Um trailer não conta a história toda
A reação não foi a melhor, os ânimos exaltaram-se e as caixas de comentários em redes sociais encheram-se de críticas, assim que, foi possível dar a primeira vista de olhos ao mundo de Cats, num trailer de dois minutos e meio. “Aquilo não são gatos”, “A Hermione em Harry Potter e a Câmara dos Segredos parece mais um gato do que aquilo” e “Vai ser um filme de terror e não avisaram ninguém” foram alguns dos desabafos. Todos convergiam naquele que foi o "senão" que mais comichão causou relativamente à adaptação de Cats ao cinema: os gatos não pareciam gatos, mas outra coisa qualquer que depois tomava a cara dos atores que encarnavam as diversas personagens.
Na era de adaptações live-action a que a Disney nos habituou, o público passou a criar algumas expectativas no que diz respeito a filmes que retomam algumas das suas histórias preferidas. Grande parte destas películas foram sucessos de bilheteira, porque trouxeram uma nova abordagem visual e porque os seus orçamentos demonstravam um grande esforço na caracterização, quase exclusivamente através de efeitos especiais que recriavam um determinado universo e de personagens às quais grandes atores acabam por dar só a voz, como vimos recentemente em O Rei Leão.
Não foi essa a decisão tomada em Cats. Realizado pelo diretor britânico Tom Hooper, responsável por O Discurso do Rei e pela adaptação do musical Les Miserábles, a direção tomada no filme, com um orçamento estimado de 100 milhões de euros, foi a de uma personalização dos felinos, misturando a silhueta e face dos atores com efeitos especiais que lhes dessem as características dos bichos como as orelhas, o bigode, o pelo e a cauda. Dizer que as pessoas não apreciaram esta decisão é um eufemismo e muitas apressaram-se a fazer um julgamento apressado de que o filme ia ser um flop por esta razão. Ainda por cima ao estrear na semana anterior a um tal de Star Wars, a lançar o último episódio da sua trilogia.
Por detrás desta opção pode ter estado um excesso de zelo pelo próprio musical, em que os atores que sobem ao palco vestidos com fatos de gato, talvez, Hooper tenha querido trazer essa inspiração também para o grande ecrã. Não se pode dizer que resulte e acaba por ser provavelmente aquilo em que nos focamos durante quase todo o filme, contudo, e spoiler alert... isso não torna esta longa-metragem má. No final, a forma é ultrapassada ou pelo menos relativizada e o conteúdo conquista-nos para a história, acabando por dar uma boa sessão de cinema. Por isso, vamos ao conteúdo.
Uma introdução ao mundo dos Gatos Jellicle
Quando Andrew Lloyd Webber trouxe Cats ao mundo, na década de 80, teve a inspiração num livro de poemas do autor americano T.S. Elliott chamado Old Possum’s Book of Practical Cats. A obra, publicada no final da década de 40, incluía uma série de poemas sobre a psicologia felina, onde já estavam descritas a maior parte das personagens que depois seriam utilizadas por Webber na história do musical.
O filme joga pelo seguro e não se afasta muito da história já contada por palcos no mundo inteiro. Em plena Londres, somos confrontados com Victoria (Francesca Hayward), uma gata abandonada nas ruas da capital inglesa, que é rapidamente acolhida por uma família de gatos – os Jellicle – que tentam rapidamente enturmá-la de todas as suas tradições. Chefiados por Munkunstrap (Robbie Fairchild) que serve de principal narrador, os Jellicle apoiam as artes e a capacidade de cada gato se poder expressar e viver da maneira que gosta, por isso, todos os anos organizam um Baile Jellicle, evento onde é feita a Escolha Jellicle, que determina quem poderá subir à Camada Celestial (aka paraíso dos gatos) e reencarnar numa nova e melhor vida de gato.
Como é feita esta importante decisão? Cada gato tem a sua canção e tem a oportunidade de a cantar e dançar no Baile, em frente à matriarca da familía, a Velha Deuteronomy (Judi Dench), que depois escolherá quem é merecedor desta honra. Esta personagem traz das poucas inovações que foram feitas para este roteiro, dado que, no musical original, tínhamos uma versão masculina. Como garantir uma nova vida é importante, especialmente para os gatos, que em média têm sete, obviamente que não faltam candidatos.
Jennyanydots é uma gata preguiçosa durante o dia e cheia de projetos à noite representada por Rebel Wilson, que arranja aqui mais uma personagem em que faz dela própria. Bustopher Jones, personificado pelo apresentador James Corden, é o gato que conhece todos os cantos da cidade onde pode saciar a sua gula e que tenta ajudar a sua família a ter o que comer também. Rum Rum Tuger é o gato cool e atrevido que adora ser o centro de atenções, que ficou a cargo de Jason Derulo. Grizabella é a gata solitária que foi ostracizada pela família a quem Jennifer Hudson dá vida e que canta “Memory”, a canção mais famosa do musical (e também o momento que mete até o mais impenetrável ser humano com uma lágrima no canto do olho). Gus é o Gato do Teatro, que tem saudades dos tempos em que era uma jovem estrela e que quer uma nova oportunidade de reviver essa vida, impecavelmente interpretado por Ian Mckellen. Skimbleshanks é o Gato Ferroviário, cheio de energia que trabalha nos comboios e garante toda a sua organização, que acaba por ser o candidato mais esquecível desta lista. Mr. Mistoffellees é o Gato Mágico, que acaba por engraçar com Victoria e que irá desempenhar um papel fundamental que o leitor poderá descobrir ao ver o filme.
Como em qualquer boa história falta o vilão. Interpetado por Idris Elba, Macavity é o terror dos Jellicle, que vai durante o filme raptando os candidatos que considera serem a maior ameaça a que ele seja o escolhido para ir para a Camada Celestial. No Baile, Macavity tem uma introdução de luxo por parte de Bombalurina, desempenhada por Taylor Swift, que para quem achava - devido ao trailer - que ia ter uma participação de relevo, acaba por não aparecer mais do que dez minutos, naquilo que só pode ser chamado de uma ótima campanha de marketing. Curiosamente, no musical original, a personagem de Swift odeia Macavity, mas talvez para não estragar a agenda da estrela americana, o guião foi alterado que apenas tivesse um papel menor como parceira de crime do vilão.
Uma espécie de veredito
Podemos olhar para Cats como uma alegoria para diversos comportamentos humanos. A procura de encontrar um paraíso e a projeção da vida para além da morte. A diversidade promovida pela raça e origem dos diversos gatos e gatas que são apresentados. A malvadez e a procura do sucesso passando por cima de outras pessoas. O facto de o sucesso e o poder estarem, às vezes, no sítio onde menos estamos à espera.
Todas estas mensagens continuam a estar nesta versão cinematográfica de Cats. Usando um clichê, é uma película que, primeiro, se estranha porque é verdade que esperávamos outros gatos, o que baixou as expectativas ou desmoralizou mesmo alguns fãs. Mas é também uma película que se entranha a partir do momento em que percebemos que mais do que fazer um filme a partir da peça, a ideia é dar a um musical de palco a magia visual que só o cinema consegue. Não é um filme com uma grande profundidade de conhecimento das personagens ou com uma complexa história na base, mas também não é esse o objetivo. Por entre os segmentos de dança e as músicas que já tinham apaixonado espectadores um pouco por todo o mundo, há no fim a sensação de uma história bem contada e bem realizada, na qual a figura dos gatos acaba por ser esquecida, deixando na memória uma boa experiência.
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