1. A paz. Sim: depois de semanas a ouvir a campanha e todas as pequenas guerrilhas de cada recanto deste país, o dia das eleições é calmo. Ordeiro, até. Os próprios candidatos lá se encontram nos locais onde votamos, mas cumprimentam-se sem grandes problemas. O que era para fazer, está feito. Os insultos já seguiram, as respostas também, as ideias foram discutidas (ou não), os cartazes lá ficaram pendurados como relíquias duma guerra passada. Sim, agora é tempo de votar. As famílias, em grupo, dirigem-se às escolas...
2. A escola. Ora, aí está: é este o dia em que muitos de nós temos a oportunidade de voltar às salas de aulas. Recordamos os tempos em que brincávamos e corríamos sem grandes preocupações. Nem sequer tínhamos de pensar nos candidatos em quem votar. Por outro lado, de vez em quando, a nossa escola transformava-se em assembleia de voto — e lá acompanhávamos os pais nesse acto sério e misterioso que é votar. Até ao dia em que começámos nós a poder desenhar a nossa cruzinha — e já éramos adultos!
3. O ritual. Talvez seja só eu, mas não gostava de ver o dia das eleições transformado numa operação de Multibanco, como muitos defendem, com o argumento de que assim mais gente votaria. Para dizer a verdade, não me parece que seja óbvio que mais gente votasse. Se virmos bem, o ritual repetido, quase inalterado ao fim de tantos anos, tem o seu quê de reconfortante. Os boletins afixados à porta, a fila ordeira, os membros da mesa, a urna à espera do nosso papelinho... É como quando digo a um amigo: queres ir ao café logo à noite ver o jogo? Se ele me responder "não é preciso, tenho máquina de café em casa e também tenho televisão", é porque não percebeu o que eu queria dizer — ou não quer falar comigo. Sim, é possível votar à distância. Mas não era a mesma coisa. (E, confesso: nunca me esqueço de ir votar; mas se fosse tudo uma questão de carregar num botão no Multibanco, não sei se não me esqueceria...)
4. A noite eleitoral. As noites eleitorais são aborrecidas? É possível que sim — para quem se aborrece com tudo. Afinal, temos emoção, surpresas, corridas em que não sabemos o final, choro e riso, a esperança e o desespero — tudo numa só noite. Talvez seja um problema meu, mas gosto de ver essas maratonas televisivas, apesar dos lugares-comuns, apesar das análises apressadas, apesar da atrapalhação de quem está a olhar para números e não tem tempo para pensar em duas frases para dizer sobre esses resultados. E se não fosse assim também não tinha tanta graça. Entretanto, como estas são eleições locais, pelo país fora multiplicam-se os telefonemas, as mensagens, as peregrinações aos locais de contagem para saber novidades, a ansiedade dos milhares e milhares de candidatos e das suas famílias e amigos, que somos todos nós.
5. Os números. Sou da tribo das letras, mas gosto de números e gráficos. Gosto até de pensar no famoso método de Hondt e de como os nossos pobres votos se transformam em mandatos nas assembleias espalhadas por esse país fora. E gosto ainda de pensar que são mais de três mil eleições para freguesias, mais de trezentas eleições para as câmaras e outras tantas para as assembleias municipais. De repente, o país não parece tão pequeno — e o plural que usamos sempre (“eleições”), neste caso, faz todo o sentido!
6. A surpresa. Os discursos habituais dos desesperados do costume (ninguém vota, ninguém pensa, ninguém faz nada, no meu tempo isto não era assim — e outros que tais) costumam ser contrariados no dia das eleições autárquicas. Claro que os eleitores erram muito (mas alguém disse que não?) — mas, na verdade, até pensam no que estão a fazer. Reparem bem nas contagens dos três boletins: é raro que os números sejam iguais para a Assembleia de Freguesia, para a Assembleia Municipal e para a Câmara Municipal. O que significa uma coisa: os eleitores não votam só porque gostam daquele partido. Pensam um pouco antes de escolher e distinguem bem três eleições que, por acaso, até ocorrem no mesmo dia. ("Ah, mas depois votam em corruptos". Não se pode ter tudo.)
7. Daqui a quatro anos, há mais. Sim, votamos com o coração, não lemos os programas, escolhemos sem nos informarmos e, no fim de contas, destas eleições saem muitas assembleias onde os deputados vão passar quatro anos a arranjar formas de se atrapalharem uns aos outros. Mas, mesmo assim, podemos dizer isto: todos nós, de todos os feitios, com opiniões certas ou erradas, feios e bonitos, com não sei quantos anos de escola ou analfabetos — todos nós, neste dia, decidimos de forma igual e com regras transparentes. Há quem ache isto terrível: para muitos, a democracia é perigosa e mais valia que tudo fosse decidido pelos bons. O problema, meus caros, é que ninguém se entende sobre quem são os bons. Mais vale pôr lá o papelinho de vez em quando para irmos tentando. Falhamos, claro que falhamos. Mas daqui a quatro anos podemos tentar outra vez.
Marco Neves é tradutor, professor e autor do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e do romance de aventuras A Baleia Que Engoliu Um Espanhol. Escreve no blogue Certas Palavras.
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