Prólogo

30 DE JULHO DE 1970

A locomotiva surge na curva, pesada e lenta. Aproxima-se do apeadeiro repleto de gente que precisa de ali estar para confirmar que o velho ditador morreu. Vai para Santa Comba Dão.

O comboio funerário de António de Oliveira Salazar passa pela gasta plataforma de madeira perante o estupor de quase todos.

Há carruagens cheias de flores. Há choros. Há curiosidade.

Como pode ele ter morrido? E agora quem vai tomar conta de nós?, pensam alguns. Agora as coisas vão mudar. A guerra vai ter um fim, pensarão outros.

O velho posiciona-se atrás do grupo.

Passa despercebido entre os presentes. Talvez não seja o único a sofrer, mas será, decerto, aquele cuja dor tem maior propriedade. Dentro de uma daquelas carruagens vai o cadáver do seu amigo de infância, o António, que lhe deu a mão quando mais precisou.

Não chora. Afinal, o que diria o António se o visse chorar?

Vira costas e abandona o local ainda antes de o comboio ter- minar a sua passagem.

Não precisa de estar ali, sobretudo com aquele peso gigante que lhe tolhe o pensamento.

Já se foram todos. O filho, o neto e, agora, aquele que considerava, apesar de tudo, o seu único amigo.

Até Deus se foi. Já há muito que não acredita n’Ele, mas nunca o disse na correspondência que trocou com António durante as duas últimas décadas. O que diria António da sua falta de fé?

Frederico Lourenço junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 23 de maio, uma quinta-feira, desta vez com um horário diferente: pelas 20h00. Consigo traz o seu romance "Pode Um Desejo Imenso", editado pela Quetzal.

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Em maio, a propósito das comemorações dos 500 anos de Camões, o clube vai olhar de outra forma para o autor do poema épico "Os Lusíadas", através do romance de Frederico Lourenço.

Saiba mais sobre o livro e o autor aqui.

O mundo ruiu. Caminha entre escombros e tem dificuldade em orientar-se.

A responsabilidade da sua amizade com o homem mais poderoso de Portugal pesa-lhe agora muito. De alguma forma, qualquer sentido para a vida parece ter-se ausentado e não tem esperança que volte.

Caminha devagar para o carro. Tem um encontro marcado com o secretário do Bispo para daí a uma hora.

Antes de abrir a porta, as lágrimas libertam-se e, na verdade, não se importa.

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17 DE NOVEMBRO DE 2018

Chegou dez minutos antes da hora e sentou-se a uma mesa de canto de modo a poder observar a entrada.

O suave cheiro a café misturava-se com o da comida acabada de servir. As mesas pequenas estavam quase todas ocupadas por gente a conversar. Ao balcão, duas mulheres altas e elegantes atendiam os clientes com simpatia, à frente de uma parede verde-escura com um grande relógio de ponteiros.

Abriu um livro, que pousou ao lado da chávena de café e do telemóvel. Respirou fundo, olhando as páginas sem ler e controlando a porta pelo canto do olho. Sentiu a adaga oculta sob a manga da camisola, pronta a deslizar pelo antebraço até à palma da mão direita. Caso fosse preciso, seria rápida.

Reparou num caixote, com alguns chapéus de chuva molhados no canto, à entrada. O chão de madeira clara trazia uma sensação de calor e conforto, tendo em conta a chuva que caía na rua. Era um ambiente acolhedor.

Aquele encontro ao início da noite num café de Bruxelas pode- ria ser uma de três coisas: uma brincadeira de mau gosto, uma armadilha que poderia resultar em derramamento de sangue ou, então, aquilo mesmo que lhe haviam dito ao telefone. Apesar da desconfiança, como poderia recusar um potencial encontro com alguém tão relevante como Howard Carnarvon?

O homem que supostamente a convocara era um membro da elite de poderosos destinos finais do tráfico. Como todos os outros envolvidos no negócio, fazia naturalmente questão do anonimato, escondendo-se, no seu caso, atrás de um pseudónimo composto pelos nomes dos dois responsáveis pela descoberta do túmulo de Tutancámon.

– Boa noite, miss Saleh.

À sua frente estava um homem alto, largo e vestido de fato. Trazia uma pasta na mão. Aparentava estar a meio dos trinta, talvez início dos quarenta. Tinha o cabelo preto. As suas feições e cor de pele seriam, talvez, as de um árabe.

Como é que ela não tinha dado pela sua entrada?

– Venho da parte de mister Carnarvon. Falámos hoje ao telefone – disse ele.

O homem permanecia em pé à sua frente. Ela percebeu que aguardava o seu convite para se sentar e fez o gesto correspondente.

Enquanto ele se sentava, ela olhou em volta, tentando detetar alguém que o estivesse a acompanhar.

– Estou sozinho, não se preocupe – disse ele.

Apontou para o braço dela.

– Qual é o comprimento da lâmina? Deixe-me adivinhar, espere. Esteve oito anos nas Troupes de Marine... quinze centímetros?

– Doze. Uma Raider – respondeu ela, tentando disfarçar a surpresa. Aquele era um homem bastante inteligente. Com uma pergunta só, dissera-lhe que não valia a pena ser evasiva ou mentir. Além disso, não se apresentara, pelo que ficara a saber que não lhe deveria perguntar o nome.

– Uma adaga americana – disse ele, parecendo desapontado.

– Adaptei-a.

Livro: "A Herdeira de Salazar"

Autor: João Leal

Editora: Alma dos Livros

Data de Lançamento: 16 de maio de 2024

Preço: € 19,45

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Uma empregada aproximou-se e ele, com um gesto, disse que não queria nada. Ela aproveitou para dar um pequeno gole no seu café, tentando parecer descontraída.

– Nasceu em Tunes há trinta e dois anos. Aos quatro, os seus pais emigraram para Lyon. Aos dezoito, alistou-se e aprovei- tou para tirar dois cursos superiores: Antropologia e Filosofia. É mestre em karate. Pratica krav maga. Deixou o exército. Foi professora durante algum tempo. Tem quatro papers publicados. Escreveu dois livros. Um sobre simbologia nas culturas do Levante e outro, mais especulativo, sobre a possibilidade da criação de uma mitologia cartaginesa que substituísse o papel do Islão na identidade nacional tunisina. Os seus pais deixaram de lhe falar por causa deste livro, que foi também responsável pelo seu despedimento, por ter ficado ainda com menos amigos dentro da comunidade islâmica francesa e, para alguns, o ter-se tornado persona non grata em Tunes. Embora seja verdade que, com as últimas alterações à Constituição tunisina, tenha ficado demonstrado que o poder do Islão no Estado está a decrescer. Mudou-se para a Bélgica, onde, fazendo uso das suas aptidões, dá aulas de artes marciais e participa, digamos assim, no negócio de antiguidades. É heterossexual, de momento não tem qualquer relação e não tem filhos. Tem uma cadela chamada Dido, uma pastor belga com três anos. O seu contacto principal no negócio é Ibrahim Fallouj, que, como fachada, trabalha para diversos antiquários na Bélgica, Países Baixos e França. Nos últimos anos, o seu trabalho sobressaiu com as peças romanas encontradas na Galiza, com as estatuetas esmeralda de Kiev e com os santos cristãos de madeira de Nairobi. Estes dois últimos, sem que o soubesse, eram encomendas de mister Howard Carnarvon.

Ela só não estava boquiaberta porque aprendera a exercer um controlo preciso sobre o seu comportamento corporal. Quanto ao dele, havia algo nos seus olhos que a estava a incomodar e que indicava que não tinha qualquer treino militar. Eram cinzentos e estavam longe de ser inexpressivos. Pelo contrário, pareciam ter em si uma tristeza que quase lhe parecia brutal.

– Tenho duas perguntas para lhe fazer – disse ele.

– Faça.

– Não temos referências quanto às línguas em que será fluente... isto além do árabe, francês e inglês. Alemão consegue ler, mas não falar. Por acaso falará português ou russo?

– Nenhuma delas.

– Certo. E a outra pergunta: estaria disposta a ser sedada de modo a ser deslocada por via aérea daqui a duas horas para um local confidencial, para que amanhã possam ser efetuados testes aos seus conhecimentos e aptidões físicas?

– Espere aí. Pretende que eu me deixe ser drogada para ser levada para um local secreto? Ninguém saberá onde estou? Está a falar a sério?

– Sim.

– Consegue perceber que isso...

– Sim, claro. Mas não há outra maneira, lamento. A discrição...

Havia algo naquele homem... oh, sim! Havia algo naquele homem que a fazia confiar. Talvez uma falta de vontade de impressionar, uma omnipresença de humildade que ressaltava de toda aquela tristeza. Ela poderia mentir e tentar ganhar tempo, mas para quê? Tinha a certeza de que aquelas seriam sempre as condições para ser contratada. De resto, se eles sabiam aquilo tudo sobre si, saberiam muito mais. E a polícia também, se eles assim o decidissem.

– Muito bem. Vamos a isso – disse ela.

– Perfeito – respondeu o homem. Agarrou no telemóvel e escreveu algo. Passados dez segundos, Ibrahim Fallouj entrou a sorrir no café e dirigiu-se-lhes.

– Ibrahim? – perguntou ela, espantada.

– Este é o seu seguro, miss Saleh – disse o homem, estendendo a pasta ao recém-chegado. Logo depois, entregou-lhe também uma chave e um cartão que retirara de um bolso do casaco. – É uma chave de um cofre particular. O nome do banco está no cartão. Se daqui a dois dias, a esta hora, miss Saleh não estiver aqui, pode usar essa chave.

Ibrahim abriu a pasta e observou-a durante uns momentos. De seguida, fechou-a, confirmando com um aceno de cabeça para o homem.

– Eu trato da Dido – disse Fallouj, sorrindo afetuosamente antes de sair.

Semicerrando os olhos, o homem abanou a cabeça em sinal de aprovação.

– Você confia-lhe a vida! Não o esperava, mas é impressionante – e, erguendo-se, acrescentou: – Podemos, então, ir?

Ela levantou-se também. Estava prestes a deixar-se drogar, abandonando a sua consciência e vontade. Era uma loucura. Não fazia sentido. A sua curiosidade, no entanto, a mesma que em conjunto com a irreverência e vontade de aventura a tinham feito chegar até ali, era obviamente quem comandava. Não se faziam compromissos com isso.

– Sim. Vamos.