CAPÍTULO 5

DORES DE CRESCIMENTO

Em 1859, aos treze anos, media quase dois metros e treze. Tinha seis irmãos e irmãs mais novos, que eram baixos: a Janette, oito anos; a Maggie, seis; o George e a Mary, três; e o John, quatro. Liza tinha acabado de nascer. Vivíamos como sardinhas em lata numa casa com um andar e meio que, durante os meses de Verão, era quente e poeirenta, por nas cercanias não haver árvores que dessem sombra. Eu transpirava abundantemente. No Inverno, tiritava por causa das correntes de ar que conseguiam sempre infiltrar‐se, independentemente do número de vezes que o meu pai revestia os lados da casa com zostera.

Não me queixava, porque os meus irmãos e irmãs estavam pior. Tinham de aguentar comigo e com as minhas saias amplas, e viam‐se obrigados a dormir em cima de um fardo de palha, à frente da lareira. Eu e os meus pais éramos os únicos membros da família que tinham direito a uma cama. Éramos demasiado pobres para termos muita mobília — além de uns poucos bancos e uma tábua áspera e nua, em cima da qual consumíamos uma dieta constituída por peixe e batatas cozidas, usando colheres e facas de chumbo moldadas a partir de aros de ferro‐velho.

Por ser tão alta, não conseguia estar de pé dentro de casa. A choupana não passava de um cubículo grosseiro para alojamento das crianças; não se adequava às minhas medidas — para sair e entrar pela porta da frente, tinha de me curvar. Preferia estar no exterior, ao ar livre, porque aí podia levantar a cabeça e afastar os ombros para trás, sem receio de atravessar o tecto.

A minha mãe defendia‐me.

— Alex, a Anna é boa rapariga, mas a catraia não tem espaço para viver dentro desta casa!

Sérgio Godinho junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 20 de junho, uma quinta-feira, pelas 21h00. Consigo traz o seu romance "Vida e Morte nas Cidades Geminadas", editado pela Quetzal.

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O meu pai acabou por abrir uma janela em meia‐lua na pare‐ de da choupana, por cima da porta da frente. Não passava de uma abertura debaixo do telhado, mas, pelo menos, graças a ela via a minha família a trabalhar nos campos, na encosta mais abaixo.

Se na choupana a vida era desconfortável, na escola era uma desgraça. Tinha de me sentar num banco alto e de trabalhar numa mesa instalada em cima de umas tábuas. Na sala de aula, via os meus colegas de cima, sentados em bancos compridos. Mais do que o meu tamanho, este assento distinguia‐me dos outros: por causa disso, pensavam que eu era a preferida da professora e interpretavam os meus modos tímidos e inibidos como sinal de snobismo. Além disso, sentia‐me tristemente exposta aos olhares deles — como se tivesse o corpo coberto de verrugas e feridas infectadas. Tornei‐me profundamente insegura e não era raro regressar da escola com dores de cabeça.

A minha mãe mandava‐me deitar imediatamente e, se fosse necessário, pedia à Janette para fazer a pé o percurso de mais de nove quilómetros até ao regato do moinho, em busca de água doce da montanha, para matar a minha enorme sede. O meu apetite era mais difícil de satisfazer. Como ainda estava a crescer, num só dia ingeria a mesma quantidade de comida que a minha família devorava numa semana (mais tarde, o Barnum falaria de catorze quilos de batatas e dez de bacalhau). O esforço do crescimento deixava‐me exausta; percorria a choupana num nimbo de cansaço. Depois chegou a puberdade, que transformou o meu corpo numa massa turbulenta. Acima e abaixo do meu queixo, sopravam violentas tempestades. A minha garganta inchou, com um bócio do tamanho de um outeirinho; as minhas regiões centrais vertiam leite indesejado; e as minhas regras deixavam‐me num estado extemporâneo que me obrigava a dormir durante vários dias.

Reagi a estas atribulações refugiando‐me num mundo mágico só meu. Comecei a sentir‐me responsável pelo crescimento dos meus irmãos e a encarar a sua baixa estatura como um desafio pessoal. Não que o meu pai esperasse que eu cuidasse da carne da minha carne. Fi‐lo espontaneamente, por ainda não ter aprendido a desconfiar do mito do gigante forte. (Faz parte da vaidade dos grandes eles acreditarem na sua própria mitologia.) De noite, enquanto os meus irmãos dormitavam no fardo de palha à frente da lareira, eu cantava a canção de crescimento que adaptara de uma balada de amor gaélica. (Havia muitas baladas por onde escolher, já que os colonos do condado de Colchester acreditavam no provérbio das Terras Altas segundo o qual a música e o amor persistirão mesmo após o fim do mundo.) Durante o dia, cantava para eles da minha vigia por baixo do telhado, enquanto eles desempenhavam as suas tarefas no campo em baixo. Sempre que os meus irmãos se impacientavam e discutiam uns com os outros, vigiava‐os com ternura.

Aqui estou eu, no meu posto por cima da porta da choupana, no Verão de 1859. Época da debulha. a rapariga gigante, na sua moradia colonial. O pinho rebaixado da janela do sótão enquadra os meus olhos castanhos, tão sérios. Tenho um olho preguiçoso. Isto é, uma pálpebra mais descaída do que a outra — o que me dá uma expressão misteriosa. Além disso, tenho uma boca fina e um nariz romano. Teria ar severo, se não fosse a minha melhor característica: o cabelo ruivo‐escuro e brilhante, que se derrama até aos ombros, em cachinhos. Uso o cabelo volumoso em cima da cabeça, e prendo‐o atrás das minhas orelhas pequenas e delicadas. A minha mãe mandou vir o meu vestido de Boston; compra‐me um vestido novo todos os anos, apesar de a Janette se queixar de só receber farrapos para se vestir. Os meus vestidos são no estilo Princesa, de acordo com os modelos das gravuras de moda da Mr. Godey’s Ladies*, com corpetes justos que terminam em V na cintura, e saias evasês que escondem os meus sapatos feitos em casa. Gatinhando por baixo da bainha está um dos gémeos, a Mary, que reage à segurança da escuridão por baixo da saia sugando a ponta do meu sapato de couro de vaca. Quando me retraio, bato com a cabeça no tecto da choupana. «Mãe!», choramingo. Ela aparece imediatamente. (No espaço exíguo da choupana, nunca anda muito longe.) Dando estalidos zangados com a língua, rasteja para baixo do meu vestido e puxa a bebé, que dá guinchinhos.

— Catraia malcomportada! Não tornes a incomodar a nossa Anna — repreende ela. Contornando a minha saia, leva para fora a Mary, e depois o George, o outro gémeo. A minha mãe olha de baixo e, vendo‐me a olhar de cima para ela, abana a cabeça. Por baixo da touca de pala, tem uma expressão cansada. — Ainda bem que tens ombros largos, Annabelle — exclama. — Por que outra razão te teria Deus feito tão grande, se não fosse para olhares de cima, com pena e compreensão, para os que são mais pequenos do que tu?

A minha progenitora debita este ideal cristão sem saber que, já de mim, tenho uma noção demasiado pesada dos deveres de giganta. Anos depois, vendo os anões de Londres que Dickens descreveu num famoso texto, não senti mais do que inveja das criaturinhas que corriam pela sala de estar e pelos quartos das suas casas de bonecas de oitenta centímetros, disparando armas, hasteando bandeiras e entoando cançonetas. Dentro destas casinhas minúsculas, os anões não viam o público; por isso, não sentiam a menor responsabilidade em relação aos normais; aliás, ouvindo as risadas de prazer que as suas palhaçadas suscitavam, devem ter pensado que todos os outros seres eram almas despreocupadas, que não sofriam como os monstros. Eu, pelo contrário, facilmente percebia que os normais eram vulneráveis. Por esse motivo, durante muitos anos, senti a obrigação de cuidar deles.

Nessa manhã de Agosto de 1859, ainda não tinha aprendido como era difícil ser gigante. Rejubilava com as minhas responsabilidades superiores. A altura era não só a minha religião mas também a minha política, porque acreditava que, se toda a gente fosse alta como eu, ninguém seria infeliz nem se sentiria pouco importante. Dó‐ré‐mi! Aqueço a voz e sorrio com benevolência pela vigia. Há agitação em torno dos meus joelhos: a Janette, uma criança robusta, de braços fortes e rechonchudos, implora que a libertem da tarefa de segar. Sol‐fá! Olho entusiasticamente para os vales revestidos de arbustos e inclino a cabeça para trás, de modo que este solo mágico se derrame para lá das casas de ripas impecáveis e dos rios sinuosos, até ao calor tropical da corrente do golfo do Atlântico. Se eu cantar com intensidade suficiente, a pequena Janette vai crescer!

Pergunto muitas vezes às pessoas daqui: «Podem dançar para cima? Podem ganhar altura?» Mas todas, sem excepção, respondem que sou tola por partilhar a minha força com os outros.

Dou‐vos a minha força, é inegável. Não o faço por ser interesseira, nem por ambição, mas sim movida por um amor que cresceu dentro de mim quando eu era criança e que só se desvanecerá quando vocês saltarem mais alto.

Livro: "A Maior Mulher Moderna do Mundo"

Autor: Susan Swan

Editora: Tinta-da-China

Data de Lançamento: 16 de maio de 2024

Preço: € 23,90

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— Ouçam a Annie — queixa‐se a Janette. — Que grande ajuda! Enquanto nós estamos aqui a transpirar como porcos, ela canta dentro de casa, ataviada como uma rainha.

— Cuidado com a língua, se não queres levar uma tareia, Jannie — adverte o meu pai.

— A Anna é alta e tem de andar bem‐vestida, senão parece mal — acrescenta a minha mãe. — Além disso, Jannie, tu és uma rapariga robusta e a Anna é uma menina frágil, que não consegue fazer esse trabalho.

Frágil? Seguramente que não — eu, a menina gigante! A preocupação da mãe com a minha saúde só reforça a minha determinação em ser útil. Dó‐ré‐mi! A força das pessoas pequenas já me corre pelas veias, deixando‐me zonza de cansaço. Para fazer as coisas crescerem, é preciso uma tremenda energia, mas que importa se ficar esgotada? Dancem até às pontas dos espruces, ó superadores da gravidade!

Gorjeio com toda a voz, enquanto os meus irmãos e irmãs saem aos tropeções da choupana, perseguidos por um pai a praguejar. Apoiam as gadanhas no ombro e a Janette olha de baixo para mim e deita a língua de fora. O meu chão vacila. Desanimados, os meus familiares avançam penosamente para o prado das marmotas, até ficarem com os corpos do tamanho de insectos, com cabeças de abelhas rabugentas.

As suas vozes emitem um zumbido zangado, enquanto, numa espécie de espiral de insectos, eles se deslocam para cima e para baixo no campo. De repente, vê‐se uma nuvem de poeira no caminho de terra batida para lá da choupana. É o Hubert, na sua carroça puxada por um burro. Resmungo. O Hubert, não! Ganhei aversão ao anão, porque as suas visitas diárias me fazem sentir constrangida. A minha mãe diz que ele não tem más intenções; está a ser simpático porque sou a única rapariga com idade próxima da dele nos arredores de New Annan. Ainda assim, demonstra por mim um interesse que se torna humilhante, porque chama a atenção para a minha feminilidade sobredimensionada. Quero conhecer um rapaz mais alto do que eu.

Lá em baixo, os esquadrões de insectos precipitam‐se para a carroça do Hubert — e eu rezo para que o anão não apareça para uma visita. O enxame, entretanto, forma uma coluna que desce outra vez o prado, enquanto a nuvem de poeira se aproxima gradualmente da choupana. Dó‐dó‐dó! Sinto o chão a fugir‐me debaixo dos pés, à medida que o Hubert sobe a encosta. No mo‐ mento seguinte, quando ele entra na nossa casa, aproximando‐se furtivamente da lareira onde a minha mãe cose, é um ondular na minha crinolina. Quando ouço o tamborilar dos punhos minúsculos do anão a marcar o ritmo da minha canção, paro de cantar.

— Encore, Annie, encore — guincha o Hubert.

— Tenho de passar pela casa de alguém — declaro, de mau humor.

— Outra vez? — pergunta Hubert.

Transponho rapidamente a porta, curvando a cabeça e evitando o olhar sombrio da minha mãe.

— Ninguém decente pode antipatizar com alguém por ser pequeno! — exclama ela atrás de mim.

Lá fora, sacudo os meus cachinhos acobreados e meto a barriga para dentro, procurando em redor o rapaz gigante que finjo que vive nos montes de Cobequid. Durante um momento, parece‐me entrever a sua cara grande e vigilante a sorrir timidamente através dos maciços de cedros: um amor vegetal, desabrochando nas árvores só para mim. Claro que ele é demasiado tímido para sair dos bosques e falar comigo. Em vez disso, segue‐me, escondendo‐se atrás das silhuetas das árvores de folha persistente e preenchendo o ar da montanha com um suspiro de desejo.

Apesar de eu já contar com catorze primaveras, o Hubert continua a fazer visitas diárias. O anão de dezanove anos fica sentado como um cão ao lado da lareira enquanto canto, ou corre em torno das minhas saias, perguntando‐me de baixo se quero jogar whist. Usa o velho bloco de notas de casca de bétula para registar os resultados, e gosta de repetir sete vezes a palavra «bem», em tom esganiçado, sempre que folheia o bloco de notas, revisitando antigas vitórias nos jogos de cartas. Faz o mesmo som quando doba lã com a minha mãe. Logo que ela lhe entrega a meada de lã, ele salta ansiosamente para cima da mesa de tábuas e pega na minha mão, que mede trinta centímetros. Fico de pé, espreitando tristemente pela minha vigia, enquanto, à altura da minha cintura, o Hubert estende a lã à volta dos meus dedos abertos, repetindo «Bem‐bem‐bem‐bem‐bem‐bem‐bem!» em tom estridente, até eu sentir vontade de derrubar esta peste do poleiro.

Numa tarde de Março em 1860, deixei o Hubert e a minha mãe a dobarem sozinhos. A tempestade de equinócio tinha soprado a neve da montanha para os regos; por isso, as zonas cor de caramelo das nossas pastagens mortas estavam salpicadas de cinzento‐sujo. O ar arrefecera e, na vegetação rasteira, havia pingentes de gelo pendurados, que estalavam.

Dirigi‐me ao bosque de espruces. Era uma pequena clareira protegida por árvores de folha persistente que a minha família usava como casa de banho, para o meu pai poder recolher os resíduos na Primavera e espalhar nos terrenos de cultivo o fertilizante rico em azoto. No meio do vale, havia um tronco enorme, revestido de musgo, a seguir ao qual o chão se inclinava, em direcção a um lago pantanoso, cujas misteriosas profundezas eram a fossa da família. Nessa tarde, o lago congelara numa superfície com um brilho sombrio, tão ampla como o charco de castores. Fiz o que tinha a fazer, de pé, para não salpicar urina nos saiotes.

De repente, senti‐me compelida a virar‐me e a olhar para trás, para a margem do lago congelado, onde as folhas de carvalho castanho‐avermelhadas e cor de lousa repousavam, em padrões cerrados. Reparei que havia ali excrementos de cavalos ruanos de grande porte, a fumegar no vento gélido. Olhei para a clareira em redor. Estaria algum lobo ou animal temível ali perto? Com o medo, senti um nó na garganta. Não sejas pateta, Annie! Que animal dos bosques poderia fazer mal a uma criatura do teu tamanho? Afastei‐me do lago a passos largos, com as pernas a tremer. A minha respiração criou uma nuvem de vapor em torno da minha cabeça.

Logo depois da zona dos espruces, onde os ramos das árvores se entrelaçavam, reparei que outra nuvem de vapor saía de um ramo mais baixo. Com cuidado, afastei o ramo, que picava. O Hubert olhou para mim, de baixo.

— Portanto, desta vez não mentiste! — Vendo a minha cara de surpresa, o anão estremeceu de riso. — Pensei que era uma impossibilidade anatómica!

— Desculpa?

Com um salto desembaraçado de duende, o Hubert pulou para o declive e ficou em cima, um pouco mais à frente da mancha longa e amarela que eu tinha deixado no monte de gelo. Com as mãos enluvadas, fez um gesto espalhafatoso, que me pareceu ser o de erguer uma crinolina imaginária. Depois dobrou os joelhos e espetou o traseiro de modo altivo. Rodando a cabeça enrugada na minha direcção, piscou‐me o olho, com ar de concentração piedosa.

Portanto, o Hubert tinha‐me observado! Dei umas gargalhadinhas nervosas e os olhos azul‐claros do anão refulgiram sob o sobrolho franzido.

— Saberás que tens um universo sem fronteiras dentro de ti, Anna? — perguntou.

Não disse nada, porque não queria trair a minha ignorância. Nada sabia sobre o meu canal de parto ou outras passagens, apesar de, à noite, muitas vezes acariciar o bolbo sedoso de carne entre as minhas coxas, até este ficar do tamanho do dedo grande do pé e eu recear não só que os montes de Cobequid se desintegrassem, mas também que a minha família, que dormia, saltasse da cama, a gritar de medo, por causa dos meus ruídos de prazer. Poucas semanas antes, a minha mãe lavara‐me a boca com sabão de aveia depois de me ter apanhado a esfregar‐me. Sublinhara que o meu «pecado» tornava vulgar o amor entre homens e mulheres, mas sem explicar mais. Eu estava ávida de informação — e ali estava o Hubert, com a promessa de pôr fim ao meu desespero de rapariga de catorze anos.

Por isso, respondi que não com a cabeça, pondo de lado os meus preconceitos contra os homens baixos.

— Não? Patetinha! Dentro de nós, mortais, há uma terra incógnita, com muitas estradas e rios serpenteando para cima e para abaixo, em percursos fascinantes. Numa criatura normal, alguns destes canais podem desenrolar‐se em assustadoras extensões de seis metros, como uma pitão. Imagina quanto mede o teu rio real... o tubo digestivo, claro! Um canal principal neutro, diferente de, hum... outras auto‐estradas que poderia referir.

Piscou o olho, numa demonstração de presunção masculina.

— Oh, Annie, deixa‐me traçar os teus canais de escoamento, a inclinação breve e larga do duodeno, as espirais viscosas do intestino delgado e o canal sombrio de cento e cinquenta e dois centímetros do intestino grosso, com as suas bolsas cegas e os seus tubos estreitos como vermes. Ainda melhor, Anna, porque não me deixas medir? Se eu me medir primeiro, também te medes?

Antes de eu conseguir responder, o Hubert pegou num ramo de salgueiro comprido e começou a despi‐lo de rebentos, até o deixar liso. Com os seus dedos de criança, tentou avaliar o comprimento. Depois pegou‐me na mão e calculou que teria quarenta centímetros. Então saltou para cima do tronco, virou costas e deixou cair as calças largas. Com uma atitude clínica, observei os seus braços curtos, que tentavam chegar à pele penugenta das nádegas, para as abrirem. Sentindo‐me profundamente superior ao Hubert, por ele me ter mostrado esta sua parte indefesa, ergui a mão e enfiei rapidamente o ramo na abertura engelhada.

O Hubert reagiu com um grito — tirei o salgueiro. Então, com as mãos, mediu rapidamente a secção final do seu tubo digestivo.

— Dezassete centímetros, Annie — crocitou. — É a tua vez.

— Nha‐nha‐nha nha‐nha! Enganei‐te, porque não vou medir.

A boquinha do Hubert abriu‐se e a sua enorme testa enrugou‐se de surpresa.

— Prometeste, Annie — teimou. — Prometeste.

Quando abanei a cabeça, ele bateu o pé no chão gelado.

— Batoteira! A Annie não cumpre as promessas!

Ri‐me, por o anão ser tão infantil, e ele começou a chorar. Devia ter saído do bosque nessa altura, mas a tristeza do anão fez‐me pena. Tinha as calças enrodilhadas nos tornozelos ossudos; por isso, vi pela primeira vez o cotozinho do seu órgão. Estava com a cabeça tombada para o peito e as lágrimas acumulavam‐se nas rugas em torno dos olhos. Também me senti culpada. Tinha prometido, não tinha? Ah, é tão difícil ser uma giganta de palavra!

— Tudo bem, então. Mede — consenti, de mau humor.

Desviei o olhar, para não ver o Hubert despir outro ramo de salgueiro, com uma expressão de alegria na cara adulta e inquietante. Quando se enfiou debaixo da minha saia e sondou a minha parte de trás, estremeci, mas não gritei. Então a minha pele fechou‐se como água sobre uma haste de madeira e, lá em baixo, o Hubert exclamou, débil e esganiçadamente:

— Bem‐bem‐bem. — O anão retirou o galho e saiu. — Cinquenta e cinco centímetros — anunciou, depois de calcular o comprimento. A seguir, olhou para mim, com ar suplicante. — Anna, deixas‐me medir a outra auto‐estrada que se desenrola no teu grande corpo?

— Que auto‐estrada? — retorqui.

— Espera, que já te mostro — respondeu.

Correndo para um sumagre, escolheu o mais longo dos pingentes de gelo suspensos de um ramo. Pegando‐me na mão, mediu o pingente — um dente irradiante, com o dobro do tamanho do galho, prolongando‐se em ondulações congeladas até uma esferazinha, na ponta.

— Quarenta e três centímetros — guinchou o Hubert, antes de se enfiar por baixo da minha saia. (Até hoje, ignoro a razão de ele ter escolhido uma forma de medição tão pouco romântica, e continuo sem saber por que motivo permiti que a curiosidade me fizesse esquecer os gritos dos meus colegas, que, para cumprirem um desafio, deixaram fragmentos engelhados da língua nos apoios de metal do trenó da professora. Atribuo isto ao facto de todas as pessoas grandes serem de reacção lenta, ao passo que os anões reagem com desmedida rapidez.) No momento em que o Hubert inseriu o pingente, saí a correr pelo bosque fora, como uma maluca. A pontada de dor deixou‐me sem fôlego; cambaleei e tropecei na vegetação rasteira como um urso, e as lágrimas correram‐me pelas faces. Ah, que invadida me senti! Tão exposta! Ainda por cima por um anão obcecado com medidas!

Aparecendo à minha frente, o Hubert gritou‐me que parasse, para ele desfazer o que tinha feito.

— Queres rasgar‐me as entranhas? — berrei. — Não toques no pingente. Não quero morrer num dos teus jogos de medidas!

Furiosa, baixei‐me e atirei o Hubert ao chão. Caiu como um bebé, por cima do tronco, e estatelou‐se no gelo fino do lago pantanoso, que se partiu. Não esperei para ver se morreria afogado. Regressei à choupana o mais depressa que consegui, chorando por sentir tantas dores nas partes pudendas.

A dor combinou‐se com ondas de voluptuosidade. Eram sensações confusas; não sabia dizer se, naquela zona, sentia frio ou calor; tão‐pouco distinguia a dor do prazer. Esta alternância das sensações deliciou‐me e assustou‐me, mas, quando cheguei à choupana, já não sentia nada, e percebi que o pingente derretera nas minhas partes pudendas.

Estava com um ar incaracteristicamente nervoso, quando me baixei para entrar e encontrei a minha família à mesa, a comer puré de nabo com apetite. Recusei o prato de comida que a minha mãe me estendeu e enrosquei‐me na minha cama de cânhamo, onde, perturbada, fiquei a olhar para o tecto.

— Estás a sentir‐te em baixo, Annabelle? — perguntou o meu pai. — Não é teu costume perderes uma refeição.

— Pois. Pareces cansada, com essas faces pálidas e encovadas. — A minha mãe sorriu enquanto bebia chá de espruce de uma das chávenas de porcelana estaladas daquele a que chamava «o serviço da avó». — Dores de crescimento, Alex. Deve ser esse o problema da Anna — concluiu.

Passei um mês prostrada e sem forças, de pés pendurados no fundo da cama. A minha mãe mandava a Janette fazer viagens suplementares ao regato do moinho, para trazer água. Mas, como o regato da montanha já não bastava para saciar a minha sede prodigiosa, comprou‐me água de cevada em Tatamagouche, para me dar um miminho. Era um agradável estimulante efervescente; uma garrafa por dia aliviava a dor, deixando‐me levantar da cama.

Ainda assim, o pingente do Hubert não rompera só o meu hímen; tinha abalado a minha crença no meu estatuto de ser mágico. Afinal era humana e vulnerável — uma fêmea que, como todas as outras, podia ser penetrada como nenhum homem poderia. No Verão, recuperei as forças e voltei a medo para a minha vigia, mas deixei de cantar. Dali de cima, via os meus familiares a segarem, no prado das marmotas. Continuava a sentir‐me responsável pela minha família de normais, mas já tinha compreendido que — independentemente do que fizesse — nem eles nem os legumes do meu pai cresceriam por minha intercessão.

* Referência a uma popular revista americana de moda, também conhecida como Godey’s Lady’s Book, Godey’s Magazine ou Lady’s Book, publicada por Louis A. Godey entre 1830 e 1878. [N. da t.]