Até que os meus olhos pararam num comentário lido num mural onde um conjunto de pessoas elogiava o discurso de Cavaco Silva e sublinhava que agora, sim, Cavaco tinha voltado a ser ‘o seu presidente’. No meio dos elogios à qualidade do discurso e à forma como o presidente tinha posto António Costa na linha, deparo-me com um comentário que, concordando com a opinião expressa naquele mini-forum, fazia uma ressalva sobre Cavaco Silva: o facto de não lhe poder ser perdoada a decisão sobre a lei do aborto e o casamento homossexual. Pode parecer desajustado, mas foi exactamente aqui que eu parei.
Na minha perspectiva, esta é a verdadeira e porventura mais perigosa cisão do país, de qualquer país. Uma cisão pelos costumes, pelo modo de vida. É este o palco dos mais perigosos radicalismos, seja em Portugal, seja nos Estados Unidos, onde convivem as misturas mais explosivas. É também este o terreno fértil onde as religiões não muitas vezes instrumentalizadas e a crença em qualquer Deus se transforma rapidamente no direito em julgar os outros, obrigar os outros, castigar os outros. É o espaço do debate público mais importante – porque estes temas devem ser discutidos e pela discussão talvez nos salvemos desses mesmos extremismos.
O que também nos salva desses extremos é uma cola invisível feita por uma enorme maioria que está no meio, às vezes mais à esquerda, às vezes mais à direita, mas quase sempre a pender para o meio. É essa maioria, que tantas vezes nos aborrece na sua monotonia, que nos defende de ideias absolutistas de pessoas que acreditam que a sua visão do mundo se deve sobrepor a qualquer outra visão do mundo. Seja o tema o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou o direito a possuir uma arma, assunto que inflama a política americana há décadas. Todas estas manifestações representam a mais pura matéria-prima humana. No seu dia a dia as pessoas não andam preocupadas com a história da democracia, a constitucionalidade das nomeações ou as fórmulas da governabilidade. No seu dia a dia, as pessoas andam preocupadas com a sua qualidade de vida, o seu futuro e … os valores em que acreditam. Foi pelos valores em que acreditam que muitos socialistas (e não socialistas) penalizaram António Costa. Pessoas para quem a forma como o líder do PS tomou o poder é mais grave do que discussões revivalistas sobre o PREC e a ameaça dos comunistas que comem criancinhas ao pequeno-almoço.
Os exemplos de proximidade entre a política e a religião, no sentido da crença fundamentalista, sucedem-se. Catarina Martins disse ontem na TVI que Cavaco Silva era ‘líder de seita’; na semana passada o MRPP, depois de ter acusado o seu líder histórico de “anticomunismo primário” (!), exigiu de Garcia Pereira uma das famosas ‘autocríticas’. Religioso, isto.
O Wall Street Journal publicou esta semana um artigo sobre um estudo apresentado no jornal de Social Neuroscience, da autoria de Mark Plitt do Baylor College of Medicine. O estudo demonstra que assumimos que as empresas e organizações são pessoas também. Ou seja, interpretamos as suas acções pela mesma lente com que avaliamos a acção de outro ser humano. Isto ajuda também a perceber a facilidade com que transferimos tantas vezes para os mercados, empresas, clubes de futebol, sentimentos e estados de espírito de cada um de nós – e a verdade é que encontramos um certo conforto nisso. Curiosamente, os neurocientistas sociais parecem encontrar provas de que mais facilmente nos ‘empatizamos’ com uma empresa ou instituição do que com um sem-abrigo – e nisso não há conforto algum.
Voltando ao discurso de Cavaco Silva, também aí regressámos aos medos sem rosto, mas ainda assim com estados de alma. São mercados, instituições europeias, investidores. Assustados, apreensivos, nervosos. Yanis Varoufakis, aquele cujo nome não se deve dizer para tantos que andam por aí, também falou disso na sua passagem por Portugal, diga-se. É, aliás, um exercício interessante comparar temas e visões de Cavaco e Varoufakis, o que pode ser feito aqui e aqui.
A degeneração das eleições de dia 4 de outubro numa luta de facções é um risco e um acto de irresponsabilidade para todos os que promovem esse desenrolar dos acontecimentos. Não é assim tão diferente das facções fundamentalistas que julgamos ser uma coisa do outro mundo, não do nosso, civilizado. Na génese, está uma mesma pulsão que devemos controlar, domesticar e que tem sido ao longo de séculos o legado de grandes estadistas.
Lembram-se da frase de de Abraham Lincoln? “Se quiser por à prova o carácter de um homem, dê-lhe poder.” Pensando na nossa situação política, também pode ser ao contrário. Se queremos conhecer realmente alguém, também podemos experimentar tirar-lhe poder. É essa a ameaça que António Costa sente e, na realidade, Cavaco Silva também.
Tenham um bom fim de semana.
Leituras sugeridas
Falando em fundamentalismos, há qualquer coisa nas praxes que me evoca o imaginário de comunidades religiosas, líderes espirituais e experiências libertadoras e de purificação. Exagero, eu sei. Mas há lá qualquer coisa. Seja como for, “Desobedecer à praxe” é um livro que chega agora às livrarias e que vale a pena espreitar.
A BBC descreve Robert Menard como alguém que foi “um jornalista, um socialista e um dos fundadores dos Repórteres Sem Fronteiras”. Há 18 meses venceu as eleições na cidade de Beziers, no sul de França, com o apoio da Frente Nacional de Marine Le Pen. E num ano e meio tornou Beziers num dos bastiões da extrema direita. Vale a pena ler esta história.
E depois há os milagres. Ou como seis mil mulheres indianas que todos os dias apanham chá se uniram para fazer face a uma multinacional e ganharam. Pempilai Orumai.
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