Na vida, deparamo-nos com múltiplas escolhas e diversas tomadas de decisão. No Palácio Anjos, em Algés, Oeiras, a exposição "Amor Veneris, Viagem ao Prazer Sexual Feminino" abre portas à sexualidade feminina. À entrada, uma passadeira de duas vias, dois caminhos à espera de uma decisão a ser tomada pelo visitante.

“A viagem parte de uma escolha. Entrar numa viagem com consentimento, porque vai entrar num edifício que é corpo, ou numa sem consentimento”, explica Fabrícia Valente, curadora acompanhada de Marta Crawford, sexóloga.

Guiado pelas curadoras, o SAPO24 percorreu os dois caminhos.

Optou, primeiro, pela via do “com consentimento” e recebe a informação: “Ao entrar no consentimento, encontrará três núcleos: o cérebro, o principal órgão sexual, a pele, que é o maior e o clitóris, que tem como única função dar prazer”, resume Fabrícia Valente.

Percorremos diversas salas delimitadas por cortinas e dispersas por dois andares. Estas, escondem quadros, desenhos, fotografia, esculturas, texturas, a explosão de cheiros saídos de perfumes, experiências sensoriais, conteúdos audiovisuais e instalações interativas de caráter lúdico-pedagógico.

“A curadoria divide-se entre um lado artístico, a arte contemporânea, num território híbrido, leva-nos a muitas decisões e interpretações, e científico” acrescenta.

Cérebro: “muita coisa pode acontecer na cabeça de uma mulher”

Comecemos pelo primeiro ponto do tríptico.

Inicia com um desafio entre o vídeo com caráter científico e lúdico e obras de arte que remetem para a área mais cerebral da sexualidade. “Muita coisa pode acontecer na cabeça de uma mulher que a pode levar a ter um ímpeto para a procura do prazer ou de retração tendo por base os costumes, a educação ou religião, os medos e fantasmas”, explica Fabrícia Valente.

Os momentos sensoriais exalam na criação da perfumista Cláudia Camacho. “Foi buscar aromas corporais e animais”, atesta a curadora ao apontar o dedo para um conjunto de quatro perfumes alinhados.

Marta Crawford, mentora do projeto que estará patente até 30 de dezembro, intromete-se. Deixa um aviso. O que vamos ver (e ler) não é um feudo exclusivo para adultos. É para todas as idades.

Convida-nos a espreitar a obra de Erika Lust, uma das mais de 30 artistas presentes na mostra. “É pornografia pensada para o feminino, em torno da mulher. Funciona como um peep show, o lado mais recôndito e voyeurista”, explana. Fabrícia mostra Janini Antoni. “Trabalha a ideia glamorosa feminina do chocolate, o lado guloso”, adianta.

“A exposição vai ao encontro dos cinco sentidos”, sustenta Marta Crawford ao fechar o primeiro núcleo. “Mas as mulheres só têm cinco?”, perguntará o leitor mais atento e perguntou o SAPO24 às curadoras. ”Seis. Seis sentidos. É necessário encontrá-lo”, retificou a sexóloga, entre sorrisos.

Pele: “É importante tocar dos pés à cabeça, o corpo por inteiro e depois, sim, avançar”

Inês Norton abre caminho à exploração da pele. “Temos dois metros quadrados de pele e muitas vezes é posta de lado no que tem a ver com a sexualidade feminina, muitas vezes vista como algo dirigido às mamas ou genitais. É um mercado para explorar. É importante tocar dos pés à cabeça, o corpo por inteiro e depois, sim, avançar”, sugere a terapeuta sexual e familiar.

Para a curadora Fabrícia Valente, ”o corpo feminino teve historicamente uma representação muito ligada ao erotismo, a ideia do corpo objeto”, revisita. “Os artistas contemporâneos trabalham uma multiplicidade de corpos, por vezes andrógenos, e tentámos criar uma leitura totalizante”, atesta. O tema (andrógeno) será recuperado uns metros mais à frente.

“Mais que trazer artistas femininas, procuramos trazer o corpo de várias formas. É um feminino mais abrangente. E vários tipos de mulheres, com e sem vulva, com e sem clitóris. É a diversidade desta exposição”, frisa a sexóloga Marta Crawford. “A ideia é falar do feminino. Para que as pessoas olhem para as obras e tirem conclusões”, avisa, enquanto deixa uma garantia: “não há referências a orientações sexuais”.

“Temos artistas trazidos pelo menos óbvio. É o caso da Fernanda Fragateiro, trabalha o espaço público e privado, o corpo interior e exterior, mostra-nos uma toalha, o espelho e uma frase invertida”, explica Fabrícia Valente.

De Teresa Crawford Cabral surgem texturas penduradas na parede. “É feita em pele de cavalete onde o corpo, as mãos e as vulvas já andaram”, refere Marta Crawford. A presença de Julião Sarmento mostra que a exposição não está vedada a homens. É o olhar do homem sobre o corpo da mulher patente na obra “Dejá Vu”.

Fabrícia Valente introduz Louise Bourgeois e Maria Beatriz. “São as zonas de fronteira. A amputação do corpo e a insatisfação da mulher da posição que lhe dão e não tem a ver com a posição física”, assinala.

Altura de recuar à exploração do lado andrógeno. “Vemos sempre o feminino e o masculino e ainda hoje é difícil perceber os hermafroditas, hoje, intersexo. Estas dualidades do corpo e do género e a ideia de preto e branco. Do corpo que continua a ser feminino embora fora dos cânones que conhecemos”, explicita Marta Crawford.

“Os Espacialistas, um coletivo de arquitetos que trabalham a relação do corpo e do espaço e entre a arte e a arquitetura. Criadas as texturas, com fluidez andamos a percorrer corpo, a sentir corpo, a intensificar num processo de excitação, essa cinegrafia, andar não num corpo literal, mas o que é um corpo feminino espacialmente pensado”, continua a psicoterapeuta, terapeuta sexual e familiar.

“Se em baixo tínhamos o corpo na totalidade aqui em cima [piso 2] temos partes do corpo”. Aponta para o grande mural das vulvas de Jamie McCartney. “400 vulvas todas diferentes umas das outras, são modelos reais e é um apelo à diversidade”, atesta.

Sophia Wallace
Sophia Wallace Sophia Wallace créditos: Créditos: Diana Quintela

Clitóris: “O único órgão que tem função dar prazer tem 8 mil terminações nervosas, é muito maior do que se pensava — 10 vezes maior”

A perspetiva voyeurista permanece na última paragem. Sophia Wallace esmaga a visão dos visitantes com 100 regras da cliteracia. “É uma obra muito ativista, uma série de frases, feministas a apontar para a sexualidade, o empowerment do corpo e a importância de não ser relegada para segundo plano”, frisa.

As duas curadoras param em frente do clitóris “ativista”, o verdadeiro “ex-líbris” da viagem. A grandiosidade remete-nos para a figura de um elefante numa sala, embora esteja adaptada espacialmente ao local.

A pausa é aproveitada para uma lição de anatomia. “É importante para tirar a ideia que o sexo é penetração, entrar pela vagina”, avisa Marta Crawford.

“O único órgão que tem função dar prazer tem 8 mil terminações nervosas, é muito maior do que se pensava, 10 vezes maior, e só em 2005 a anatomista Helen O’Connell vem fazer esses estudos”, anuncia. “Se o anatomista Matteo Realdo Colombo fala em 1579 do amor veneris, a razão desta exposição e fala deste clitóris, estamos em 2022 a defender a importância do prazer sexual feminino e a importância do clitóris”, compara. “E estamos a falar dessa grande questão: alertar para falar de uma coisa que habitualmente fica no vão de escada. O clitóris e o prazer sexual da mulher”, atira.

Terminado o descanso, aceleramos o passo. “É a área de maior excitação, intensidade e intimidade maior. Ouve-se o coração a bater (pum-pum), a excitação a aumentar e uma interpretação do prazer da excitação com direito a um sítio para descansar e usufruir”, descreve Marta Crawford. “É a chegada à experiência orgástica, uma obra com movimento, luz e uma corrente sanguínea”, transmite Fabrícia Valente.

O orgasmo é onde tudo termina. Os Error-43, “um coletivo de arquitetos”, desenvolveram uma instalação “que interpretaram o orgasmo feminino tendo em conta a ciência”, explica Marta Crawford. "O que é a cadência de um orgasmo, o espasmo, as contrações e o afluxo de sangue à zona pélvica para terminar em grande esta viagem ao prazer sexual feminino”, descreve.

O lado da violência sexual: “Levo porrada à segunda e à quarta e à sexta sou violada”

Mas a viagem não termina aqui. Recorda-se, seguramente, o leitor, no início do texto se falar de dois caminhos e uma escolha.

Ora, entramos na sala do “sem consentimento”, sita no piso de baixo, no ponto de partida, paredes-meias com o caminho “com consentimento”.

“O sem consentimento leva uma abordagem sobre toda a situação de violência da mulher e a escolha das obras está relacionada com esse murro no estômago”, sustenta Fabrícia Valente. “Mutilação genital, violação, violência sexual contra as mulheres, abusos, tráfico e crimes sexuais”, acrescenta Marta Crawford.

O grito vem pela arte de Paula Rego, pela banda desenhada de Alice Geirinhas sobre Tânia Vanessa (“Levo porrada à segunda e à quarta e à sexta sou violada”, lê-se em letras brancas por cima de fundo preto), pela obra de Sara Maia e pela instalação de Ana de Rocha criada propositadamente para a primeira exposição do MU S-E-X, o Museu Pedagógico do Sexo.

“À saída temos um manifesto. Temos o lado do 'com consentimento' e do 'sem consentimento'. Apelamos às pessoas: escolheste essa maneira. E se tivesses escolhido outra”, questiona. “O manifesto tem um desenho de Isabel Baraona e um manifesto propriamente dito, o que é o consentimento, a importância das regras, o que é a agressão sexual, que era uma das missões da exposição. Para se perceber muito prático, o que é e não é consentimento que é fundamental para o prazer sexual feminino”, finaliza Marta Crawford, a ideóloga e responsável pelo conceito que subjaz à exposição patente no Palácio Anjos, em Algés.

Uma exposição que não se esgota nas salas. Contará com um programa cultural diversificado e dirigido a diferentes públicos-alvo, incluindo crianças, dias específicos dirigidos às famílias, oficinas pedagógicas, conversas, a Associação para o Planeamento Familiar dará consultas de sexologia e de planeamento, entre outras iniciativas.