Em 2023 não faltaram acontecimentos dignos de registo. Além de continuarmos a assistir ao impressionante galope de tecnologias de inteligência artificial generativa, constatámos, por exemplo, o colapso do banco das startups (Silicon Valley Bank), a queda da exchange de criptoativos FTX e a ascensão meteórica da Nvidia. No entanto, o ano também começou e acabou marcado pela resiliência de um empreendedor que obrigou a Apple a suspender a venda dos dois modelos mais avançados da sua gama de relógios inteligentes (Watch Series 9 e Watch Ultra 2) antes do Natal.
Falamos, claro, do caso judicial que envolve a Masimo, uma empresa de tecnologia médica, a determinação de Joe Kiani, o seu fundador e CEO, e a Apple. Em causa, um litígio de patentes em que a Masimo e o seu CEO acusam a empresa de Tim Cook de se apropriar da sua tecnologia. No centro da questão está uma única ferramenta presente nos smartwatches da marca da maçã, que mede os níveis de oxigénio no sangue. Caso remonta a 2021, quando a Masimo acusou a Apple de violar de patentes relacionadas com a sua tecnologia de oxímetros de pulso.
Como explica o The Wall Street Journal (WSJ), Kiani apostou neste processo o futuro do negócio que passou as últimas três décadas a construir — é que os custos com o processo já ascendem aos 100 milhões de dólares. Porém, o líder da Masimo já fez saber que pretende lutar até ao fim e que só quer ouvir falar num possível acordo se a gigante de Cupertino aceitar pagar pelo uso da sua tecnologia e alterar a forma como lida com as empresas mais pequenas.
O que leva o David a pensar que pode vencer o Golias? O passado. Como nota a The Verge, a Massimo já esteve em tribunal por motivos semelhantes — e ganhou.
Um e-mail madrugador a Tim Cook
No “olho do furacão” desta guerra de patentes com a Apple está Marcelo Lamego, cientista brasileiro, que enviou um mail a Tim Cook em 2013 quando era CTO de uma subsidiária da Masimo, a Ceracor. No e-mail madrugador, Lamego dirigiu-se a Cook com um pitch tentador ao dizer que acreditava “firmemente” que podia ajudar a desenvolver uma “nova onda de tecnologia” que faria da Apple “a marca número 1 no mercado da medicina, fitness e bem-estar”. Isto é, estava disponível para se juntar aos quadros da divisão Watch da Apple — o que veio acontecer uns meses depois, ainda que a experiência tenha sido curta.
De acordo com a Bloomberg, os advogados da Masimo alegam que Lamego não tinha conhecimentos prévios sobre como desenvolver funcionalidades de leitura do oxigénio no sangue (a sua experiência era sobre interfaces neurais e não sobre sensores de saúde). Ou seja, segundo a acusação, Lamego aprendeu a desenvolver esta tecnologia nas empresas de Kiani e depois entregou-a de mão beijada à Apple.
- Os argumentos da Masimo: como Lamego se despediu meros meses após ter sido contratado em 2014, a defesa diz que sua a saída foi consumada assim que passou os “segredos” à Apple. Ou seja, a Masimo alega que Lamego desenvolveu os objetos das suas patentes quando ainda estava na empresa, pelo que tinha a obrigação de as acreditar à Masimo, a sua entidade empregadora na altura. A par, a Masimo acusa também a Apple de, em 2013, ter iniciado discussões sobre uma possível parceria com o intuito de se apropriar das suas ideias — reforçando esta acusação com o recrutamento do seu Chief Medical Officer e alguns dos seus engenheiros para as implementar.
- Os argumentos da Apple: A empresa da maçã rejeita todas estas teses. No caso de Lamego, alega que este saiu passado pouco tempo porque não se adaptou à realidade de Cupertino — a Bloomberg detalha que Lamego queria orçamentos “milionários”, chocava com superiores e queria contratar os seus engenheiros sem necessitar de aprovação. No caso das discussões sobre parcerias, a Apple justificou em outubro ao The Wall Street Journal que a Masimo foi apenas uma de várias empresas de tecnologia médica com as quais se reuniu — e que uma das razões pelas quais a parceria não foi para a frente teve que ver com o facto de a Masimo não ser uma empresa voltada para o consumidor.
Até ao fim
Joe Kiani, de 58 anos, é o CEO da empresa de tecnologia médica Masimo. Nascido no Irão, Kiani mudou-se com a família para o Alabama quando tinha 9 anos. Aos 14 - e já a viver sozinho com a irmã nos EUA porque os pais tinham regressado ao país de origem -, como dominava a matemática, saltou uns anos à frente e acabou o ensino secundário mais cedo do que o normal. Seguir-se-ia um mestrado em Engenharia Eletrotécnica na Universidade de San Diego, para, aos 24 anos, em 1984, fundar a Masimo depois de a startup onde estava na altura ter rejeitado continuar o seu projeto: um oxímetro de dedo capaz de mostrar os valores reais quando os pacientes estavam em movimento ou a mexer-se.
Segundo o perfil da WSJ, antes de decidir fazer peito à Apple, tanto amigos próximos como colegas da Masimo avisaram Kiani dos riscos. "As pessoas diziam-me que eu era louco e que não podia ir contra a Apple", salientou. E os avisos sucederam-se porque a Masimo está longe de ser a primeira empresa que tenta fazer frente à gigante de Cupertino nesta matéria. Ao longo dos anos têm sido várias empresas mais pequenas a fazê-lo, mas como sinaliza o WSJ, estas ficam sem capacidade de resposta à estratégia legal agressiva da Apple que joga bem com o sistema de patentes dos EUA.
- A AliveCor, outra tecnológica de dispositivos de saúde da Califórnia, está igualmente envolvida numa batalha legal com a Apple por causa de patentes ligadas a tecnologia presente nos seus relógios inteligentes — e, tal como a Masimo, também acusa a empresa de Tim Cook de iniciar conversas sobre uma possível parceria para depois acabar por ir buscar os seus trabalhadores.
No entanto, Kiani quer ir até ao fim e acredita que as mudanças de software levadas a cabo entretanto pela Apple não vão surtir efeito. "Não se trata de uma infração acidental - trata-se de uma apropriação deliberada da nossa propriedade intelectual", afirmou o CEO da Masimo, desta feita numa entrevista à Bloomberg. "Estes tipos foram apanhados com as mãos no pote dos biscoitos", ironizou.
Resumo dos acontecimentos
No início de 2023, a Comissão de Comércio Internacional (ITC, na sigla inglesa) decidiu que os wearables da Apple infringiam as patentes da Masimo e, em dezembro, proibiu mesmo a venda nos Estados Unidos dos últimos modelos dos seus relógios inteligentes — o Watch Series 9 e o Watch Ultra 2. A proibição entrou em vigor a 26 de dezembro de 2023, mas a Apple mexeu-se rapidamente e obteve uma ordem do Tribunal de Recurso dos EUA que suspendia a proibição do ITC.
Todavia, trata-se de uma pequena vitória temporária, uma vez que a ITC tem até 10 de janeiro para responder a este recurso pedido pela Apple. Ou seja, a situação pode mudar já esta semana.
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