O ponto de não retorno

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

Num ano em que o tema do racismo — ou a alegada ausência do mesmo — tem estado cada vez mais presente na sociedade portuguesa, nesta semana atingiram-se novos picos no que toca ao clima de tensão e conflitualidade que se vive.

Os problemas começaram no início da semana, quando um grupo de “nacionalistas” se manifestou à porta da associação SOS Racismo de madrugada, munidos de máscaras brancas e tochas.

O grupo responsável pela ação, denominado de “Resistência Nacional”, disse que promoveu o ajuntamento para protestar o “ racismo anti-nacional" e uma "homenagem aos polícias mortos em serviço”. A associação, ao invés, crê que esta foi tentativa de intimidação — especialmente tendo em conta que os participantes evocaram a organização de supremacia branca “Ku Klux Klan” nos seus preparos — e fez seguir uma queixa ao Ministério Público.

Ainda o pais não estava refeito deste episódio, outro sucedeu-se com contornos ainda mais graves. Ontem, foi noticiado que três deputadas — Beatriz Gomes Dias, Mariana Mortágua (BE) e Joacine Katar Moreira (não inscrita) —, assim como várias pessoas pertencentes a associações de esquerda e/ou anti-racistas, receberam um e-mail com ameaças, instando os destinatários a saírem do "território nacional" e rescindir "as suas funções políticas", tendo como prazo 48 horas para fazê-lo.

A pena de não cumprirem esta exigência, dizia a mensagem, consistiria em “medidas tomadas contra estes dirigentes e os seus familiares, de forma a garantir a segurança do povo português”. Apesar de não constar em todos os emails, alguns foram assinados com o nome “Nova Ordem de Avis-Resistência Nacional”, nome da organização que esteve à porta da associação SOS Racismo.

Sem surpresas, o caso — que já a ser investigado pela Polícia Judiciária e pelas secretas e foi alvo da abertura de um inquérito pelo Ministério Público — já mereceu repúdio:

  • Eduardo Ferro Rodrigues, condenou, na sua condição de presidente da Assembleia da República, os “atos racistas e fomentadores do ódio” que procuraram intimidar parlamentares por parte de um "grupúsculo de extrema-direita";
  • O Governo, pela voz da ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, considerou a ação "uma ameaça à própria democracia" que deve indignar "todos os democratas" e que está a ser encarada “como um crime”.
  • O Presidente da República pediu “tolerância zero”, mas também “sensatez” para combater o racismo. Marcelo Rebelo de Sousa disse também que ““é tão condenável uma atuação racista que tenha contornos criminosos contra deputados como contra qualquer cidadão português. Não há cidadãos de primeira e de segunda”.
  • Os partidos políticos reagiram também com repulsa ao ato, da esquerda à direita.

Também sem surpresas, aquele que tem sido o mais mediático defensor da tese de que Portugal não tem um problema de racismo, André Ventura, minimizou o caso, chamando os visados de “coitadinhos” e dizendo-se ele próprio vítima de ameaças de morte.

Casos como estes que se sucederam, sabemos, são um pouco por todo o mundo parte de um movimento de clivagem global que tem vindo a germinar, mas que teve como catalisador a morte de George Floyd às mãos da polícia. No entanto, se olharmos para o que aconteceu em Portugal em concreto desde o início do ano, já tinham ocorrido episódios desta natureza antes da morte do afro-americano. Afinal de contas, este foi o ano em um um deputado sugeriu a uma colega parlamentar voltar para o seu país de origem e propôs guetizar uma comunidade ética a propósito da pandemia, Foi também o ano em que um jogador negro saiu de campo depois de ser abusado racialmente. Mais recentemente, já no pós-Floyd e depois das manifestações e contra-manifestações a propósito da sua morte, um ator português foi baleado em plena luz do dia num homicídio que está a ser investigado pelos seus contornos racistas.

Todos estes episódios foram alvo de condenações públicas por parte dos principados responsáveis políticos, mas, para várias associações e colectivos de afrodescendentes e ciganos, as palavras de apaziguação já não chegam, tendo divulgado hoje uma carta aberta onde se pede que se passe da palavra à ação, exigindo aos decisores políticos que tomem ações concretas para combater o racismo e diminuir o crescimento da extrema-direita.

Já o antídoto para lidar com este problema, defende Marcelo, é responder a casos como este "com inteligência", ou seja "não fazer aquilo que quem promove esse tipo de escalada pretende que seja feito, que é criar um clima emocional de clivagem na sociedade portuguesa”.

O tema não vai, certamente, ficar por aqui, até porque os autores das ameaças prometeram ainda nos emails que agosto será “mês da luta contra os traidores da nação e seus apoiantes” e do “reerguer nacionalista”, o que faz antecipar mais ações do mesmo teor.

No entanto, com os acontecimentos que se vão somando, vivem-se dias em Portugal onde é cada vez mais palpável o sentimento de que, se não se passou uma linha vermelha, está quase.

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