No dia em que Abril voltou às ruas, lembrou-se o passado para construir um melhor futuro

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

Há precisamente um ano, foi tirada uma fotografia que, talvez não entrando para o panteão iconográfico das imagens captadas a 25 de abril de 1974, arrisca-se a, pelo menos, ser símbolo de uma fase da história nacional.

Foi quando Carlos Alberto Ferreira, no alto dos seus 72 anos, subiu a Avenida da Liberdade sozinho carregando uma enorme bandeira de Portugal consigo. Onde devia estar um mar de gente, surgia este homem, ermo, porque em 2020 não se pôde celebrar o 25 de Abril das ruas, obrigando a covid-19 a fazê-lo à janela.

Este ano, o caso foi bem diferente. Com a pandemia a dar algumas tréguas, alguns milhares puderam descer pela opulenta avenida rumo aos Restauradores, numa versão reduzida dos festejos, mas ainda assim o possível — no Porto viveu-se situação idêntica, com centenas a percorrerem várias ruas da Invicta até desembocarem na Avenida dos Aliados.

Celebrou-se a liberdade: a que o Movimento das Forças Armadas propiciou há 47 anos e a que hoje se pode cuidadosamente fruir quando a ditadura não é política, mas epidemiológica.

Em Lisboa, porém, deu-se um caso curioso e inédito: houve não um, mas dois desfiles. Podia ser fruto do ditado “não há fome que não dê em fartura” depois da ausência de festejos em 2020, mas não. O que aconteceu foi um desfile paralelo, organizado pela Iniciativa Liberal depois de uma sucessão de polémicas entre o partido e a comissão organizadora do desfile tradicional — com os liberais a acusar a esquerda de “uma atitude sectária” e de, no seu entender, querer tomar conta de uma data que se quer “nacional”.

O ambiente na Avenida da Liberdade não foi, por isso, o de unidade como talvez fosse desejável, mas os tradicionais opositores da IL — o PS, o PCP e o BE — também fizeram por minimizar a controvérsia, apontando antes para o clima de celebração que a data inspira. “Olhando para a frente e para trás, sinto uma imensa alegria ao fim de 47 anos vendo que o povo saiu à rua, mas sobretudo que os jovens saíram à rua”, optou por destacar, por exemplo, Jerónimo de Sousa.

No entanto, se nas ruas não houve essa unidade, foi curiosamente na Assembleia da República onde ela esteve mais próxima de acontecer, após o discurso de Marcelo Rebelo de Sousa.

Da Iniciativa Liberal ao Bloco de Esquerda, houve rasgados elogios às palavras do Presidente da República, cabendo apenas a José Luís Ferreira, d’Os Verdes, o tom mais crítico. Até André Ventura, seu opositor há quatro meses, lhe saudou a tentativa de apelar “a uma espécie de consenso geracional” sobre a revolução de 1974.

E sobre o que é que Marcelo falou? Depois de Ferro Rodrigues sinalizar os desafios do presente — em particular a degradação do discurso público, a desinformação e os problemas na Justiça — o Presidente da República optou por um discurso onde alertou para a necessidade dos portugueses coletivamente olharem para o seu passado sem preconceitos.

"É prioritário estudar o passado e nele dissecar tudo, o que houve de bom e o que houve de mau. É prioritário assumir tudo, todo esse passado, sem autojustificações ou autocontemplações globais indevidas, nem autoflagelações globais excessivas", disse Marcelo, num discurso que teve mais de 20 minutos.

Ao contrário do discurso de 2020, centrado no trauma recente da pandemia e nos desafios que Portugal teria de enfrentar a partir de então, Marcelo evitou falar da atualidade mas procurou projetar o futuro. Indo desde os combatentes anticoloniais do lado africano aos retornados que “chegaram rigorosamente sem nada, depois de terem projetado uma vida que era ou se tornou impossível", o tom de Marcelo foi de procurar a conciliação numa fase em que as batalhas pela memória histórica se agudizam e se politizam. "Não há, nunca houve, um Portugal perfeito nem condenado. Só há um Portugal, que amamos, além dos claros e escuros”, frisou, pedindo que "se retire lições de uma e de outra, sem temores nem complexos, com a natural diversidade de juízos própria da democracia".

Em 2022, Portugal irá finalmente ultrapassar o tempo que esteve em ditadura com o que está em democracia desde 1974. A data assinalar-se-á a 24 de março e, por isso mesmo, há já um programa de festas que se estenderá desde esse dia até 2026, onde celebrarão 50 anos de 25 de Abril. Hoje, a data não foi redonda, mas nem por isso foi menos saborosa.

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