1. Já passou de músico, já passou de poeta, é o artista que mais amo no planeta. Mais do que admiração, o meu amor por Caetano Veloso é tão incondicional que nem vacila com o interesse dele pelo Quinto Império, ou a última vez que foi cantar a Telavive. Quando voltou, disse que não voltaria lá. Ainda espero mais do que isso, mas não o amarei menos se continuar à espera. E lá estarei no Coliseu dos Recreios para a semana, como milhares e milhares que há décadas enchem Coliseus com ele. A primeira vez que eu quis fugir de casa, antes de ter idade para fugir mesmo de casa, foi para ir a um concerto de Caetano Veloso. Homem, mulher, negro, branco, mulato, índio, ele é o/a que virá: já veio. A nossa sorte, estarmos vivos na Terra ao mesmo tempo que ele. Podermos até cantar juntos, sambar miudinho, enviar abraçaços da plateia.

2. Mil e uma razões para amar Caetano é como quem diz que não acabam, mas hoje só falarei de uma. Uma daquelas que por sua vez se desdobram em mil, e também por isso convocam os raios do tempo. Vou chamar-lhe a mulatice de Caetano.

Assim, de caminho, já convocando as benções para a tempestade, cito “Fevereiros”, filme de um querido amigo, Marcio Debellian, sobre o qual escrevi aqui em Abril, e que os portugueses puderam ver nas últimas semanas, em sessões no Porto, em Amarante, e em Lisboa. A protagonista do filme é Maria Bethânia, irmã de Caetano. Mas, como disseram tanto Julio Cortázar, meio de brincadeira, quanto Mãe Menininha do Gantois, muito a sério, Bethânia e Caetano são a mesma pessoa. Sendo sobre a devota Bethânia (e o Carnaval do Rio, e o Candomblé da Bahia, e as outras devoções de Santo Amaro, cidadezinha do Recôncavo Bahiano, com a casa dos Veloso ao centro), este filme também é, pois, sobre o ateu Caetano.

E aí Caetano conta que o pai era descendente de escravizados. Mulato, descendente de negros, portanto de escravizados. Portanto ele próprio, Caetano, é mulato. Palavras exactas dele: “Eu sou mulato.” Mais adiante fala na “mulatice” do Brasil, no sentido amplo de mistura, não apenas de negro com branco. Aliás, Mabel, outra irmã de Caetano e Bethânia, conta no filme que uma bisavó deles era índia pataxó, logo que todos eles têm sangue indígena.

Parêntesis de uma fã mais fã ainda desde que em 2017 desfilei na Festa de Reis de Santo Amaro, com a cidade na rua, incluindo os Veloso: nesta família, cada irmão é especial, desde Rodrigo a atar e distribuir coroazinhas emplumadas de rosa, à doce Mabel, que só de ouvir já se ama. E quem não amará Mabel, ao vê-la contar no filme como em criança quis tanto ser anjo da procissão de Nossa Senhora, mas nunca foi escolhida, porque era considerada escura demais. Depois, a sua irmã Maria Bethânia não só foi anjo, como subiu ano a ano até coroar Nossa Senhora, honra maior.

A história de Mabel Veloso nunca ter sido anjo por ser “escurinha”, da forma magistral como ela a conta — cravando aquele espinho na cara do que é o Brasil, mas sem um grão a menos de amor pela irmã —, essa história é todo um tratado da História.

3. História essa que, claro, é o que nos junta. Vamos lá: a miscigenação existe porque o colonizador do Brasil, Portugal, misturou os seus homens brancos com as mulheres indígenas, e depois com as mulheres africanas que para lá levou à força, como escravizadas. Misturou é ao mesmo tempo um facto e um eufemismo. Facto, porque o resultado é uma mistura mesmo. Eufemismo, porque está no lugar da palavra violação: homens com poder abusando de mulheres capturadas, fossem “pegas no laço”, como se dizia das índias, fossem escravizadas, ou subjugadas de qualquer outra forma, mulheres que não estavam livres para rejeitar essa relação, muitas vezes traduzida em filhos. O colonizador não fazia estes filhos porque tinha uma abertura, uma tolerância, uma propensão para a mistura — como o luso-tropicalismo quis vender, até hoje com sucesso —, e sim porque 1) Portugal, ao contrário de outras potências coloniais, levou pouquíssimas mulheres brancas para o Novo Mundo e 2) povoar o Novo Mundo era uma das condições essenciais à colonização.

Atalhando, a miscigenação nasceu da violência em massa sobre mulheres indígenas e negras. E essa violência continua a a não ser largamente reconhecida em 2018, fora da academia e de núcleos activistas. Mas qualquer debate sobre miscigenação terá de partir daí, da origem. E qualquer debate sobre miscigenação que não parta da origem vai gerar equívocos, involuntários e deliberados. Aliás, gerar equívocos tem sido um método do não-debate.

A primeira violência colonial é a violência sobre o corpo das mulheres, no século XVI como em 2018. Desvalorizar a violência do que se passou com as mulheres no século XVI continua a ser uma violência para as mulheres de 2018 (e para quem quer que se interesse pela verdade). Uma forma de dizer: para quê usar a palavra violação, era assim que as coisas eram, esqueçam. Sim, era assim que as coisas eram, foi assim que as coisas foram durante séculos, é assim que as coisas continuam a ser em demasiados lugares do mundo, e é por isso é que têm de ser encaradas. Uma longa história da violência, paralela à história masculina das violências.

4. Da violência base da miscigenação no Brasil resultaram muitos milhões de pessoas. Tantos que a cara do Brasil continua a ser morena, apesar de todo o esforço oficial de branqueamento levado a cabo por governos brasileiros, com incentivos à emigração europeia, desde a véspera da Abolição da Escravatura, em 1888. O Brasil é índio, preto, branco, mulato, caboclo, cafuzo. É o resultado de toda essa história. E a Segunda Abolição, que Caetano sempre defendeu que era necessária — volta a dizê-lo neste filme —, tem de ter todo o mundo lá, livre, ou não o será. Não será abolição. E como ela é necessária.

E, tal como a vejo, isso quer dizer que cada um tem de estar livre para reclamar ser o que quiser: índio, preto, branco, mulato, caboclo, cafuzo, mulher, homem, trans, intersexo, brasileiro, do mundo, tudo junto ou nada. Que só cada um sabe o que é, e mais virá a ser. Caetano sempre disse mulato, palavra entretanto proscrita por núcleos do movimento negro. Caetano acredita na mulatice do Brasil, acredita que a mulatice do Brasil é um mais e não um menos. Caetano é mulato, descendente de índios, negros e brancos, e só ele tem o direito a dizer o nome que resulta de tudo isso, no caso dele. E eu acredito com ele nessa beleza de cada um poder dizer em voz alta tudo aquilo que é. Que ninguém tenha o direito de reduzir aquilo que outro quer ser, e portanto é. A luta tem de ser para cada um ser mais, não para alguém decidir por outro o que o outro é, e não é.

5. Esse sistema solar que é Caetano escreveu e cantou a mistura em muito mais canções do que caberia aqui. Mas vou terminar com uma que provavelmente não ouviremos no Coliseu, neste concerto de Caetano com os seus filhos. Foi o Marcio quem a lembrou, a propósito da mulatice, e do filme. “Sugar cane fields forever”:

Verdes mães

Cavalinho de flecha

Eu quero, eu quero

O enho tem balangandãs

Sou um mulato nato

No sentido lato

Mulato democrático do litoral

Vem

Comigo no trem da Leste

Peste, vem no trem

Pra Boranhém

Verde vênus

Ir, ir indo, ir, ir indo, ir, ir indo

Pra passar fevereiro em Santo Amaro

E até lá nos vemos no Coliseu, porque se quem é ateu como eu viu milagres, um deles é a existência de Caetano Veloso. Só pensar nele dá esperança à raça humana.