de Masud Pezeskhian como novo presidente do Irão, Netanyahu também sabota os esforços para reativação do acordo nuclear com o Irão e, ao mesmo tempo, estilhaça a prioridade que Pezeskhian tinha anunciado de melhorar as relações com o Ocidente – cujas sanções contribuem para asfixiar a economia do Irão.

É revelador que o alvo que Netanyahu escolheu para a muito seletiva eliminação em Teerão tenha sido o dirigente do Hamas que menos parecia uma personagem do Hamas. Ismail Haniyeh foi professor de literatura Árabe, era conhecido como um pragmático, mestre nos equilíbrios, fez pontes entre sunitas sauditas e xiitas iranianos, também entre os que colocam a violência como única via para libertação da Palestina e os que ainda acreditam na solução diplomática. Haniyeh, sem se afastar dos violentos, encabeçava a ala política do Hamas que percebe que é inteligente explorar as possibilidades de negociação. 

Haniyeh era, por isso, ameaça à estratégia Netanyahu de prolongamento da guerra, não apenas para evitar eleições antecipadas e escapar à justiça, também com ele a sonhar que Trump possa voltar à presidência dos EUA e então o ajude a concretizar a ambição de pôr Israel a absorver a terra palestiniana, a submeter o Irão e a dominar a região, em parceria de conveniência com a Arábia Saudita. 

O atual regime político iraniano é de repressiva ditadura teocrática, com aspirações imperiais sobre a região, traduzidas em influência determinante sobre milhões de pessoas em Gaza, no Líbano, na Síria, no Iraque e no Iémen. A prática demonstra que o Irão domina o rumo desses países.

É sabido que o Irão não usa envolver-se em ataques diretos a Israel – entrega a tarefa aos chamados “proxys”, seja o Hamas, a Hezbollah ou os Houthis.

Desta vez, o Irão atacado em casa, vai ter de responder. Os analistas que estudam em profundidade as tensões na região esperam que a retaliação iraniana seja dura mas calibrada, para não provocar a escalada para guerra total. A agressão continuada por Israel ao povo da Palestina tem sido a causa explorada pelo regime iraniano para inflamar a rua islâmica.

Em Israel, Netanyahu mostra ao longo destes quase 10 meses de guerra que coloca os interesses pessoais e a sobrevivência política dele à frente dos interesses do país dele.

Tivemos nestes dias, nas relações internacionais, o regresso a um cenário do passado: voltámos a um cenário como o da “ponte dos espiões” na Berlim dividida pelo Muro da Guerra Fria, como podemos ler na formidável ficção narrativa de John le Carré. Constatamos que, apesar do fundo fosso entre Washington e Moscovo, é possível à diplomacia dos dois países hostis negociarem uma troca de prisioneiros, sem precedentes tanto no número de pessoas como no número de países envolvidos. Neste agosto de 2024, a placa de um aeroporto de Ancara na Turquia substituiu o da ponte dos espiões em Berlim.

Haja a esperança de que a grave continuada deterioração da emergência no Médio Oriente leve os políticos que mais governam no mundo a permitir que a diplomacia consiga um acordo assim ousado que finalmente possa pacificar o Médio Oriente, com Israel confinado ao território definido pelos acordos internacionais e com o Estado da Palestina como vizinho na terra palestiniana, com governo eleito pelos palestinianos e apoio da ONU à instalação do novo Estado – tal como aconteceu entre 1999 e 2002 em Timor-Leste.  

E que os israelitas escolham, na democracia que têm, quem querem a governá-los.