CAPÍTULO UM

As silhuetas dos telhados de Copenhaga surgiam nas primeiras horas da manhã, ainda sem o beijo da aurora. Era um cenário belo, mas fazia Liv Jensen sentir-se uma forasteira no mundo. Como se já não pertencesse a lado nenhum. Não em Rødovre, não na Jutlândia do Norte e decididamente não ali, na capital, com o seu asfalto e o bulício e a arrogância apaixonada por si mesma. A vidraça que tinha diante de si mostrava a versão de postal da cidade. Se estivéssemos só de passagem, partiríamos provavelmente de Copenhaga com a sensação de idílio intacta. Mas Liv não se sentia seduzida. Nem sequer estava curiosa.

Captando o próprio rosto na janela, apertou mais o roupão de hotel em torno do corpo nu. Olhando para trás, não via nada além
de portas fechadas e, à sua frente, apenas incertezas e planos pouco convictos. Quando perdemos os nossos sonhos, a vida esmorece até não ser nada.

— Não voltas para a cama?

A voz de Therese era suave, sem censura. Voltando-se, Liv tentou distinguir entre os contornos do edredão e a sua forma nua. Aquela pele macia, aquelas curvas — ia sentir-lhes a falta. Therese tinha toda a beleza que ela, da sua parte, nunca tivera. Mas era mais do que isso. Só se conheciam há cinco meses, mas Liv tinha plena noção do que achava tão atraente. Therese era competente a viver. Saudável. Fazia escolhas com liberdade e sem vergonha. Therese não tinha problema nenhum em partilhar as falhas que os outros resguardavam tão ciosamente. Contava repetidamente, a rir-se, a vez em que a mãe a apanhou a roubar da sua carteira no vestíbulo e como o castigo fora aparar a vedação que rodeava o jardim.

Liv nunca roubara nada, mas tinha tantas outras coisas de que se envergonhar. Guardava, no entanto, tudo isso para si. Apesar da tolerância natural de Therese, tinha a certeza de que não compreenderia os fardos que carregava. Seria provavelmente melhor desiludi-la agora — assim, a longo prazo, ser-lhe-ia poupado sofrimento. Liv deixou cair o roupão e subiu para cima dos lençóis frios da cama de hotel, para junto do calor de Therese.

— Não consegues dormir?

— Não.

Ficaram deitadas, em silêncio, na escuridão. Não se conheciam há assim tanto tempo, disse Liv para si mesma. Não devia explicações a ninguém.

Therese inclinou-se para a frente e beijou-a com os lábios macios, abrindo-lhe a boca e deixando que a ponta da língua aprofundasse o beijo. Liv recuou um pouco, um milímetro apenas.

— Tudo bem. Podemos só beijar, se ainda não estás para aí virada. — Therese afagou-lhe o cabelo.

— Não é isso. Tenho uma coisa para te dizer.

— O. K....

Therese afastou-se, apoiando-se no cotovelo. Tinha aquela capacidade invejável de parecer estar à vontade no seu corpo. A alma numa tão segura harmonia com a carne. Mesmo quando estava zangada, parecia estável e consistente. Nenhuma obscuridade oculta — seria isso realmente verdade? Liv tapou-se com o edredão e fitou a escuridão. O ponto vermelho de luz no ecrã plano reluzia a alguns metros de distância e focou aí os olhos.

— Não vou voltar para Aalborg.

— Como assim?

— Não foi uma licença sem vencimento. Há três meses, despedi-me do emprego e arrumei o meu apartamento. Teria contado antes, mas...

Mas o quê, exatamente? Tudo acontecera tão depressa, qual era a sua desculpa? Estivera demasiado ocupada a fugir para ter consideração por Therese?

— Achava que adoravas o teu trabalho...

Liv sorriu no escuro, mas o sorriso saiu-lhe rígido.

— Só tinha de pôr as coisas a mexer um bocado. Aalborg é demasiado pequena, preciso de um novo desafio.

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Estas palavras soaram tão falsas quanto realmente eram. Sentiu-se apanhada em flagrante, como um ator amador a tentar fazer o monólogo de Hamlet.

— Encontrei um apartamento em Vesterbro e vou buscar as chaves amanhã.

— Então e nós?

Therese soou transtornada.

— Podemos continuar a ver-nos. Como agora.

Therese fechou os olhos, magoada com aquelas palavras. Depois, abanou a cabeça.

— Liv, não é assim que funciona.

— O quê?

— O amor, por Deus!

Therese lançou o edredão para o lado e levantou-se. Começou a apanhar a roupa do chão com safanões impacientes, depois entrou na casa de banho e fechou a porta atrás de si.

Liv ficou onde estava. Devia ir atrás de Therese, abraçá-la, contar-lhe a verdade, mas não podia. Se até Liv mal se conseguia encarar de frente, como haveria toda a gente alguma vez de voltar a respeitá-la, quanto mais sentir afeto por ela? A única coisa que restava era fazer a travessia e sair do outro lado, de preferência mais forte. Construir uma vida na capital. Uma nova Liv.

Encontrou outra vez o ponto vermelho. Oferecia-lhe uma centelha de segurança, a sensação de uma âncora no caos.

*

No dia em que fez quarenta e um anos, Hannah Leon acordou cedo, os olhos fixos no teto do seu quarto de criança. Pelo pensamento passou-lhe primeiro o irmão, como acontecia todas as manhãs desde o dia 11 de fevereiro. Hoje, contudo, hoje em particular — o seu primeiro aniversário sem ele. Espreguiçou-se e pousou os pés nas tábuas ásperas do soalho, que lhe espetavam farpas nos pés se não se lembrasse de caminhar nos tapetes de trapos. Um azul, um verde, outro roxo. Recebera-os quando fizera doze anos, no mesmo dia em que deitara fora todos os bonecos de peluche, apagando os últimos resquícios da infância. Com o passar do tempo, os tapetes foram ficando tão descorados pelo sol que, entretanto, já quase não se distinguiam as cores, mas continuavam a perfazer o trajeto da cama até ao guarda-fatos e à porta.

O telemóvel vibrou na mesa de cabeceira, e Hannah inclinou-se para olhar para o ecrã. Fechou o Candy Crush, o jogo que estava a jogar na noite anterior quando adormeceu. Não havia mensagens de Rune — talvez se tivesse esquecido. Voltou a pousar o telefone. Tinha simplesmente de suportar aquele dia.

Quando passou pelo quarto do pai, parou por instantes e pôs-se à escuta. Estava tudo silencioso. Não havia motivo para o acordar tão cedo.

Os tubos de cobre da casa de banho ressoavam enquanto Hannah se debatia sob a temperatura errática do chuveiro. Os pais haviam falado em substituir as canalizações, mas nunca chegaram a esse ponto. O espelho acima do lavatório revelou-lhe rugas de expressão à volta dos olhos escuros e alguns fios de cabelo grisalho, que, uma vez mais, estavam a surgir junto à risca. Hannah arrancou os fios com uma pinça, apanhou rapidamente o cabelo num rabo de cavalo e vestiu calças de ganga e uma camisola antes de se dirigir para a escadaria curva que dava para o vestíbulo da frente.

Tateou a parede em busca do interruptor da luz, reunindo coragem para descer os degraus até à cave. Daniel mudara-se para lá há cinco anos, depois de se ter divorciado de Penelope, precisando de um lugar seguro quando bateu no fundo. Não era um período que gostasse de recordar e geralmente evitava a cave. Havia, na verdade, muita coisa que começara a evitar desde o suicídio de Daniel em fevereiro. Socializar, por exemplo, e voltar a trabalhar, ir à aula de tango. Na verdade, sair de casa, ponto final.

Não suportava a curiosidade das pessoas. E também não suportava a pena que demonstravam.

O interruptor surgiu-lhe sob os dedos. Soltara-se um pouco do estuque, pendia pelos fios. A lista do que precisava de reparação na sua velha casa multiplicava-se como as cabeças de uma hidra. Sempre que cortavam uma, cresciam outras duas no mesmo sítio.

Tirou o telemóvel do bolso das calças. O feixe da lanterna varreu os móveis que eram do irmão — cama de solteiro, secretária, estante de livros — antes de pousar em duas caixas de mudanças. Continham os ficheiros do processo de julgamento e da morte de Daniel, bem como as poucas posses que ele tivera no centro de alta segurança.

Hannah pousou a mão no topo da caixa. Estava cheia de pó, os cantos amolgados. O nome da empresa de mudanças estava impresso de lado em letras pretas. Levantou a aba e apontou a luz para dentro da caixa. Bolsas de plástico verdes e vermelhas, arquivadores fechados com elásticos, uma pilha de discos de vinil e uma caneca que não se lembrava de ter visto antes. Uma caixa de sapatos com cadernos de apontamentos e disquetes que Daniel enchia periodicamente com texto que era basicamente palavreado incompreensível. Milhares de páginas de tentativas incoerentes de reverter as alterações climáticas — era o que fazia nas fases maníacas. A sua missão.

Os textos eram-lhe muitas vezes comunicados nos sonhos, por uma águia ou uma baleia, mensagens com o poder para mudar o
mundo. Era uma loucura tal que Hannah mal suportava sequer pensar no assunto. Passou a mão por um pulôver azul-marinho com um coraçãozinho vermelho no peito, que ela lhe oferecera num dos seus anteriores aniversários partilhados.

Quando perdemos uma pessoa que amamos, dizem que perdemos uma parte de nós. A dor de quem fica é um estado estático, sem promessa alguma de mudança. Mas quando a morte é um suicídio, o porquê? ecoa permanentemente através da dor, dificultando a cura. Fora um choque perceber até que ponto as suas próprias competências profissionais pouco a haviam ajudado a lidar com a dor. O psiquiatra de Daniel no centro de alta segurança, Mikkel Felding, que ela conhecera na universidade, oferecera-se para falar com Hannah sobre os últimos dias do irmão. Se calhar era chegada a hora de aceitar, ver se isso lhe traria algum espaço para respirar.

Com uma energia que não sentia ter, apanhou a caixa, carregou-a para as escadas e voltou para cima, para o vestíbulo, subindo dois degraus de cada vez. Voltou a correr lá para baixo, agarrou na outra caixa e pousou-a no chão preto e branco axadrezado. Uma nuvem de pó bailou na luz do sol. Ali, no vestíbulo da frente, as caixas pareciam inocentes; podiam muito bem conter as botas de inverno que teriam sido as derradeiras posses de um ser humano.

O telemóvel de Hannah tocou dentro do bolso. Tirou-o para fora e olhou para o ecrã.

Número desconhecido. Atendeu, hesitante.

— Estou?

— Bom dia. Aqui fala Sanne Jørgensen, sou da equipa administrativa do Centro Psiquiátrico de Alta Segurança de Nykøbing.

Estou a ligar relativamente a um antigo doente. Estou a falar com um familiar do Daniel Leon?

— Sou a irmã, Hannah Leon.

— As minhas condolências.

— Obrigada. — Hannah clareou a garganta, insegura. — De que se trata?

— Liguei porque, desde que mudámos o centro de alta segurança para Slagelse, temos estado a remodelar e, em parte, a demolir o antigo edifício. Quando estávamos a tirar os móveis da cela do seu irmão, encontrámos uma coisa... — A linha crepitou, como se a mulher estivesse a telefonar do Alasca e não a pouco mais de cem quilómetros de distância. — Atrás de um armário. Ele tirou o painel traseiro e escreveu na parede, usando uma caneta de feltro e uma esferográfica da oficina criativa.

Livro: "A Mão que Escrevia"

Autor: Katrine Engberg

Editora: Minotauro

Data de Lançamento: 9 de maio de 2024

Preço: € 22,90

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— E o que é que escreveu?

— Não está escrito em letras verdadeiras, por isso nenhum de nós o consegue ler. Podem ser só gatafunhos. Mas se quiser ver antes de ser deitado abaixo, estamos ao seu dispor para tratar disso.

— Oh, hum, não sei bem. — O estômago de Hannah deu uma reviravolta lenta só de pensar em voltar a ver a instituição. A longa viagem de comboio para norte, nos mesmos carris onde Daniel se matara. — Pode enviar-nos uma fotografia?

Ouviu-se um arquejo do outro lado da linha, como se a administrativa tivesse soltado uma gargalhada e resfolegado ao mesmo tempo.

— Quero dizer, posso tirar uma fotografia da parede com o meu telefone e enviar-lha, mas acha que vai conseguir ler?

Hannah hesitou, ao que parece o tempo suficiente para pôr a paciência da mulher à prova.

— Enfim, achámos só que a devíamos informar. Se mudar de ideias, pode telefonar e marcar uma visita.

— O. K., obrigada.

Hannah desligou.

Se calhar Rune tinha razão, se calhar era insensível. Numa família de introvertidos sensíveis, sentira-se frequentemente a carta
fora do baralho. Em miúda, estavam sempre a dizer-lhe que estivesse calada, que baixasse o volume e, por amor de Deus, vê lá se te acalmas um pouco. Daniel conseguia ficar sentado horas a fio a desenhar e a ler, enquanto Hannah transformara o primeiro andar numa pista de cavalos, onde montava o seu cavalinho de baloiço como numa prova de obstáculos. A minha pequena Pipi das Meias Altas, chamava-lhe a mãe e, apesar de a sua intenção ser ternurenta, Hannah captava o laivo de reprovação atrás dessas palavras.

Voltou a descer à cave, com a voz da mãe ainda a ressoar-lhe nos ouvidos. O período depois da sentença é uma névoa, mas, quando o julgamento terminou, quando Daniel fora condenado por assassinar a ex-mulher, Rose Leon estendeu-se na cama e nunca mais de lá saiu. O diagnóstico de leucemia fora um choque, porém os médicos disseram que era uma doença que a acompanharia até à morte, mas que não a provocaria. Estavam enganados. Na noite de 6 de fevereiro desse ano, aos setenta e quatro anos, Rose Leon soltara o seu último suspiro, deixando este mundo como quem mal podia esperar por se ir daqui para fora.

*

— Desculpe... Se faz favor!

Liv parou discretamente em bicos de pés, tentando fazer que os seus 162 centímetros parecessem um pouco mais. Doíam-lhe as
barrigas das pernas, mas esticou-se ainda assim, erguendo o queixo. Infelizmente, não fez diferença nenhuma para o homem atrás do balcão, que saltava confiantemente entre a máquina de café e a caixa registadora, olhando despreocupadamente por cima da sua cabeça. Típico de Copenhaga, rosnou para si mesma, lembrando-se com saudades do café local de Aalborg. Nenhum dos clientes tinha de esperar muito tempo e recebia-se um sorriso em troca do dinheiro pousado em cima do balcão.

— Quero uma Coca-Cola e um caracol com manteiga. — Desta vez, falou um pouco mais alto.

O empregado sorriu sem largar a caneca de leite em que estava a fazer espuma e gritou expressivamente de volta.

— Sente-se, servimos às mesas! — Voltou-se de novo para a máquina de café e continuou o que estava a fazer.

Liv estava habituada. Quando se era baixinha e magrinha, as pessoas não reparavam, especialmente os homens arrogantes atrás dos balcões. Esse era um dos motivos por que adorava a sua farda de polícia. Os distintivos e o cinto com o bastão e o revólver de serviço geravam respeito, mesmo em idiotas como aquele fulano. Sentia falta da farda. Sentia falta do trabalho, da identidade.

Mas agora estás aqui, recordou-se a si mesma, encontrando uma mesa vaga entre os clientes que naquela manhã liam o jornal no café. Deixou cair o saco de desporto no chão e sentou-se, ligou o computador e acedeu à Internet. O odor de Therese ainda lhe estava agarrado à pele, uma distração irresistível. Não lhe mandara nenhuma mensagem depois de Liv sair do quarto de hotel sem se despedir. Estaria provavelmente no comboio expresso a caminho de casa. Se calhar já se teria acalmado e enviaria uma mensagem mais tarde.

Liv entrou no website da polícia e analisou os anúncios de emprego, mas nada lhe chamou a atenção.

Voltou a fechar a página, consultou as estatísticas do seu anúncio no Google — nada impressionantes —, e depois varreu com os olhos o texto de um e-mail não solicitado que estava a pensar enviar para fundos de pensões e seguradoras. Mordeu o lábio, corrigiu erros ortográficos e acrescentou vírgulas. Há três meses, tinha um emprego fixo como inspetora de polícia e um apartamento com vista para o fiorde de Lim. Agora, estava a oferecer os seus serviços sob a designação «LJ Investigadores Privados». Investigadores, no plural, apesar de ser apenas ela. Tranquilizava os clientes.

Abriu a conta de e-mail profissional que criara recentemente e respondeu a um cliente que perguntava por resultados. Um dos clientes dele era um doente com dores de costas que suspeitavam ser mais saudável do que dizia à seguradora. Liv prometeu enviar uma atualização o mais brevemente possível. Havia também dois novos pedidos, ambos de outras seguradoras com questões semelhantes. Liv enviou-lhes as suas tarifas e anexou a recomendação que lhe escrevera Petter Bohm há pouco mais de três anos, um inspetor de homicídios de Copenhaga, quando ela se candidatara à vaga na Polícia da Jutlândia do Norte.

Petter orientara um curso sobre técnicas de interrogatório durante a formação de Liv e ela ainda o considerava uma das suas melhores experiências na academia de polícia. Mais tarde, quando ganhava a primeira experiência como polícia de giro, voltou a cruzar-se com ele numa discussão doméstica que se transformou num assassínio. Um homem embriagado insistia que a queda da sua mulher toda amassada pelas escadas abaixo fora um acidente e que não tinha nada que ver com as marcas de estrangulamento à volta do pescoço.

Apesar da juventude de Liv, Petter decidira deixá-la participar na investigação, pelo que assistira a interrogatórios, localizara testemunhas e reunira provas suficientes para uma acusação. Até estava na sala quando o assassino finalmente quebrou e fez uma confissão no meio de lágrimas.

Petter achou que ela era boa. Especial. Sentiu as costas a endireitar-se diante desse pensamento. As próprias filhas dele, que tinham aproximadamente a idade de Liv, haviam escolhido outras profissões — graças a Deus, dizia muitas vezes, mas não era sincero. Alguns dos colegas encaravam a proximidade dos dois com desconfiança, disseminando rumores maldosos atrás das suas costas. Liv sentira essa história na pele quando, aos vinte e cinco anos, fora promovida para assumir a vaga de Aalborg, à frente de outros candidatos com mais tempo de serviço e mais provas dadas. Os agentes locais pediam-lhe que fizesse café como se fosse uma secretária. Ela ignorava-os e, passados alguns meses, já encontrara alguns aliados na equipa. Johan. Michala. Per Anders. Tornavam a vida diária na esquadra suportável, mas a galhofa nunca realmente cessou e o ambiente era sempre tenso.

Liv olhou sobre o ombro, desligou o computador e enfiou-o no saco de desporto. O empregado esquecera-se claramente do seu pedido e, por ela, tudo bem. Copenhaga era cara e, até então, não estava propriamente a nadar em dinheiro com a carreira de investigadora privada. As pequenas quantias que ganhava com pessoas que cometiam fraudes de seguros e que violavam cláusulas de não concorrência simplesmente não bastavam. Era uma situação temporária, ia-se lembrando a si mesma. Em breve haveria de voltar a trabalhar como inspetora.

Acabara de se pôr de pé quando o empregado se aproximou, de ar atarefado, com a sua Coca-Cola e o caracol com manteiga, pousando a conta ao lado. Era mais ou menos o que Liv costumava pagar por um brunch de domingo em Aalborg.

*

Nima Ansari tirou o cigarro da boca e deambulou à volta do carburador Holly 670 que estava desajeitadamente encostado a duas europaletes à frente da oficina. Um Corvette C3 de 1974, mais velho do que ele. O proprietário do carro mandara-o transportar para ali ontem, depois de várias viagens legítimas, mas em vão, até ao mecânico, queixando-se de que continuava a afogar quando estava em ponto morto.

Já verificara o injetor na cuba, as velas e o filtro da gasolina na frente do carburador, mas não conseguiu identificar o problema. Tinha agora de fazer trabalho de detetive. Tinha de examinar, limpar e substituir válvulas e mangas; a falha pode estar nas peças móveis ou pode haver uma fuga algures no sistema de vácuo. Era um desafio, mas Nima gostava de desafios — pelo menos desafios concretos e analógicos. Os que podiam ser resolvidos com tempo e diligência.

Limpou os dedos ao fato-macaco, apagou a beata do cigarro e olhou para a casa principal, situada ao fundo do pátio interior e afastada da rua. Uma velha villa majestosa deixada a apodrecer no meio de um aglomerado de edifícios na fronteira entre Vesterbro e Frederiksberg. Era evidente que, em tempos, fora grandiosa, mas agora estava desesperadamente a precisar de ser restaurada. Ocasionalmente, Nima bebia café e trocava livros com o velho que vivia na casa. Jan. Estava sozinho desde que a mulher morreu.

Os dedos de Nima estavam em pulgas para deitar abaixo o reboco solto da villa, reparar as tábuas do soalho e arear as armações das janelas a cair aos pedaços. Mas já não tinha mãos a medir com os carros — a última coisa de que precisava era mais trabalho. E agora que a filha de Jan se tinha mudado para lá, Nima mantinha a distância, por respeito. Vira-a a carregar caixas para dentro pouco depois da Páscoa.

Divórcio, apostaria dez para um. Estava em idade disso, pensou, quando pegou numa chave de fendas.

Desapertou a cavilha que fixava a manga ao ramal de escape e examinou-o minuciosamente em busca de fugas. Desapertou o injetor. Se calhar era altura de fazer uma visita à mãe. Tivera uma crise de zona e sentia-se demasiado mal para sair de casa, como fazia questão de lhe lembrar todos os dias.

Nima sabia que, na verdade, a questão não era essa. Também sabia que a sua irmã, Daria, passara lá ontem com dois sacos cheios de compras, mas isso nada fazia para lhe apaziguar o sentimento de culpa. Sentia-se puxado por um cordão umbilical. Um refugiado pode achar que vai tendo uns assomos de liberdade, mas nunca será realmente livre.

Limpando o injetor com um pano, decidiu cortar um centímetro da manga e aplicar-lhe um grampo novo, pelo que se arrastou até à oficina para procurar a caixa certa. O telemóvel vibrou dentro do bolso. Tirou-o para fora, olhou para o ecrã e sorriu. Marianne.

O cheiro a óleo e a fumo pairava, denso, sob o teto da velha garagem. Não tinha mais de cinco por seis metros e as paredes estavam apaineladas com folhas de masonite cobertas com a fileira de ferramentas. Ali, tudo tinha o seu lugar e havia metros e metros de estantes em toda a volta. Caixas com cavilhas e parafusos, extratores e cintas de depósitos pendiam lado a lado, tudo claramente identificado. O armazém asseado, mas algo antiquado, fizera parte do acordo.

Nima adorava a materialidade sólida do sistema. Recordava-lhe uma mercearia de brincar que recebera quando a família ainda vivia em Ghaemshahr, no Norte do Irão. Herdada, se bem se lembrava, de uma das tias do lado do pai, e sem dúvida inicialmente destinada a Daria, mas ela não gostava de brincar com aquilo. A loja era composta por três armários com porta de vidro encolhidos numa dimensão infantil e um balcão baixo com uma caixa registadora de latão brilhante que fazia ping. Gavetas de madeira para a farinha e o arroz, que chiavam ao abrir. Um pequeno mundo de ordem e qualidade.

Nima ficara com a oficina de Bob, o Snob, um fantástico mecânico de Vesterbro que, entretanto, se aposentara. Não haviam assinado contratos que envolvessem bancos, limitaram-se a dar um aperto de mão e a trocar envelopes. Era pequena e tinha as suas limitações. Se precisasse de uma caixa de gordura ou de uma barra de reboque, tinha de pedir emprestado à garagem autorizada mais próxima, mas raramente era necessário. A maior parte dos carros antigos podia ser arranjada ali no pátio com um kit de ferramentas amador e uma boa dose de paciência.

As coisas podiam ter sido diferentes. Tinha já feito a maior parte de uma licenciatura de engenharia e sabia que os pais tinham
nutrido esperanças de que chegasse mais longe. As suas ambições haviam-lhe provocado cefaleias de tensão durante anos. A oficina fê-las desaparecer.

No canto mais próximo da porta, havia uma cadeira de braços antiga, junto a uma máquina de café e ao lavatório, bem como uma aparelhagem e um compartimento secreto onde punha dinheiro e os charros que de vez em quando fumava. Na parede atrás da aparelhagem, afixara um extrato do poema favorito do pai, de Forugh Farrokhzad, a poeta mais amada do Irão. Aquele em que ela se recusava a sentir arrependimento.

Não me arrependo,
pensando nesta resignação, nesta triste capitulação.
Beijei a cruz da minha vida
nas colinas da minha execução.

Nas ruas frias da noite,
casais separam-se,
hesitantes.
Nas ruas frias da noite,
não há sons, só vozes
a dizer Adeus, adeus.

Quando fugiram pelas montanhas da Turquia, a avançar penosamente pela noite fora e através dos montes de neve, todas as noites Nima o recitava à mãe e à irmã. Primeiro, para que se lembrassem de onde vinham; depois, para se esquecer do que fizera para conseguir sair.