A mistura de que fala Blaya pode ser vista, desde logo, no início do videoclipe da sua mais recente música. O ritmo do funk é acompanhado por uma coreografia que percorre os prédios de Chelas. A descer as escadas abertas, comuns nos prédios de construção antiga em Portugal, Blaya exibe os movimentos que já lhe conhecemos e surpreende com um sotaque brasileiro. “Mas ele diz que não dá. Mas deixa a cachaça acabar. Menino te digo tu está bem perdido e ainda quer se achar”, canta.

Blaya nasceu em Fortaleza, no Brasil, mas veio para Portugal com dois meses. Nesta que é a oportunidade de arrancar com uma carreira a solo, opta por homenagear as suas raízes. “Eu sou brasileira e decidi começar com aquilo que também me define: as minhas raízes”.

A meio do videoclipe passamos das cores vivas - como o amarelo, azul ou cor-de-rosa - dos prédios de Chelas, para dentro de um restaurante. Nele, Blaya, envolta em sensualidade, espera que o empregado lhe faça um milkshake. “Ele faz tão gostoso. Ele faz tão gostoso”, repete.

Relativamente à música que apresenta o seu próximo álbum, Blaya diz que o conceito “Faz gostoso” pode ter uma interpretação ampla. “Não é um tema profundo. É mais para as pessoas se divertirem. Eu digo 'Faz Gostoso' mas não digo o que é que a pessoa faz de gostoso. Toda a gente pode fazer tudo gostoso. Faz gostoso a cozinhar, a fazer exercício, a namorar, a ler, a escrever. Tudo se pode fazer gostoso. No videoclipe é o milkshake que está presente. É o milkshake que ele faz gostoso”.

Se, em entrevistas antigas, ouvíamos Blaya a dizer que muito do seu percurso musical tinha de ser percorrido antes de ser mãe, a verdade é que o novo começo consagra-se depois de a sua filha nascer. Aliás, foi precisamente a maternidade a força impulsionadora que até então faltava. “Quando eu engravidei tive mais tempo para pensar. E comecei-me a perguntar ‘ok mas o que é que eu quero fazer além da dança?’ e comecei a pensar em focar-me mais na música. A caminha cabeça está sempre a pensar em coisas”.

Blaya confessa que ser mãe não mudou a sua personalidade, tornou-a apenas mais responsável, e não a fez ter vontade de abrandar o ritmo. Pelo contrário. Enquanto estava grávida, Blaya continuava a dançar, a dar workshops de dança e a dar concertos, como o do festival Meo Sudoeste. Agora, com a bebé pequenina, os dois mundos continuam a não entrar em conflito. No Instagram mostra uma fotografia em que dá de mamar à filha durante as gravações do videoclipe. “Tudo pode funcionar, se quisermos”, conta-nos.

O EP chamado “Blaya”, lançado em 2013, impede que esta seja uma estreia completa a solo. Contudo, a cantora diz que este percurso é totalmente novo, em nada comparável com o que anteriormente fez. “É uma nova etapa. Eu estive oito anos com Buraka [2008-2016], e durante esses oito anos não tínhamos a possibilidade de trabalharmos nós próprios. Nós estávamos nos Buraka, e tínhamos sempre imensas coisas para fazer. Nenhum de nós conseguia fazer coisas a solo. Os Buraka acabam em 2016 e esta foi a minha oportunidade”.

“Decidi que queria fazer uns sons e falei com o Emerson da Red Mojo para ir ao estúdio dele gravar uns sons. Foi ele que me disse ‘não, vamos fazer isso como deve ser’. Tivemos uma reunião e começámos a planear novas músicas com produtores, song writers, músicos, cantores. E assim nasceu o meu novo álbum, que vai surgir este ano”, conta Blaya, sem revelar a data do lançamento. Até agora, sabemos que existem 12 temas, e que no grupo estão nomes como MC Zuka, Vírgul, Kaysha, Laton, Ella Nor.

A cantora adianta que podemos esperar “uma vibe tropical, um lado rap, um lado pop, um lado funk, mas também slow, com mais baladas”. É na mistura que Blaya se sente bem. “É tudo uma mistura porque na verdade eu sou uma mistura. Nasci no Brasil, vivo em Portugal e tive oito anos num grupo considerado afro, que pertencia ao estilo house ou música eletrónica. Eu represento tudo isso. Nunca conseguia colar-me só a uma coisa”.

Ainda que o novo trabalho mostre outras facetas da cantora, a passagem pelos Buraka Som Sistema acaba por estar sempre presente. “Eles ensinaram-me tudo o que eu sei. A nível de estúdio, a nível de palco. Isso acaba por estar sempre presente. Mas agora cada um tem as suas cenas, já todos temos filhos. Agora a próxima banda fixe vai ser com os nossos filhos”, diz Blaya.

Com 14 anos escrevia letras de rap com um dossier de palavras em crioulo ao lado

Blaya vem para Portugal, em bebé, para que o pai pudesse jogar à bola. Viveram em Moura, Castro Verde, Algarve e acabaram por estabilizar em Ferreira do Alentejo. A primeira letra, ainda que já não lhe recorde os pormenores, foi escrita sobre o seu cão, que tinha sido atropelado. “Tinha 13 ou 14 anos e fiquei muito triste. E deu-me para escrever isso”.

É precisamente em Ferreira que Blaya passa a sua infância e adolescência. Não demorou muito até o Alentejo e a Blaya se tornarem peças de baralhos muito diferentes. “Eu ouvia muito rap mas não se fazia rap no Alentejo. Comecei a escrever umas letras e tinha um dossier com palavras em crioulo que anotava das músicas porque não se falava crioulo no Alentejo. E eu queria ter crioulo nas minhas letras”.

Sem amigos com quem partilhar as descobertas e inquietações musicais, Blaya fez uma conta no mIRC, o chat mais popular do final dos anos 1990, com o nome “Dama”. “Foi aí que conheci a Dama Bete e o grupo dela, falei com ela para escrevermos”. Blaya chegou a fazer parte de um grupo de hip-hop feminino com a Dama Bete, conhecido como a Blacksystem, que acabou por não ter extraordinária ressonância.

Depois de conhecer os raros, na altura, nomes femininos do rap, como Eva RapDiva e Tamín, começou a escrever sobre as mulheres e o seu poder. Com 18 anos escreve a sua primeira música de empoderamento feminino.

“Mulheres de punho firme/ mulheres de afirmação/ mulheres consideradas as melhores da nação/ mulheres a tempo inteiro/ mulheres ao nosso alto/ levanta as mãos isto é um assalto” são as primeiras frases da música.

Porém, a passagem pelo rap não se arrastou por muito mais tempo. “Deixei de escrever porque comecei a perceber que o rap não tinha saída. Se formos a ver, no rap não há muitas mulheres, acho que quando envolve expor a nossa imagem no palco, de preencher um palco, não há muitas mulheres. As pessoas não estão habituadas a ver mulheres assim”.

Com 16 anos, decide sair de casa para morar com o namorado, que vivia em Sines. “Em Ferreira não se fazia nada. E eu disse que queria ir embora. Os meus pais sempre foram muito na boa. E disseram-me ‘se é isso que queres fazer então bora, vai’. Deixaram-me ir e correu bem”. Foi precisamente em busca de mais que Blaya encontrou outros ritmos. “Comecei-me a ligar à dança, porque com a dança conseguia fazer muita coisa”.

É a dança que começa a fazer com que Blaya comece a visitar a capital, onde acaba por ficar a viver com 19 anos. “Eu tinha um grupo de dança no liceu mas comecei a vir a Lisboa fazer cursos de hip-hop, para ser professora. Com 19 anos convidaram-me para vir para Lisboa para fazer a tour da Coca-cola. Íamos dançar por todo o lado. Vim para Lisboa e foi aí que comecei a dançar a sério”, explica.

Na capital chegou a fazer parte de um musical, o High School Musical, no teatro Tivoli. Em 2008, foi chamada para o casting de bailarinas dos Buraka Som Sistema, mas nem kuduro sabia dançar. Começou a aprender no YouTube, a imitar o que via nos vídeos, a apanhar-lhe o jeito, e conseguiu entrar na banda. Uma semana depois do casting, já estava em cima do palco, ainda que não tivesse as coreografias decoradas. “No primeiro concerto nem sabia bem o que estava a fazer”, confessa. “Mas sempre fui muito do improviso”.

“Passado uns anos, pedi aos Buraka para cantar”

Nos primeiros anos, Blaya era apenas a dançarina dos Buraka Som Sistema, a banda de eletrónica e kuduro que enchia plateias pela Europa. “Mas quando íamos para fora de Portugal eu cantava porque a PombaLove não tinha os documentos para ir para o estrangeiro e eu tinha. Então eu ia com eles e cantava. Mas cá em Portugal eu só dançava”. Depois de algumas digressões, Blaya quis pegar no microfone. “Pedi a eles para cantar o 'Aqui Para Vocês' e eles disseram-me ‘tá-se bem podes cantar’. Comecei a cantar uma música, duas músicas, três músicas. Depois a Pomba saiu e eu fiquei a fazer as músicas todas”.

A banda termina em 2016 e Blaya decide que é hora de se dedicar à dança. Já perto do fim dos Buraka, estava no estúdio, sentada no sofá, a fazer contas à vida. “Eu estava sem dinheiro. Um artista pode ter muitos trabalhos e de repente não tem trabalho nenhum. E eu só pensava ‘epa preciso de fazer qualquer coisa, estou sem dinheiro’”. Surgiu-lhe a ideia “simples” de partilhar no Facebook e no Instagram a iniciativa “Pack Five Bundas” em que se propunha a dar aulas de dança na própria casa das pessoas. O grupo tinha de ter no mínimo cinco pessoas e cada uma pagavam 10 euros. “Por acaso resultou, o pessoal curtiu e começou a mandar-me mensagens a dizer que queria”.

As aulas de dança continuam até ao dia de hoje. Para Blaya, não se trata apenas de saber mexer o rabo, as aulas focam a capacidade de a dança estimular a autoestima das mulheres. “Quem vê uma mulher a abanar o rabo, pode pensar que é só aquilo. Mas quando se abana o rabo, também se trabalha a autoestima, também se trabalha a pessoa. É preciso ter tomates, ou melhor… pachachas, para ter aquele nariz empinado. Para dizer ‘bora lá’. Para não se sentir constrangida a fazer aquilo. É trabalhar o corpo e a mente”.

Numa sociedade onde as mulheres são incentivadas a seguir uma vida regrada e a não exibirem a sua sensualidade, correndo o risco de serem rotuladas de vários nomes, Blaya quer precisamente levar as mulheres a libertarem-se. “Com a dança, consegue-se desconstruir a vergonha, consegue-se desconstruir o preconceito. Com o corpo as pessoas conseguem chegar a elas próprias e conseguem ser elas próprias mais rapidamente. Isto é quase uma missão, fazer com que a mulher se liberte através da dança”.

Além da esfera privada das aulas de dança, Blaya partilha nas redes sociais as suas coreografias. “Eu coloco vídeos meus a dançar no Instagram e no YouTube para que todos se possam sentir confortáveis consigo próprios. Para mostrar que cada um pode fazer o que quiser com o seu corpo. Se quiserem dançar, dançam. Se quiserem cantar, cantam. O que interessa é sentirmo-nos bem com nós próprios”.

Quando colocava os seus vídeos nas redes sociais, eram várias as pessoas que pediam conselhos a Blaya, conselhos esses que não demoraram em extravasar do mundo da dança. “Muitas pessoas me vinham perguntar diretamente, no Instagram por exemplo, como é que eu mexia o rabo e pediam-me dicas para apimentarem a sua vida sexual. Até me faziam perguntas sobre o clítoris e sobre a pílula e o preservativo. E eu matava a minha cabeça. Procurava informação sobre meios contraceptivos durante horas”, conta.

Em vez de responder individualmente a cada um, Blaya decide criar um grupo secreto no Facebook, destinado à discussão de pormenores na vida sexual. “Eu fiz um grupo secreto no Facebook para que as pessoas pudessem colocar as suas dúvidas. O grupo foi crescendo, agora tem cerca de 12 mil membros. Não tenho postado lá muita coisa porque sempre que alguém escrevia algo mais fora da caixa, alguém no grupo pegava naquilo e publicava para toda a gente ver. Havia pessoas lá com perfis falsos, eu passava horas a tentar ver quem podia ser, mas eram tantas que eu não conseguia. Por causa disso, deixámos um bocado o grupo de parte. Ainda vou voltar a criar outro. Assim mega restrito, ultra mega secreto”.

O grupo perde força e Blaya arranca com o canal de YouTube "Late Night Blaya", que dá conselhos sexuais para que as pessoas estimulem a relação com o seu parceiro/a e com o próprio eu. “Olá, pessoal! Nós vamos falar de mulheres, de sexo, e de muita coisa que ainda é tabu”, são as primeiras palavras de apresentação do canal.

As críticas que recaem sobre Blaya vão desde os seus movimentos de dança, até aos seus conselhos sexuais, não esquecendo as fotografias que geraram enorme burburinho. Contudo, assegura que as críticas, carregadas de preconceitos, estereótipos e frases chavão machistas, não acertam no alvo. “Eu faço aquilo que quero fazer”.

“É muito complicado as pessoas ultrapassarem a barreira do rabo. Acham que eu sou só o rabo. E não sou. Eu meto imensas coisas nas redes sociais, faço imensas coisas diferentes, mas se eu posto uma foto de cuecas, dizem logo: ‘essa só mete fotografias nua’”. Blaya alerta ainda para a diferença de tratamento quando se trata de uma mulher. “Por exemplo, no dia Internacional da Mulher meti uma fotografia de tronco nu com a minha filha. E isso foi notícia… e a notícia dizia “Blaya nua”. Se fosse um homem nem era notícia, ou era ‘homem de tronco nu’.

“Estamos em constante luta. É uma coisa muito complicada. Mudar a mentalidade das pessoas. Para conseguir mudar as mentalidades, as pessoa tem de se relacionar, tem de te conhecer, de perceber o que tu és. Se não for assim, é muito difícil. Às vezes as próprias mulheres que dizem lutar contra o preconceito acabam por não apoiar as mulheres mais extravagantes. Dizem ‘sim, sou ganda maluca, mas aquilo [a Blaya] já é maluca demais’”.

Entre a Blaya e a Karla Rodrigues (o seu nome verdadeiro) já não há diferenças. “Somos a mesma coisa. Temos a mesma luta. Que as pessoas não tenham medo de ser quem são. Quantos mais formos a ser verdadeiramente quem somos, menos falatório vai haver, e mais próximos da igualdade vamos estar”. Ao contrário dos rótulos de “maluca”, Blaya diz ser uma pessoa muito calma, que gosta de estar em casa, que sente paixão pela liberdade e que se afasta do piso escorregadio do mundo dos sonhos. “Eu não tenho sonhos. Tenho objetivos. Sou muito ambiciosa, mas não crio expectativas. Eu quero sempre mais, mas não crio expectativas, para não ficar triste se correr mal. Fico sempre ‘tá-se bem’. Não sou muito emotiva, se acontecer alguma coisa boa, não faço logo uma grande festa nem começo aos gritos. Fico calma, tranquila”.

Questionada acerca dos seus objetivos, Blaya divide-os em duas correntes. “Quero dar tudo à minha filha, para ela ser o que quiser. Quero dar-lhe tudo o que ela necessitar. Depois, quero que as pessoas ouçam a minha música, porque na música eu consigo falar, consigo explicar o que eu sinto. Quero que as pessoas cantem, dancem, se sintam bem. E quero dar voz a mulheres”.

Na música, conhecemos agora uma nova Blaya que bebe de todas as suas facetas antigas. Com o "Faz Gostoso" já no ouvido, esperam-se as restantes músicas do álbum. "Vai surgir tudo este ano. Estou muito entusiasmada para o que aí vem".

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