Mohammed bin Salman tem 36 anos, portanto é muito grande a probabilidade de continuar a governar o país que é o maior exportador de petróleo do mundo durante décadas, tal como é provável que o petróleo continue a ser um fabuloso criador de riqueza do planeta nos tempos vindouros.

(A título de curiosidade: os Estados Unidos são o maior produtor de petróleo, mas consomem mais do que produzem e têm reservas mais pequenas; o terceiro maior é a Rússia; as razões para diminuir o seu consumo, não são só ecológicas...).

Mohammed bin Salman ou MBS – vamos chamar-lhe assim, que é como toda a gente o conhece, menos os sauditas, para quem é o Príncipe Herdeiro, Primeiro-Ministro delegado e Ministro da Defesa – é um dos “n” filhos do rei absoluto, Salman bin Abdulaziz al Saud, “guardião das duas mesquitas sagradas” (Meca e Medina) e primeiro-ministro do reino distribuído em 1918 pelos ingleses à casa de Saud, na sequência da derrota dos turcos na I Guerra Mundial. É uma longa história, que não vamos contar aqui.

Também não vamos contar as regras de sucessão na casa de Saud, que tem actualmente cerca de 15.000 membros da família real, porque são complicadas, frequentemente desobedecidas e diferentes do sistema monárquico básico, em que o novo rei é filho do rei falecido.

O que interessa para a nossa “história das Arábias” (literal e simbolicamente) é que MBS não tinha nascido quando faleceu o rei Khalid, em 1982. Sucedeu-lhe o décimo filho do fundador da dinastia, Fahd, que por sua vez viria a falecer em 2005, passando o título para o irmão, Salman bin Abdulaziz. Este já nos interessa. Tem 13 filhos de três casamentos. Por razões que nos escapam, Salman, entretanto muito doente, primeiro passou as atribuições do cargo para um primo e, finalmente, em 2017, para o nosso MBS. Daí que MBS seja “apenas” primeiro-ministro “delegado”, uma vez que Salman continua vivo, embora, ao que se saiba, esteja ligado às máquinas e não intervenha na governação.

Como dissemos, a escolha de MBS foi inusitada, mesmo dentro dos estranhos padrões sucessórios da Arábia Saudita. Salman casou primeiro com uma princesa urbana e culta, de quem teve cinco filhos. A mãe de MBS vem de uma tribo do interior. Durante a adolescência e juventude,  reza a história que MBS era tratado pelos meios-irmãos como um inferior, embora tivesse direito às mesmas férias de iate na Riviera e outros benefícios das mil e uma noites. Não se conhecem os pormenores de amizades e preferências entre os incontáveis príncipes, mas o comportamento de MBS ao chegar ao poder demonstra uma atitude de desforra pela sua condição de, digamos “inferior entre os superiores”.

Muito novo, MBS começou por desenvolver as reformas que os sauditas mais jovens desejavam (70% da população tem menos de 30 anos). Antes dele, a única opção para os tempos livres era rezar na mesquita; agora há cinemas, shoppings, discotecas, raves, corridas de Fórmula 1, piscinas e jogos de computador à disposição. As mulheres podem sair sozinhas – se a família assim o deixar – ir ao médico, ter carta de condução e (o topo da modernidade) e passaporte.

Os comportamentos ocidentalizados permitiram a entrada de álcool, drogas e prostituição – maioritariamente estrangeira, atraída pelas quantias exorbitantes pagas pelos seus serviços.

Desapareceu o Comité para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, mas ...

Mas não se pense que a modernidade corresponde a um relaxamento das tradições. Embora tenha desaparecido o Comité para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício (nome muito significativo da polícia de costumes) o país continua a seguir o “wahabismo”, que é a versão mais radical do islamismo. Tal como na Índia, em que a abolição constitucional das castas não as eliminou das relações entre os cidadãos, também na Arábia Saudita a sociedade continua fechada às “modernices” dos comportamentais ocidentais.

E o que também não mudou é o poder discricionário e inescrutável do Estado, dirigido totalitariamente por MBS. As pessoas podem ser presas, torturadas e mortas, como conta o The Economist, ou, a seguir a uma punição, serem promovidas, tudo sem explicação. Por “pessoas” entenda-se não apenas os súbditos anónimos (34 milhões, não contando os imigrantes sem estatuto), mas também os príncipes.

Logo que chegou ao poder, em 2017, MBS resolveu iniciar aquilo a que chamou uma campanha contra a corrupção económica no país. Centenas de príncipes e grandes negociantes foram detidos em dois hotéis de luxo, o Ritz-Carlton e o Marriott, fechados nos quartos sem canetas, máquinas de barbear ou óculos – nada que pudesse servir de arma. E sem telemóveis, evidentemente.

Alguns foram torturados, todos foram coagidos a fazer uma lista dos seus bens. Segundo alguns cálculos, MBS expropriou (ou extorquiu, melhor dizendo) cerca de cem mil milhões de dólares ao grupo. Mas, mais do que o dinheiro obtido, mostrou-lhes quem é que manda.

A partir daí, os visitantes da Arábia Saudita são unânimes em confirmar que nenhum saudita diz uma palavra menos amável sobre o seu líder. Muitos, quando falam alguma coisa, fecham primeiro os telemóveis em caixas à prova de escuta. O controle e a censura não são apenas de ordem política e moral, mas também em relação à reverência perante o chefe incontestável.

Mesmo os seus mais chegados nunca sabem o que lhes pode acontecer. O chefe da polícia secreta, segundo o relato do já citado The Economist, foi preso e torturado, para depois ser instalado num novo posto importante. Esta atitude de acenar com a cenoura e bater com a vara parece ser uma política habitual de MBS.

Em relação ao estrangeiro, o comportamento é semelhante. Ficou famosa a demissão de Saad Hariri, primeiro-ministro do Líbano. Convidado a visitar MBS em Riade, poucas horas depois de chegar anunciou na televisão a sua demissão. No mesmo ano, 2017, a Arábia Saudita dirigiu um boicote ao Qatar, o mais pequeno Estado da península. Um dos primeiros-ministros do Iémen, um regime mantido por MBS, teve a mesma sorte que Hariri.

MBS e Trump deram-se muito bem. O presidente visitou Riade, participou em todas as cerimónias (algumas bastante ridículas aos olhos dos ocidentais) e riu-se muito com o Sheik.

Jared Kushner, conselheiro de Trump para o Médio Oriente, quase conseguiu que a Arábia Saudita e Israel se reconhecessem mutuamente. Foi o velho Salman, numa intervenção raríssima, que impediu as negociações.

Em Março de 2018, MBS foi aos Estados Unidos, onde se encontrou com Peter Thiel (fundador, entre outras empresas, da Paypal), Tim Cook (Apple), Rupert Murdoch (fundador, entre outros, da Fox News e da Sky News)), James Cameron (realizador de filmes como "Titanic" e "Avatar") e Dwayne Johnson (ator e lutador de wrestling conhecido como "The Rock"). Não faltou quem quisesse conhecer o homem que controla um fundo soberano de 230 mil milhões de dólares, como lembrou muito bem o The Guardian.

Ciente de que a benesse do petróleo pode um dia acabar, MBS concebeu um projecto de proporções bíblicas: a cidade de Neom, uma urbe futurista e auto-sustentável colocada no meio do deserto. Lembra a cidade satélite do filme Helysium e calcula-se que custará 500 mil milhões de dólares.

Tudo parecia correr bem para MBS, até que um golpe de importância previsivelmente menor, tomou proporções internacionais: o homicídio do jornalista Jamal Khashoggi na embaixada da Arábia Saudita em Istambul, em Outubro de 2018. Por uma daquelas imponderabilidades históricas, este acto horrível chocou o mundo inteiro, não só os dirigentes nacionais, mas também a opinião pública. Para isso terá contribuído, certamente, o facto de Khashoggi, saudita, ser jornalista do Washington Post, e também porque os serviços de espionagem de Erdogan (outro nome com currículo de tiranias na cena internacional, diga-se) terem gravações do homicídio, que prontamente divulgaram ao mundo.

Até hoje, MBS desmente que tenha ordenado a operação – o que foi contrariado em vários apuramentos que identificaram que foi executada pelos seus homens de mão, que viajaram expressamente para Istambul. Depois de muitos vai-e-vem políticos, os executantes acabaram julgados na Arábia Saudita e desapareceram da vista.

Mas o estrago na reputação do Sheik, perdura até hoje e dificilmente desaparecerá – no fundo, tornando-se o símbolo do que é a sua postura.

Até 2020, MBS manteve-se na sombra – se é possível uma figura como ele desaparecer dos noticiários – mas a partir daí, lançou uma operação de reabilitação, ajudada pelos muitos milhões que tem à sua disposição e, claro, pelo petróleo inesgotável que brota dos poços sauditas.

Começou a investir milhares de milhões de dólares em tecnologia, entretenimento e espectáculos, no sentido de dar uma imagem mais palatável das suas intenções. Em Abril comprou o clube de futebol Newcastle e em 2021 criou uma liga internacional de golfe, a LIV, com prémios para os jogadores na ordem dos 255 milhões de dólares, muito acima dos oferecidos pelo British Open e a LBA. Muitos jogadores recusaram, mas outros não resistiram a prémios muito acima dos geralmente atribuídos nas competições internacionais. Trump, é claro, vai ter dois torneios nos seus campos...

Nada disto teria muito efeito, eventualmente, não fosse uma ajuda colateral de Putin, um paradigma da governação musculada, ao invadir a Ucrânia. De repente, o petróleo escasseia e a Arábia Saudita continua a ser o seu maior fornecedor... O Presidente Biden, que tinha chamado “pária” a MBS, visitou-o a 16 de julho, na esperança de que o emirado aumente a produção. Parece que o encontro não teve resultados concretos quanto ao petróleo, mas certamente que reabilitou MBS na imoral cena política internacional, em que os interesses estão sempre acima dos princípios.

Seguiu-se agora a visita a Macron, em Paris da qual resultou um comunicado, em que não se fala de petróleo, mas “se sublinha a importância de uma coordenação contínua entre a França e a Arábia Saudita no que respeita à diversificação dos fornecimentos de energia aos países europeus.”

Também não se falou de Kashoggi nem de outros fait-divers desagradáveis.

É que as histórias das mil e uma noites têm esse poder encantador.