Não é só a personalidade de Corto que atrai. É verdade que se apresenta como um belo homem, de fino trato, culto, sensual para as mulheres e duro com os homens; mas o interesse e a magia estendem-se ao seu mundo repleto de lugares exóticos, distantes e perigosos, populado por personagens diabólicos (muitos) e angélicos (menos), de todas as raças, cultos e inclinações.
Ao longo das suas histórias, os leitores foram descobrindo muito sobre este marinheiro sem destino. Nasceu em Valeta em 1887, filho de um marinheiro inglês e uma cigana sevilhana. O pai desapareceu na costa do Chile e a mãe mudou-se para a judiaria de Córdova, onde o miúdo teve lições com um rabino. Aos doze anos alguém lhe leu as mãos e descobriu que não tinha linha da vida; pegou numa navalha de barba do pai e cortou-a ele mesmo.
Tal como Cristo, nada se sabe dele durante alguns anos, até surgir em 1904, durante a guerra entre a Rússia e o Japão, na Manchúria, acompanhado pelo repórter Jack London. Aos 26 anos está no Oceano Pacífico, no começo da I Grande Guerra. As peripécias, contadas pela herdeira britânica Pandora Grosvenor, incluem pela primeira vez o seu inimigo íntimo, o pirata Rasputine, e ficaram eternizadas no álbum que até hoje toda a gente se lembra, “A Balada do Mar Salgado” (publicado em 1967).
A partir daí, Corto anda pelo mundo inteiro durante as três primeiras décadas do século XX e conhece personalidades reais tão díspares como Estaline ou James Joyce. E vai lendo, ou pelo menos citando, a “Utopia” de Thomas More (que admite nunca ter acabado) e livros de Stevenson, Melville, Conrad e Rimbaud.
As suas peregrinações são simultaneamente aleatórias e determinadas:
“Há muitos anos não me pergunto mais
Qual lugar é a minha casa
E eu descobri que a minha casa
Está comigo aonde quer que vá.
Caminho sem laços
Eu só o vento que me persegue
E o tempo não me diz respeito
Porque o tempo pertence a mim.”
Quando Hugo Pratt faleceu, em 1995, Corto preparava-se para participar na Guerra Civil de Espanha, do lado dos republicanos.
Os treze álbuns da sua vida, publicados entre 1967 e 1988, foram traduzidos em muitos idiomas e apareceram em revistas de banda desenhada dos cinco continentes, criando um culto mais discreto mas mais profundo do que os mais famosos personagens do género, como o Fantasma, Mandrake, Tarzan, Batman, Príncipe Valente... A lista é imensa, mas nenhum deles reúne de uma forma tão natural o real e o fantástico, o terrível e o improvável, o sal da aventura com o arrepio do desconhecido.
Depois da morte de Pratt fizeram-se dois filmes de animação com algumas aventuras de Corto, mas o mais interessante é que o seu culto se mantém vivo mesmo sem a máquina de propaganda da Marvel, sem merchandising e sem muitas reedições. Ainda hoje, no Facebook há algumas dezenas de páginas com o seu nome e a página oficial tem 150 mil seguidores.
Uma parte do sucesso de Maltese deve-se certamente à profusão de culturas e geografias por onde ele passa e à mistura de significados cabalísticos, religiosos e esotéricos, retratados nos mais nobres e vis comportamentos. Como escreveu um especialista, Ivan Pintor – sim, há especialistas na matéria! – “as histórias revelam uma impressionante modernidade na tensão entre a impermanência do que se representa e a permanência e significado latente dos arquétipos da narrativa.” Ou seja, em palavras mais chãs, o Bem e o Mal são contemporâneos mas também eternos e podem ser percebidos em qualquer época e cultura.
Mas outra parte do culto, para aqueles para quem estas elucubrações intelectuais pouco dizem, tem a ver com o grafismo de Pratt; imagens a preto e branco muito simples mas muito expressivas, que por vezes deixam subentendido mais do que mostram, com o recurso a uma edição cinematográfica, salpicada de grandes planos aterrorizadores e panorâmicas românticas. Não é único de Pratt – há, por exemplo, a “Valentina” de Guido Crepax, da mesma época, que usa técnicas semelhantes, mas serve o propósito da narrativa maravilhosamente bem.
As histórias de Corto Maltese têm, sem dúvida, uma personalidade marcante que as distingue da miríade de estéticas e ideias da banda desenhada. Estão ligadas, quase biograficamente, ao seu autor. Hugo Pratt nasceu em Rimini, Itália, em 1927, e passou a infância em Veneza, num ambiente cultural muito intenso. Em 1937 foi viver na Abissínia, depois da conquista do país pelos italianos. Em 1942, com a morte do pai, oficial de carreira, ele e a mãe foram integrados num campo de prisioneiros de guerra, onde terá entrado em contacto com bandas desenhadas pela primeira vez. Voltou para Veneza, onde se juntou a um grupo de ilustradores. Uma das suas personagens, o Ás de Espadas, fez tanto sucesso na Argentina que se mudou para lá em 1949. Ainda passou um ano em Londres, época em que desenhou alguns clássicos, como “A ilha do tesouro” de Stevenson. Depois viveu em Paris na época do apogeu da banda desenhada franco/belga, até se fixar definitivamente na Suíça, em 1984. Morreu em 1995, com 68 anos. Conheceu e privou com figuras tão variadas como Dizzy Gillespie, Octavio Paz e Borges, além de todas as grandes figuras que fizeram revistas como o “Spirou” ou o “Hara-Kiri”. Era um leitor insaciável de Stevenson, Conrad, Hawthorne, Zane Grey, Fenimore Cooper, Jack London, Dumas, Somerset Maugham – que aparecem, direta ou indiretamente, nas aventuras do marinheiro nascido em Valeta.
Depois da sua morte já houve algumas tentativas de reavivar a personagem mas, felizmente, não se conseguiu. Pois, embora os 13 álbuns possam parecer insuficientes para os aficionados, que já os conhecerão de cor, Maltese era o alter ego de Pratt e ninguém o poderia ressuscitar. Aliás, nem sequer morreu; há algo de atemporal, para não dizer eterno, na postura sonhadora do aventureiro que percorre um mundo sem limites, geográficos ou mentais.
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