O desembarque, neste 31 de janeiro, do Reino Unido da União Europeia é ainda apenas simbólico. Tem lasers e cerveja de celebração de um lado do cais (o dos brexiters radicais) e tristeza de ir às lágrimas do outro. Mas no sábado, 1 de fevereiro, embora o reino já esteja fora da união, para além de a bandeira europeia ter ficado arriada, nada de substancial terá mudado para as pessoas, tanto as britânicas como as europeias. Daqui a 11 meses, 31 de dezembro de 2020, aí sim, será o definitivo soltar de amarras, com o Reino Unido a afastar-se de vez. Com ainda muitas incógnitas e dramas.
O que agora termina é apenas a primeira temporada do folhetim Brexit, iniciado há 1317 dias, quando naquele 23 de junho de 2017 os britânicos, num referendo com resultado influenciado por muita manipulação e mentiras, escolheram (51,89% dos 33.577.342 que votaram) a saída do Reino Unido da União Europeia. Na Escócia, 62% do voto foi amplamente pela permanência, tal como na região de Londres (59,9%) e na Irlanda do Norte (55,7%). Mas o voto das regiões rurais, sobretudo nas Midlands, impôs a saída.
O guião para a segunda temporada deste folhetim Brexit já tem período marcado para a ação: dura exatamente 11 meses, entre 1 de fevereiro e 31 de dezembro deste 2020. O enredo, que promete muitos golpes de teatro e até rudeza nas negociações, gira em volta da definição da relação futura entre o Reino Unido e a UE. Vai ser conseguido um acordo de comércio livre que substitua a pertença ao mercado único e à união aduaneira? É muito duvidoso que haja entendimento para o zero nas tarifas e o zero nas quotas. Os direitos alfandegários serão uma querela principal na negociação e afeta todas as partes. Tal como as quotas para a pesca e para os serviços financeiros. Está para discussão o envolvimento britânico no programa Erasmus – que é uma das sementes da identidade europeia – e como vai ser no futuro o processo de reconhecimento mútuo de diplomas académicos. Será possível o acordo sobre o respeito das normas sociais e ambientais fixadas pela União Europeia? O que há para negociar é gigantesco e um impasse num dos temas pode levar ao descarrilamento da negociação geral.
Em fundo, nas negociações destes próximos 11 meses, está um valor fundador, logo em 1957, da união da Europa: o da liberdade de circulação. Tanto a das pessoas como a das mercadorias.
Por enquanto, nos próximos 11 meses, período de transição, tudo vai seguir igual, com exceção do que é político. O Reino Unido deixa de ter eurodeputados, deixa de ter comissário europeu, o primeiro-ministro deixa de ter assento no Conselho Europeu, os cidadãos de nacionalidade britânica deixam de poder ser funcionários europeu. Há uma exceção para os atuais funcionários fora de cargos dirigentes: desde que vivam na Bélgica há mais de cinco anos, podem requerer a nacionalidade belga e continuar como funcionários europeus, porque não são considerados representantes do Reino Unido.
Mas, em janeiro do ano que vem, o que é que vai ser preciso para um cidadão europeu entrar no Reino Unido? É o que está ainda por acertar em definitivo. Não é de esperar que seja preciso um visto para entrar como o que é necessário para visitar os EUA. Mas sabe-se desde já que a possibilidade de residir no Reino Unido passa a depender de um procedimento de autorização da imigração britânica, o EU Settlment Scheme (EUSS). Estão previstas autorizações por cinco anos ou por tempo indefinido. Mas também há a possibilidade de recusa do direito de residência.
Uma certeza: acaba a liberdade de voar para o Reino Unido para, sem limitações, procurar trabalho e casa por lá. O que fizeram muitos portugueses das últimas gerações, tantos com o idealismo Erasmus, passa a estar condicionado pelo requerimento EUSS aos serviços oficiais de imigração britânicos.
É assim que a próxima temporada, com a duração de 11 meses, deste folhetim Brexit, vai certamente ter episódios de alta tensão.
Como acontece em todas as séries, as personagens entram e saem de cena, ficam ganhadoras ou perdedoras com a evolução do enredo.
À cabeça dos ganhadores está Boris Johnson, com Nigel Farage logo ao lado. Os principais derrotados políticos são David Cameron e Theresa May.
Se houvesse que escolher uma personagem revelação seria certamente John Bercow, o speaker com voz sonora a chamar à ordem os deputados, a barrar atropelos e a liderar o parlamento com respeito pelas diferentes minorias políticas.
Para ator principal, Boris Johnson ex-aequo com Nigel Farage. Foram os mais hábeis a representar, mentiram com ar de quem está a falar verdade.
O prémio do melhor guião vai para o francês Michel Barnier, pelo modo como dirigiu a negociação do Brexit com defesa firme das posições da União Europeia mas com flexibilidade para evitar impasses.
Barnier vai ser personagem central na próxima temporada do Brexit, aquela que começa neste 1 de fevereiro, com enredo dominado pela questão de saber se o fim de 47 anos de relação é um divórcio litigioso ou uma separação amigável.
Em paralelo há uma outra série a começar: a que trata o futuro da União Europeia. Não faltam emboscadas. O Leste da Europa está cheio de gente que quer menos Europa – mas que não renuncia aos fundos recebidos da solidariedade europeia, vital para terem saído da anemia do tempo do Pacto de Varsóvia.
A União Europeia nasceu com a ambição de fazer valer no mundo a força de um conjunto de estados com valores comuns. Tem-se, porém, deixado resvalar para a afirmação, no seu interior, do poder de estados individuais, descaradamente contra os princípios da União Europeia.
O Reino Unido vai agora funcionar como teste: as pessoas são menos ou mais felizes fora da União Europeia? É o grande enredo para os próximos tempos. A Europa fica a perder se não souber dar a volta ao desamor, criar motivação e esperança, o que passa por ir mais e melhor ao encontro dos cidadãos.
É devido não subestimar o Reino Unido. É a quinta mais robusta economia do planeta. É a segunda ou terceira (conforme o setor de atividade) na Europa. Tem desemprego baixo (4%) e dívida pública razoável (87% do PIB). Tem a City, que é a segunda maior praça financeira no mundo.
Mas os britânicos estão divididos como nunca e não vai ser fácil para os líderes políticos manterem a coesão territorial do reino.
Este 31 de janeiro é o fim de uma temporada. O melhor é dizermos good bye com um sorriso
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