Em 1983, o Festival da Canção coroou Armando Gama como vencedor. O tema vitorioso intitulava-se “Esta Balada Que Te Dou”. Desde essa data, e por inúmeras vezes ao longo de mais de 30 anos, aquela cantiga do Armando Gama foi referida de forma insistente pelo Herman José. O humorista fez sempre questão de denunciar as semelhanças entre a “Esta Balada Que Te Dou” e a canção “Still Crazy After All These Years”, que Paul Simon editou em 1975. Até aqui, tudo bem: o Herman sempre aliou inteligência à mordacidade, e nada estava a salvo do seu brilhante radar de escárnio. Mas a história não se resume a isto.

Em 1983, o 2º lugar do Festival da Canção foi atribuído ao tema “A Cor Do Teu Baton”,  interpretado por nada mais nada menos que o Herman José. “O 2º classificado é o 1º dos derrotados” diz um chavão, e então podemos começar a desconfiar de 30 e tal anos de azedume e mau-perder por parte do Herman. As evidências estão nas repetidas sugestões de plágio. Talvez a minha insinuação seja desonesta, sobretudo se recordarmos que nada estava a salvo da zombaria do Herman José, mas a minha insinuação é tão honesta quanto a insinuação dele de plágio. Ao fim ao cabo, os dados que temos para suspeitar do roubo do Armando são tão objectivos, e tão subjectivos, quanto os dados que temos para suspeitar do mau-perder do Herman.

A possível mesquinhez ainda se agudiza se voltarmos a 1983. Uns meses após a derrota no Festival da Canção, o humorista estreou o “Tal Canal”, talvez a mais importante obra de comédia televisiva que este país já produziu. A partir desse programa, e com uma vigência de 20 e muitos anos, o Herman José tornou-se na figura de maior relevo da nossa cultura popular – a mais famosa, a mais reverenciada, a mais impactante. Por outro lado, o Armando Gama viu desde 1983 até agora o declínio absoluto da sua carreira: o eclipsar contundente, as incursões na música ligeira de gosto duvidoso (que lhe valeram lugar cativo no panorama pimba) ou a permanência em espetáculos de covers. Esta decadência é tão ou mais notória se considerarmos o glorioso currículo de Gama antes de 1983, antes do Festival: a passagem numa das mais míticas bandas nacionais (os “Tantra”, que fundou), ou as competentíssimas canções que fez para o duo “Sarabanda”. Assim sendo, a acreditar no mau-perder de Herman José, não se trata dum derrotado enfraquecido a malhar num vencedor portentoso; é o contrário -  é um vencedor absoluto a espezinhar um vencido. A isso chama-se mesquinhez.

Antes que julguem que estou a alçar um auto-de-fé ao Herman José, rebato a ideia. Sou da geração mais hermanizada - nunca criticaria gratuitamente o nosso patriarca. O que relatei apenas aponta para o gelo fino onde patinam quase todas as suspeições, sobretudo aquelas que facilmente podem implicar-nos. Admito que o Herman seja só um galhofeiro, o nosso bully preferido, mas aqui não se coibiu de enfatizar uma suspeita e, em consequência, não se livra de ser implicado noutra suspeita, esta de estirpe invejosa.

Pela ligação que referi no início, não comento a última eliminatória do Festival da Canção, e também me abstenho de julgar a desistência do Diogo Piçarra. Volto antes o olhar para o burburinho acusatório que ladeou o Diogo nos últimos dias. Por mais racionais que tenham sido os críticos, ou imparciais os artigos sobre o caso, poucos suspeitadores são, por sua vez, imunes de serem suspeitos. Refiro-me sobretudo a outros músicos e ao papel imprensa. Se nem sempre houve mau-perder, houve abundância de má-fé.

Custa-me perceber qualquer escritor de canções que não tenha dado o benefício da dúvida ao Diogo. Fazer uma canção, e querê-la acessível a públicos abrangentes, é um exercício de inventarmos aquilo que já nos parece existente. Permite-se o óbvio, porque isso favorece o intuitivo na escuta. O objectivo é criar uma coisa nova que soa a familiar e de sempre. Por isso mesmo, resvala-se com relativa facilidade; qualquer escritor de canções já “inventou” melodias que mais tarde veio a descobrir, ou a lembrar-se, que existiam previamente.

Acredito piamente que o Diogo é inocente dum plágio premeditado, e que só lhe faltou o tal processo de descoberta ou lembrança; que só lhe faltou alguém que o advertisse a tempo. “Canção do Fim” é um tema simples, propositadamente básico e imediato (eu estava a ouvi-lo em directo e a prever sempre as notas seguintes). Procurar soluções básicas não é defeito, mas obviamente corre maior risco de encaixar em canções pré-existentes. Um músico que ignore esta hipótese de inocência (e li uns quantos que não a contemplaram) ou pelo menos de negligência, está cheio de má-fé.

Já a imprensa é ainda mais inexcusável na forma como noticiou o possível plágio. Nem me vou referir às insinuações, reporto antes o péssimo jornalismo. Todas as publicações de referência, até as menos tidas por sensacionalistas, apostaram em reproduzir a ladainha das redes sociais. Plagiaram a desinformação sobre o plágio, colando IURD e Piçarra nas mesmas parangonas.

Quando me apercebi do sururu, precisei de menos de 5 minutos para saber que a canção supostamente replicada não era da autoria de nenhum membro da IURD, sendo anterior à própria fundação da IURD. Nesses 5 minutos ainda me sobrou tempo para descobrir o autor original (o norte-americano Robert ‘Bob’ Cull), a pauta escrita, a data das primeiras edições fonográficas, por aí fora. Só muitas horas depois, e provavelmente motivados por comentários mais acintosos, alguns jornais online começaram a corrigir a notícia, mas raramente retirando a IURD da equação.

A imprensa falhou. Se me disserem que falhou num detalhe irrelevante, então ainda mais embaraçoso se torna tudo. Das duas uma: ou houve demasiada sofreguidão em publicar aquilo que corria nas redes sociais, ignorando pormenores – e isso é grave, porque se trata de sensacionalismo primário – ou então houve uma insistência nos pormenores errados, porque eles tornavam a notícia mais apetecível – e isso é grave, porque se trata de sensacionalismo primário.

Sendo legítimo noticiar uma suspeita, adensando-a com pormenores risíveis, então também é legítimo suspeitar da má-fé com que a notícia foi tecida. É que, como sabemos, a IURD é um manancial de alvoroço e comicidade, porque ainda vivemos todos em 1995. O Festival da Canção em causa é o de 2018, mas ainda vivemos todos em 1995. Só faltava uma fotografia do Abrunhosa acorrentado ao Multiusos de Guimarães a ilustrar a notícia.

Termino com o testemunho abonatório. Do Diogo Piçarra só tenho a apontar negativamente uma primeira reacção desajustada aos rumores de plágio. Não creio que tenha usado os melhores argumentos, e ficou à mercê de críticas impiedosas. Mas nem esse momento discordante me faz duvidar, um segundo que seja, da boa índole do rapaz em todo o processo – desde a escrita da canção até à desistência do Festival. Conheço o Diogo e resumo-o da melhor forma: simpatia serena, capacidade de trabalho e extrema humildade; isto é o suficiente para que ele me arranque uma afeição perene, e só posso aclamá-lo inocente. Na semana passada citei várias vezes o Eclesiastes com o “Tudo é vaidade”. Hoje diria, apocrifamente, que “quase tudo é inveja”.

3 CANÇÕES NÃO FESTIVALEIRAS PARA OUVIR EM SEQUÊNCIA:

1982

1985

1991