Um processo disciplinar ou um processo de democracia?

Tomás Albino Gomes
Tomás Albino Gomes

No dia 30 de agosto foi instaurado um processo a uma jornalista do canal SportTV depois de esta ter feito, na zona de entrevistas rápidas, no final do encontro entre Sporting e Desportivo de Chaves (0-2) para a I Liga de futebol, uma pergunta ao treinador dos ‘leões’ “fora contexto do jogo que acabara de terminar”.

O que aconteceu?

A jornalista perguntou a Rúben Amorim sobre as declarações proferidas por Islam Slimani, atleta que este verão deixou o Sporting CP e assinou pelos franceses do Brest, mas que esteve afastado das opções técnicas do técnico leonino, um tema abordado diretamente por Amorim na segunda metade da época, no entanto sem grandes pormenores, precisamente sobre a relação com o treinador do clube de Alvalade.

Slimani disse nas redes sociais que era pouco utilizado pelo treinador que dava preferência a um outro seu colega de equipa. "Aconteceu que ele não gostou que eu jogasse bem e fosse forçado a tirar o jogador dele. Então encontrou desculpas mas todas essas verdades aparecerão em breve".

A própria jornalista assumiu, antes de fazer a pergunta, que esta estava fora do enquadramento, assumindo, no entanto, que a atualidade dos factos obrigava a que fosse feita - "uma última pergunta e um pouco à margem do jogo, porque é impossível fugir a esse tema. As palavras de Slimani dirigidas a Rúben Amorim. Que comentários lhe merecem o que Slimani disse que, ao que tudo indica, não queria que ele jogasse porque preferia que Paulinho estivesse no onze inicial? -, e Rúben Amorim, de forma respeitosa, disse que na zona de entrevistas rápidas preferia falar "um bocadinho sobre o jogo" e que responderia a essa e outras perguntas na conferência de imprensa.

Não houve insistência da jornalista da Sport TV, no entanto o delegado do Sporting pediu ao delegado da liga que registasse a questão para que a mesma constasse no relatório final da partida. Na sequência, o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol decidiu instaurar um processo à jornalista, afirmando que esta “situação que não se enquadrava no regulamento das competições organizadas pela Liga Portugal”.

As repercussões

A divulgação do caso mereceu várias reações. O Sindicato dos Jornalistas (SJ) considerou o caso “um atentado à liberdade de imprensa”, manifestando a "falta de sensibilidade democrática revelada pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, composto por ilustres juristas, e estranha igualmente a manifesta ilegalidade do regulamento das competições organizadas pela Liga Portugal no que a esta matéria diz respeito”.

Para o SJ, esta é “uma forma gravíssima de censura absolutamente proibida no ordenamento jurídico português” e uma prática “suscetível de poder constituir um ilícito de natureza criminal como são os atentados à liberdade de imprensa”.

O caso levou até a uma declaração de Pedro Adão e Silva, ministro da Cultura, que assegurou estar a acompanhar “com muita preocupação” a decisão da Federação, sublinhando que esta limita a liberdade.

“Acompanho com muita preocupação uma decisão que limita a liberdade de imprensa e que põe em causa os princípios basilares da nossa constituição”, afirmou, citado em comunicado, vincando que os jornalistas são, “por definição, livres de fazerem as perguntas que entenderem”.

Para além do SJ, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) repudiou a decisão do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol de “instaurar, ilegalmente”, um processo a uma jornalista da SportTV, salientando que “a CCPJ é o único organismo nacional a quem incumbe, por lei, assegurar o cumprimento dos deveres profissionais dos jornalistas”, a Comissão diz ser “da sua exclusiva competência legal apreciar, julgar e sancionar a violação desses deveres”.

A Comissão da Carteira apontou especificamente para o ponto em que os estatutos da liga consideram os jornalistas do canal detentor dos direitos televisivos do jogo transmitido como um "agente desportivo".

"Jamais um jornalista é ou poderá ser considerado um ‘agente desportivo’”, sustenta, notando que “nem mesmo a própria Federação Portuguesa de Futebol assim o considera nos seus estatutos, nem o poderia considerar”, assim como “não o observa nenhum normativo legal, ao qual não se pode impor nenhum regulamento disciplinar seja ele de que natureza for, num Estado de direito”.

Salientando que, “um jornalista, tal como resulta da Lei (artigo 1.º, nº 1 do Estatuto do Jornalista), é aquele que exerce as suas funções com capacidade editorial de pesquisa, recolha, seleção e tratamento de factos, notícias ou opiniões, através de texto, imagem ou som, destinados a divulgação, com fins informativos”, a CCPJ “exorta o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol a proceder de imediato à anulação do processo disciplinar e ao respetivo pedido de desculpas à jornalista”.

No comunicado, a Comissão da Carteira Profissional exorta também a FPF “para que execute alterações imediatas no seu estatuto disciplinar retirando os jornalistas da condição de ‘agentes desportivos’”, de forma a “não os enquadrar em nenhuma outra situação que venha a ser passível de lhes causar qualquer tipo de constrangimentos”.

A Iniciativa Liberal, para além das condenações, pediu hoje à Provedora de Justiça que solicite a fiscalização da constitucionalidade do regulamento da Liga Portugal.

“Na sequência de notícias vindas a público sobre a instauração de um processo disciplinar a uma jornalista da Sport TV, devido à formulação de uma pergunta que alegadamente extravasa o domínio do jogo entre o Sporting Clube de Portugal e o Grupo Desportivo de Chaves, realizado no passado dia 27 de agosto, a Iniciativa Liberal (IL) solicitou esta quinta-feira à Provedora de Justiça que requeira a fiscalização da constitucionalidade do regulamento da Liga Portugal”, pode ler-se no comunicado enviado à agência Lusa.

O regulamento em causa equipara os jornalistas a agentes desportivos, considerando a IL que a “subjetividade do conceito de agente desportivo, que coloca jornalistas e agentes das forças de segurança à mercê dos órgãos disciplinares de uma federação desportiva, atenta até contra o princípio da separação de poderes”.

“E, não menos grave, colide frontalmente com direitos, liberdades e garantias plasmados na Constituição da República Portuguesa, desde logo com a liberdade de expressão e de imprensa”, critica.

Para a IL, “acresce a este atropelo democrático o facto de a presidente do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, órgão responsável pela instauração do processo, ser deputada e ainda vice-presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias”.

E afinal... não há sanção?

O Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol disse hoje que não está a ponderar sancionar a jornalista da SportTV que questionou o treinador do Sporting, Rúben Amorim, sobre o avançado Islam Slimani.

“O CD estava obrigado pelas normas do regulamento da Liga a instaurar um procedimento disciplinar, uma vez que constava no relatório do delegado, mas não pondera sancionar a jornalista”, disse fonte oficial do CD da FPF.

Segundo a mesma fonte, foi decidido atribuir ao processo “natureza urgente” e este deverá servir também para “clarificar uma aparente desconformidade constitucional” da norma que está no regulamento de competições.

Servirá este processo para resolver outros processos menos democráticos presentes nos estatutos da Liga Portuguesa de Futebol?

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