(1) Decalques e (2) saliva

Primeira impressão: os políticos franceses imitam terrivelmente bem os políticos portugueses. Sim, já me deu para ver debates ingleses e americanos e não tive essa impressão. Mas será natural, dir-me-ão alguns: afinal os anglo-saxónicos não são latinos como os portugueses e os franceses. Mas mesmo em debates espanhóis não noto esse decalque. Na França, tudo me parece copiado do mundo político português: as expressões, os tiques, os gestos...

Depois, acordo para a vida e percebo que talvez — mas só talvez — seja ao contrário. Vai-se a ver e somos nós que temos uma vida política copiada da francesa. Será?

Isso agora não interessa nada, como dizia já não sei quem. O que interessa é a saliva de Macron. Não reparei, mas ouvi dizer nas famosas e perigosíssimas redes sociais que o candidato que não é a Le Pen tinha posto em perigo o futuro da Europa ao deixar à mostra umas bolinhas de saliva.

Ah, pobre Europa, continente colado a cuspo. 

(3) Lugares-comuns e (4) falta de interesse

“Substância — pouca substância...”

Os dois candidatos discutiram muita coisa e foram, aliás, aos pormenores de forma tão esmiuçada que, se não fosse a saliva de um e as caretas de outra, a coisa tornar-se-ia aborrecida.

Sim, houve insultos e roupa suja. Mas também houve substância e ficaram claras as diferenças, o que só se recomenda. Mas no dia seguinte lá ouvi as queixas habituais — que tinha sido um debate superficial, que antigamente é que era bom. A sério? Antigamente os debates tinham mais substância? Quando foi isso? Quando ninguém os via?

Ora bolas: um debate não são monólogos em que os candidatos recitam os programas eleitorais. Um debate é um debate: é, no fundo, uma batalha.

Outras das queixas que ouvi no dia seguinte: mas que raio deu aos portugueses para agora andarem interessados em política francesa? Já há uns meses foi a mesma coisa: tudo a falar das eleições americanas! Não seria melhor falar apenas de política nacional?

Enfim, já devia estar habituado ao gosto dos portugueses por desprezar esse bicho chamado «os portugueses». Os portugueses falam de futebol? Ah, ignorantes. Os portugueses vêem debates estrangeiros? Ah, para quê? Os portugueses não concordam comigo? Ah, malandros. O que vale é que os portugueses não existem — pelo menos, assim, a uma só voz.

(5) Impressões e (6) opiniões

Bem, e as reacções ao debate entre os tais portugueses que não existem mas andam sempre no Facebook? Li quem dissesse que Macron esteve muito mal, enquanto outros respiravam aliviados com a sua prestação competente. O que ninguém parecia admitir é que essas impressões saem dum conjunto tão grande de elementos onde se misturam os traços de personalidade do espectador, as suas opiniões sobre os candidatos, as expectativas mais ou menos elevadas, uma atenção muito mais selectiva do que admitimos, aquilo que comemos ao almoço, as horas de sono que tivemos, etc. e tal — que a nossa opinião vale muito pouco. Tão pouco, aliás, que praticamente nem vale a pena dizê-la em voz alta.

Então, mas ficamos calados? Pronto, talvez isso seja radical. Mas podemos, pelo menos, admitir que a coisa é complicada. Que, sim, quando duas pessoas veem um debate, cada uma delas está a ver um debate diferente. E, claro, que um candidato pode perder na guerra das expectativas dos portugueses e ganhar na dos franceses.

(7) Excitações

Bem, por fim, a União Europeia — uma das razões pelas quais estes debates nos interessam directamente (a outra é porque são um confronto e a nossa alma muito humana gosta de pancada).

Macron defendeu a Europa, como sabemos — pelo menos, defendeu-a contra o nacionalismo de Le Pen, que por sua vontade acabava já com estas tretas.

Sim, Macron defendeu a Europa — mas deu para perceber quão difícil é fazer essa defesa. A culpa não é dele: a União Europeia é que não é propriamente excitante.

A Europa não é uma tribo, não põe o coração a bater mais depressa, não nos leva a recordar o que aprendemos na escola sobre os heróis da nossa pátria. A Europa não tem uma bandeira que seja levada para estádios em gritos. A Europa não tem quem mate e quem morra em seu nome.

A Europa é difícil de explicar e, no entanto, esta Europa é uma espécie de sonho dum qualquer optimista de há muitos anos: um continente que enterra o machado de guerra e que decide os diferendos com tratados, parlamentos e discussões sem armas. Uma Europa que andou metida em mil guerras e, agora, prefere aborrecidas reuniões.

Enfim, veremos quanto dura o tal sonho dum optimista do passado — ou até se não virá o dia em que teremos mesmo de morrer e matar pela Europa e ela se torne, à força, muito excitante. Demasiado excitante.

Marco Neves | Autor do blogue Certas Palavras. Publicou em Janeiro o seu segundo livro, com o título A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa (Guerra e Paz). É tradutor na Eurologos e professor na Universidade Nova de Lisboa.

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