A guerra "moralmente intolerável" e o adeus de Biden na ONU
No dia em que o governo do Líbano elevou de 491 para 558 mortos o balanço dos ataques israelitas na segunda-feira, o número mais elevado desde a última guerra entre o Hezbollah e Israel em 2006, o secretário-geral da ONU, António Guterres, criticou o nível de impunidade "politicamente indefensável e moralmente intolerável" praticado por "um número crescente de Governos".
No discurso de abertura do Debate da 79.ª sessão da Assembleia Geral da ONU (UNGA79), Guterres traçou um cenário sombrio do mundo atual, que está "num estado insustentável", onde "guerras acontecem sem nenhuma pista de como terminarão" e a "postura nuclear e novas armas lançam uma sombra escura" sobre o planeta.
"Estamos a caminhar em direção ao inimaginável — um barril de pólvora que corre o risco de engolir o mundo", afirmou o líder das Nações Unidas (ONU), recordando que 2024 é o ano em que metade da humanidade vai às urnas e em que todos “serão afetados”.
Avaliando que a impunidade, desigualdade e incerteza estão ligadas e em colisão, o ex-primeiro-ministro português focou-se na ausência de punição em algumas geografias, onde "um número crescente de Governos" e outros atores "se sentem no direito de ter 'um cartão de saída livre da prisão'", ou seja, de cometerem crimes impunemente.
"Eles podem atropelar o direito internacional. Podem violar a Carta das Nações Unidas. Podem fechar os olhos a convenções internacionais de direitos humanos ou decisões de tribunais internacionais. Podem fazer pouco caso do direito internacional humanitário. Podem invadir outro país, devastar sociedades inteiras ou desconsiderar completamente o bem-estar do seu próprio povo. E nada vai acontecer", criticou Guterres.
"Assistimos a essa era de impunidade em todos os lugares — no Médio Oriente, no coração da Europa, no Corno de África e mais além", especificou.
O que se vai passar neste debate?
O debate de alto nível da UNGA79 arrancou hoje, em Nova Iorque, com a presença de dezenas de chefes de Estado e de Governo de todo o mundo, e irá prolongar-se até ao próximo dia 30.
Sobre o conflito na Ucrânia, o líder da ONU repetiu que é hora de uma paz justa baseada na Carta da ONU, no direito internacional e nas resoluções aprovadas pelas Nações Unidas.
Gaza, afirmou, "é um pesadelo ininterrupto que ameaça levar toda a região com ele" e "basta olhar para o Líbano".
"Deveríamos todos ficar alarmados com a escalada. O Líbano está à beira do abismo. O povo do Líbano – o povo de Israel – e o povo do mundo – não se podem dar ao luxo de que o Líbano se torne outra Gaza", disse Guterres, suscitando aplausos da audiência.
O secretário-geral sublinhou que a velocidade e a escala da matança e destruição em Gaza, um conflito que já matou mais de 200 dos funcionários das Nações Unidas, são diferentes de tudo o que já viu ao longo dos seus dois mandatos como líder da ONU.
Guterres aproveitou a presença na Assembleia-Geral da ONU de dezenas de chefes de Estado e de Governo para prestar uma homenagem especial à Agência das Nações Unidas para Refugiados Palestinianos (UNRWA) - alvo constante de ataques de Israel - e a todos os trabalhadores humanitários em Gaza.
O líder da ONU apelou à comunidade internacional para que se mobilize em prol de um cessar-fogo imediato no enclave palestiniano, da libertação de todos os reféns e de um processo irreversível no sentido de uma solução de dois Estados.
Numa mensagem aparentemente dirigida a Israel, que tem promovido milhares de colonatos na Cisjordânia, Guterres questionou: "Para aqueles que continuam a minar esse objetivo com mais colonatos, mais apropriação de terras, mais incitação, eu pergunto: Qual é a alternativa? Como é que o mundo poderia aceitar um futuro de um Estado que inclui um número tão grande de palestinianos sem nenhuma liberdade, direitos ou dignidade?".
O ex-primeiro-ministro português abordou ainda o conflito no Sudão, onde uma luta brutal pelo poder desencadeou uma "violência horrível", incluindo violações e agressões sexuais generalizadas.
"Uma catástrofe humanitária está a desenrolar-se à medida que a fome se espalha. No entanto, potências externas continuam a interferir sem uma abordagem unificada para encontrar a paz", lamentou.
No Sahel, disse Guterres, a expansão dramática e rápida da ameaça terrorista requer uma abordagem conjunta, enraizada na solidariedade, sem que a cooperação regional e internacional funcione.
Também Myanmar, República Democrática do Congo, Haiti e Iémen registam níveis assustadores de violência e sofrimento humano, perante uma "falha crónica" em encontrar soluções, apesar de que "os desafios que enfrentamos são solucionáveis", assumiu o secretário-geral.
O último discurso de Joe Biden na ONU
O dia foi também marcado pelo último discurso de Joe Biden na ONU, aproximando-se o fim da sua presidência.
Neste discurso, o presidente dos EUA focou-se nos apelos à unidade e à paz, especificamente no Médio Oriente e na Ucrânia, lembrando aos presentes que os líderes não podem "reagir com desespero".
Além de uma despedida, o discurso foi pretexto para um recapitular de décadas de ação política e uma oportunidade para apelar à confiança no futuro, sem fugir aos temas dos riscos de um conflito generalizado no Médio Oriente. "Ninguém pediu esta guerra iniciada pelo Hamas", frisou o presidente norte-americano, antes de desejar ao povo palestiniano do enclave um futuro livre da influência do grupo islamita apoiado pelo Irão.
"O mundo não pode esquecer o que sucedeu a 7 de outubro" de 2023, avisou ainda Biden, lembrando os assassínios e atos de terror daquele dia a milhares de civis israelitas. O mundo "tem a responsabilidade de fazer com que tal nunca se repita", afirmou.
Mencionou ainda as centenas de mortos civis causadas pelo ataque do Hamas a Israel há 11 meses e as dezenas de pessoas sequestradas. "Encontrei-me com as famílias desses reféns. Lamentei com elas", referiu. "Estão a viver um inferno".
Porém, não deixou de condenar Israel: "Também os civis inocentes em Gaza estão a viver um inferno. Milhares e milhares mortos, incluindo trabalhadores humanitários. Demasiadas famílias deslocadas, amontoadas em tendas, perante uma situação humanitária terrível", referiu Biden.
"Chegou a hora para as partes concluírem os termos, fazer regressar a casa os reféns e garantir a segurança para Israel e Gaza livre do roteiro do Hamas, aliviar o sofrimento em Gaza e pôr fim a esta guerra", concluiu Biden.
No discurso falou ainda sobre a Ucrânia e lembrou o peso da liderança mundial dos EUA.
"As boas notícias são que a guerra de Putin falhou, assim como o seu objetivo fulcral", defendeu Biden. "Ele pretendeu destruir a Ucrânia, mas a Ucrânia continua livre. Pretendeu enfraquecer a NATO, mas a NATO está maior, mais forte, mais unida do que nunca, com dois novos membros, a Finlândia e a Suécia".
Por fim, terminou com esperança e recordou os diversos conflitos a que assistiu, nomeadamente a guerra do Vietname, que dominou o início da sua vida política.
"As coisas podem melhorar", afirmou. "Nunca nos devemos esquecer disso. Tenho assistido a isso ao longo da minha carreira".
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