A questão da responsabilidade das redes (ou plataformas) sociais no conteúdo que divulgam começou a levantar-se por volta de 2009-10 e continua a gerar uma interminável discussão sobre a legalidade, necessidade e possibilidade de fazê-lo sem cair numa forma de censura.
Em 2004, quando lançou o Facebook, Mark Zuckerberg teceu considerações sobre o grande benefício de uma plataforma onde todo o mundo (literalmente) podia dizer o que quisesse e trocar opiniões sem nenhum tipo de controle. A rede social, achava ele, iria auto-regular-se e promover uma troca ilimitada de informação. A única preocupação, logo à partida, era evitar pornografia, vista num conceito muito alargado que incluía qualquer tipo de nudez. Imediatamente surgiram objecções ao sistema, que controlava apenas imagens, porque excluía quadros famosos ou ternas fotos de mães a amamentar — desde que aparecessem seios, o pudico algoritmo cortava e castigava os postadores com suspensões temporárias.
Mas foi em 2009-10, e sobretudo a partir de 2016 — na campanha para as presidenciais norte-americanas —, que as autoridades e os utentes começaram a perceber que a imparcialidade das redes, que entretanto incluíam o Twitter, o Instagram e o Youtube, não podia ser dissociada da parcialidade dos participantes. As informações falsas, as provocações e as agressões tinham atingido um nível tal que o Congresso começou a investigar as consequências, ao mesmo tempo que o próprio Zuckerberg teve de reconhecer que o seu sonho do Céu ia a caminho do Inferno.
As plataformas existentes, e as que nasceram depois, como o TikTok, o Telegram, etc. etc., montaram gigantescas operações de moderação, que incluem não só algoritmos para certas palavras como também equipas de milhares de “fiscais” que tentativamente lêem todas as publicações. É uma tarefa necessária, porém ingrata, e, em última análise, impossível. (Só a China consegue de facto censurar tudo, porque na China os interesses do Partido e os milhões de recursos humanos possibilitam o impensável.)
Avancemos até Janeiro de 2021. Numa atitude perfeitamente lógica mas inevitavelmente discutível, o Twitter decide suspender a conta do ex-Presidente dos Estados Unidos — razões não lhe faltavam, dado que Trump mentia e espalhava falsas informações a torto e a direito, num discurso de ódio impossível de aceitar. Segundo uma contagem do “Washignton Post” , durante quatro anos terá feito 30.573 declarações deste teor, cerca de 21 por dia. Mas a gota de água foi a insurreição de 6 de Janeiro; Trump já não era presidente e continuava a sua campanha de tweets inflamados.
Por estas alturas já todas as plataformas sociais praticavam “moderação de conteúdos”, não só quanto a factos políticos como todo o tipo de atitudes consideradas anti-sociais — vinganças, violências diversas, teorias nocivas. Até hoje se discute, por exemplo, o efeito de certas plataformas nos jovens, com histórias horripilantes de pré-adolescentes e adolescentes que se suicidam por serem vítimas de bullying ou porque são incentivados por “amigos”.
Também se discute, e discutirá sempre, onde é que acaba a moderação e começa a censura. Até agora as plataformas têm conseguido não ser criminalmente responsabilizadas pelas atitudes criminosas dos seus aderentes — o que decerto as levaria à falência —, mas o problema ético e moral persiste.
A avancemos até Fevereiro deste ano, 2022. Donald Trump perdeu a presidência há dois anos, mas ainda não o reconheceu. Nem ele, nem os milhares de políticos republicanos que continuam a dizer que as eleições foram aldrabadas — “The Big Lie” —, nem os milhões de cidadãos que acreditam numa mentira evidente. Mas faz falta a Trump o seu Twitter, onde era seguido por quase 89 milhões de pessoas. É verdade, 88,9 milhões. Decide então lançar a sua plataforma privativa, a que dá o sugestivo nome de “Truth Social” — o que faz lembrar a famosa afirmação do seu apaniguado Rudolph Juliani: “Truth is not true”, “A verdade não é verdadeira”. Como é sempre o caso com Trump, uma atitude política é também uma oportunidade de negócio. Não se trata apenas de usar os posts para pedir dinheiro aos apoiantes; segundo uma pesquisa feita pela revista digital “Axios”, a plataforma foi financiada por uma chamada “blank check company” — ou seja, “uma empresa em formação que não tem um plano de negócios ou objectivo declarado e planeia fazer uma aquisição ou fusão com outra ou outras empresas”, segundo a definição oficial. Uma treta legal, em duas palavras. A empresa em questão chama-se Digital World Acquisition Corp e ainda não conseguiu reunir o capital necessário para existir de facto e comprar a Truth Social.
Nada disto impede a dita Truth Social de se propor a chegar aos 56 milhões de utilizadores em 2024 e 81 milhões em 2026. Tudo boas intenções, porque neste momento a plataforma tem 4,17 milhões de assinantes. (Como se costuma dizer, história em actualização...)
Vem aqui a propósito falar de outro narcisista patológico e megalómano, Kanye West, que agora quer ser conhecido como Ye. West deu nas vistas há algum tempo ao declarar-se oficialmente apoiante de Trump e crédulo na Big Lie. Em seguida voltou a destacar-se por afirmar publicamente, nas plataformas e em entrevistas televisivas, que existe uma conspiração judaica para dominar os Estados Unidos, que os negros são realmente judeus e outras insanidades do mesmo calibre. É lamentável como um músico que já foi um dos mais influentes do mundo — segundo este artigo exemplar do “The New Yorker” — tenha resolvido desperdiçar o seu enorme talento para se meter em política e se tornar num megafone do disparate.
E Ye também quer ter a sua própria rede social. Porque não, já agora? Mas não vai pelo caminho de Trump, porque não conhece as artimanhas financeiras do seu ídolo e, em vez de ganhar dinheiro com uma ideia esdrúxula, vai gastá-lo. Está em negociações para comprar a Parler, uma plataforma alternativa de extrema-direita cujo moto é “Fale livremente” (“Speak freely”). A rede foi lançada em 2018, tem 20 milhões de inscrições, mas apenas 40 mil utilizadores activos diários.
Não é muito, pelo que não custará muito caro a Kanye West, mas com a entrada de Ye decerto ficará rejuvenescida e mais activa.
A Internet, uma maravilha da comunicação, proporcionou a Dark Web, o lado negro da rede, onde se vendem números roubados de cartões de crédito, se fazem chantagens e se vê pedofilia. O Twitter, uma plataforma simpática onde se pode fazer uma simples elucubração sobre o estado do tempo, levou ao aparecimento de redes sinistras, repletas de más ideias e piores propostas.
Onde há o Bem, tem de haver o Mal. Está na Bíblia.
Só um deus nos pode valer!
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