Governo e médicos estão numa relação com diagnóstico reservado
Covid-19, varíola-dos-macacos, hospitais com urgências pediátricas e obstetrícias sem profissionais suficientes para criar uma escala. O ano de 2022 está a ser tudo menos calmo no campo da Saúde e não se vê fim à vista para os problemas.
Desta vez são os médicos de família a pedir a demissão de Marta Temido. Em causa está uma norma do Governo incluída no Orçamento do Estado para 2022 que permite a contratação de médicos não especialistas para os centros de saúde – uma norma que foi considerada um ataque direto à especialidade de medicina geral e familiar.
Em protesto, este sábado, cerca de duas centenas de médicos de família estiveram concentrados à frente do Ministério da Saúde, exigindo a revogação imediata da polémica medida.
“Marta Temido sem perdão, pede a demissão”, podia ler-se num dos cartazes, em que também se refere a existência de uma situação de “luto no Serviço Nacional de Saúde” (SNS).
O presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), Nuno Jacinto, pouco depois de ter discursado aos manifestantes, foi recebido pela ministra Marta Temido, que se encontrava esta tarde no Ministério da Saúde.
“Estamos perante um problema grave criado pela nova lei do Orçamento do Estado, um retrocesso na prestação de cuidados aos nossos utentes nos centros de saúde. Rejeitamos médicos não especialistas a assumir a responsabilidade de fazer o seguimento de listas de utentes completas nos centros de saúde”, justificou Nuno Jacinto, no início de um protesto que teve a presença do bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães.
Em declarações aos jornalistas, o presidente da APMGF defendeu que existem em Portugal especialistas em medicina geral e familiar “em número suficiente para cobrir as necessidades da população, mas não tem havido a capacidade de os captar e reter no SNS por questões políticas que foram acontecendo nos últimos anos”.
“Temos mais de 1700 especialistas já fora do SNS. A solução não é ir buscar não especialistas, mas garantir os especialistas que já formámos – e que continuaremos a formar nos próximos anos – a fazerem o trabalho para o qual foram treinados”, contrapôs.
Para ultrapassar as atuais insuficiências ao nível da cobertura de médicos de família, Nuno Jacinto destacou como vias para a solução a questão salarial, mas, também, “a existência de carreiras atrativas, que sejam funcionais e que permitam uma diferenciação progressiva baseada no mérito”.
“Precisamos de melhores condições de trabalho, designadamente de melhores instalações, e de uma valorização global do trabalho destes profissionais. Essa valorização não acontece quando se passa a mensagem de que qualquer médico pode fazer o vosso trabalho”, reagiu.
Na perspetiva do presidente da APMGF, a medida do Governo “é uma desconsideração e um desrespeito” à especialidade de medicina geral e familiar, “desvalorizando aquilo que foi feito ao longo das últimas quatro décadas”.
A ministra da Saúde reconheceu que cerca de 1,3 milhões de pessoas não têm médico de família, um problema que atribuiu, em parte, ao crescimento do número de inscritos no Serviço Nacional de Saúde (SNS), que totalizava em maio deste ano os 10,5 milhões de utentes, mais 455 mil do que em 2015.
Marta Temido afirmou, na quinta-feira, que a contratação de clínicos sem especialidade para colmatar a falta de médicos de família pretende responder aos casos de doença aguda, não contando para os rácios de cobertura de medicina geral e familiar.
No final da reunião de hoje com a ministra da Saúde, Nuno Jacinto revelou que continua longe um acordo, mantendo-se a intenção do Governo de contratar médicos sem especialidade para centros de saúde.
“A ministra da Saúde referiu que estes médicos sem especialidade não poderão ter em seu nome próprio as listas de utentes, mas não clarificou aquilo que estes colegas vão fazer para os centros de saúde, sobretudo quando estiverem em locais isolados, muitas vezes sozinhos e em condições muito complicadas”, referiu.
Para Nuno Jacinto, após a reunião com Marta Temido, que durou cerca de uma hora, “continua-se sem perceberem qual será efetivamente o papel destes colegas” médicos sem especialidade.
“Continua-se sem perceber como é que eles não vão substituir os médicos de família enquanto tal e continua-se sem se perceber como será possível reter mais especialistas e captar mais especialistas em medicina geral e familiar”, completou.
Interrogado se, em algum momento, a ministra da Saúde admitiu não aplicar a norma do Orçamento do Estado para 2022 que permite a contratação de médicos sem especialidade para funções em centros de saúde, o presidente da APMGF disse que essa perspetiva não foi assumida pelo Governo.
“Do nosso ponto de vista, o esclarecimento que existe é curto. Isto não se resume só a um diferente entendimento em relação ao Orçamento do Estado para 2022, mas é uma questão de fundo relacionada com a existência de especialistas de medicina geral e familiar nos centros de saúde e o precedente perigoso que se pretende abrir. A curto e médio prazos pode levar a que tenhamos cada vez mais médicos não especialistas nos centros de saúde a fazerem múltiplas tarefas que o Governo não especificou”, declarou.
Questionado se Marta Temido agendou novas reuniões com a sua associação, o presidente da APMGF esclareceu que não.
“Apenas ficou assente que concordamos em discordar em muitos pontos, nomeadamente nestas questões relacionadas com a captação de recém-especialistas. Do nosso ponto de vista, continuaremos a defender a medicina geral e familiar de forma intransigente. É uma questão de defesa da especialidade e dos cuidados de saúde que prestamos”, justificou.
Depois de uma reunião sem acordo com a ministra da Saúde, Nuno Jacinto prometeu que os membros da sua associação vão continuar a protestar.
“Temos audiências pedidas com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, com os partidos, algumas já marcadas. Continuaremos a mostrar qual o nosso papel e importância até que em definitivo seja reconhecido e garantido de que só os verdadeiros médicos família é que estarão a fazer o seguimento dos utentes em Portugal”, acrescentou.
Nesta luta, a associação conta com o apoio de Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos que esteve este sábado presente na concentração em frente ao ministério da Saúde.
“Esta situação é totalmente inaceitável, mas estou aqui, sobretudo, para apoiar os doentes. Os cidadãos, os utentes, não merecem que o Ministério da Saúde lhes indique o caminho de um médico sem especialidade, quando existem médicos com especialidade em Portugal,” declarou aos jornalistas o bastonário da Ordem dosa Médicos.
De acordo com Miguel Guimarães, são formados mais de 500 especialistas em medicina geral familiar por ano e estão fora do Serviço Nacional de Saúde (SNS) cerca de 1700 médicos com esta especialidade.
“Em primeiro lugar, têm de ser criadas condições objetivas para que os jovens especialistas possam ficar a trabalhar no SNS. Optem pelo SNS, em vez do setor privado ou de uma ida para o estrangeiro. Recordo que no último concurso cerca de 40% das vagas ficaram uma vez mais por ocupar”, observou.
Para o bastonário da Ordem dos Médicos, para responder às carências na cobertura da rede de cuidados de saúde primários, “é preciso criar mais unidades de saúde familiares modelo B, muito mais unidades”.
“Se for necessário, que se desenvolvam as unidades de saúde familiares modelo C, precisam de ser reguladas. Significa, na prática, o Estado contratar especialistas em medicina geral e familiar para atrair listas de utentes”, adiantou.
Ainda de acordo com Miguel Guimarães, o Estado deverá contratar médicos que estão à beira da reforma, ou que já se reformarem, dando-lhes uma maior valorização do seu trabalho para que possam reforçar o SNS”.
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