Quando escreveu "Deixem falar as pedras", em 2011, David Machado dificilmente preveria que alguns dos temas que aborda neste romance tivessem tamanha reverberação nos tempos atuais. Abordando memória e legado histórico — familiar e não só —, o livro explora a forma como nos relacionamos com a informação que nos transmitem: o que permitimos receber, o que rejeitamos, o que optamos por acreditar por razões sentimentais ou porque nos dá jeito.
Estas são questões intemporais, é certo, mas que se revestem de pertinência numa era de bipolarização, de câmaras de eco formadas nas redes sociais, de surdez seletiva e cegueira ideológica.
"Diria que estamos numa situação que era difícil de prever há 20 anos, que se faz de uma mistura de ingredientes. Por um lado, um ressurgimento de ideias que durante tantas décadas foram tão aberrantes para nós. Ao mesmo tempo, uma proliferação de notícias falsas numa época, lá está, em que seria fácil acreditar que elas não existiriam", conta ao SAPO24 nesta entrevista no âmbito do ciclo "O 25 de Abril (também) foi uma ficção".
"Deixem falar as pedras", aborda a vida de um homem, já nos seus 70 anos, que atravessou o Estado Novo, o 25 de Abril e o atual período contemporâneo da democracia. E nessa passagem sofreu várias peripécias e injustiças e dificuldades que ele conta ao neto. O cerne dessa história é exatamente o facto do neto querer ser quase como que um guardador dessas memórias e de querer mantê-las vivas e de confrontar alguns dos seus protagonistas no tempo atual — se são totalmente verdadeiras ou não, é algo que o leitor terá de confirmar. Tal como muita da informação que nos chega diariamente.
Uma das razões que despertou o interesse em contar esta história foi teres lido algo desse período — estamos a falar dos anos 30, 40 — e depois teres confrontado essa versão com outra, sendo que as duas não batiam certo. Podes explicar um pouco as motivações para escrever este romance?
Isso é algo que acontece muito mais vezes do que achamos e às vezes não nos apercebemos. Ou seja, a nossa memória é muito falível e não temos a noção de que as histórias que chegam até nós e que nos são contadas — e mesmo as que vivemos e das quais nos lembramos — muitas vezes não coincidem com outras histórias sobre o mesmo acontecimento. Às vezes não coincidem com a própria realidade, são uma versão da realidade. No limite, podem até ser uma mentira, são uma ficção.
O meu avô e o meu bisavô eram transmontanos e viveram na raia do Minho com Trás-os-Montes, mas sobretudo junto à fronteira com a Galiza. Lembro-me de me contarem histórias sobre o tempo em que os anti-franquistas saltavam a fronteira para virem para Trás-os-Montes e para o Minho para se refugiarem. Quando era miúdo, ouvia essas histórias e aquilo empolgava-me bastante, porque basicamente eram histórias de perseguições, de assaltos, de tiroteios. Eles eram fora da lei, mas, no entanto, a maior parte era muito bem recebida em Portugal pelos habitantes. Eu lembro-me até hoje de vários desses episódios, nomeadamente de um assalto a uma camioneta que é famoso naquela região, etc.
Um dia, eu descobri um livro que se chama precisamente "Guerrilheiros Anti-Franquistas em Trás-os-Montes" e lembrei-me de todas essas histórias. Comprei-o e encontrei nele muitas das histórias que o meu avô me contava e muitas versões diferentes dessas histórias. Em algumas delas, por exemplo, ele dizia que o meu bisavô tinha estado naquele local e que tinha assistido a tudo e era, digamos, uma versão em primeira mão. No entanto, mesmo assim, a versão que estava nesse livro, que foi investigada e estudada pelo autor, não coincidia com aquela versão. Isso levou-me a esta questão da memória, que é algo que me interessa muito ainda hoje.
Em que sentido?
Essa distância entre a realidade e a nossa percepção da realidade é uma coisa que me interessa, porque antes de falarmos da memória, ou seja, antes de irmos à distância temporal entre o acontecimento e aquilo que recordamos dele, podemos ir àquilo que está a suceder neste preciso momento e é possível haver várias versões desse mesmo acontecimento. Podemos ver aqueles programas de comentário de futebol ao domingo à noite e temos três comentadores a olhar para o mesmo jogo, para o mesmo lance e, no entanto, eles têm opiniões muito contraditórias, que chocam entre si, sobre algo que eles estão a ver. Por isso, se pegarmos nesta ideia e a arrastarmos no tempo, como é que nos vamos lembrar desse lance futebolístico amanhã, ou daqui a um ano, ou daqui a trinta anos?
A nossa perceção daquilo que aconteceu será radicalmente diferente da perceção de outras pessoas. Isso, lá está, tem coisas boas e coisas más, porque ainda bem que temos a capacidade de nos esquecermos, de reinventarmos a realidade, porque só assim conseguimos lidar com questões muito traumáticas como a morte, a perda, etc... E também é por causa disso que conseguimos abstrair-nos daquilo que é concreto, do que vemos, e conseguimos imaginar outros cenários e a partir daí resolvemos uma série de problemas muito práticos que a humanidade tem.
Por isso, o esquecimento não é necessariamente uma coisa má. No entanto, é verdade que coloca-nos numa situação muito frágil e isso é talvez aquilo que mais me interessa. Aliás, acho que interessa muito à maior parte dos romancistas, que é a fragilidade do ser humano. As falhas que nos colocam em situações tão complicadas e diante de dilemas tão difíceis de resolver. Então é esta ideia de que aquilo que nos lembramos poder não ser aquilo que realmente aconteceu, e temos de construir a nossa vida e a nossa perceção do mundo a partir daí.
“Deixem falar as pedras” recorre a um mecanismo narrativo em que é o neto a contar não a história do avô, mas a história que ouviu o avô contar. Tendo esta particularidade em conta, que tipo de reflexões procuraste fazer quanto à noção de memória histórica?
Pegando naquilo que estava a dizer, a memória já é uma coisa bastante falível, mais ainda quando é a memória de uma memória. Ou seja, quando temos a transmissão de recordações de geração para geração. E neste caso, eu li bastante sobre o Estado Novo e depois sobre o 25 de Abril, etc. Mas eu próprio decidi só escrever o livro algum tempo depois, quis distanciar-me o suficiente dessas leituras para que esses factos sobre os quais aprendi estivessem presentes na minha cabeça de uma forma bastante geral, no sentido em que me permitiam contextualizar a vida destas personagens, já não tendo, no entanto, tão presente os factos concretos, como datas, nomes, locais, a dinâmica dos acontecimentos.
No fundo é ter uma memória desses factos, não é? Não é ter os factos presentes, é ter uma memória deles, portanto, é quase um exercício sobre a ideia da lembrança.
Sim, quando estava a escrever o livro, não estava de todo preocupado em ser muito correto com os factos, porque queria precisamente que alguns deles acabassem por sair errados. Não faço ideia se há factos errados ou não, mas não me preocupo de todo com isso, porque um romance nunca será um documento histórico. No entanto, é precisamente essa voz do Valdemar, que é um rapaz com 14 ou 15 anos que só ouviu essas histórias do avô, — nunca viveu essas histórias nem conhece outras versões. Portanto, a personagem só se torna mais verdadeira se ele se enganar a contar a história. E se se enganar, isso vai ao encontro do meu propósito para este romance, refletir sobre a falibilidade da memória.
Quanto à ideia da falsidade dos factos, um aspecto tão trágico quanto o cómico da narrativa é que, segundo o relato do neto, o seu avô não só se viu atirado para um poço sem fundo de mal-entendidos e peripécias, como essa sucessão de acontecimentos criou uma imagem sua mítica mas irreal. O que é isso nos diz quanto à forma como olhamos para a história e para as figuras que cristalizamos?
Acho que estamos cheios de exemplos à nossa volta, nem sequer é preciso ir aos políticos ou à televisão. Nas nossas famílias, nos nossos grupos de amigos, quando se discute política ou factos históricos, há sempre um certo grau de desentendimento, seja maior ou menor. Nós não estamos de acordo em relação àquilo que aconteceu, ou pelo menos não estamos completamente de acordo. Por exemplo, o meu avô, que me contou essas histórias, parecia sempre bastante dividido quando falava do Estado Novo, porque percebia perfeitamente que a liberdade proporcionada pelo 25 de Abril era de facto uma coisa muito valiosa, mas em vários momentos apanhámo-lo a dizer que no tempo do Salazar determinada coisa era melhor do que agora.
O ser humano precisa disso, de... (pausa) De definir certas questões e de resolvê-las na sua cabeça. Algumas são tão grandes, tão abrangentes, tão complexas, que precisamos de resumir aquilo tudo a uma frase que nos acalma, porque se não, a vida e o mundo como eles são na realidade tornam-se demasiado avassaladores. Por isso é muito fácil dizer que "no tempo do Salazar é que era bom". Enfim, nesse tempo havia coisas que funcionavam, o país não estava todo a arder, e portanto é possível só olhar para essas coisas que funcionavam e dizer algo assim. Isso resolve muita coisa dentro de nós, sossega-nos muito. Nós fazemo-lo constantemente, com pessoas, com lugares, com épocas da nossa vida, ou seja, tentamos resumi-las, condensá-las ao máximo e recordar isso de uma forma muito concisa e muito definida, porque nos acalma.
Essa ideia é interessante porque o livro foi lançado em 2011, mas essa questão de simplificar narrativas surge agora quando encaramos fenómenos como câmaras de eco nas redes sociais, factos alternativos, irmos procurar informação que valida as nossas crenças. Na véspera dos 50 anos de 25 de Abril, este tema tem mais pertinência que nunca?
Sinto que vai continuar a ter sempre pertinência, porque isto tem tudo a ver com esta questão da memória, e a memória dos seres humanos não vai mudar. Aliás, é interessante porque nos últimos 20 anos, por causa da internet e da digitalização, surgiu esta ideia de que tudo será preservado, que podemos registar tudo e que tudo está registado. E, efetivamente, a quantidade de registos é muito maior do que era há 50 ou 100 anos. Ainda assim, eu creio que dá para perceber que isso não mudou muita coisa na forma como lidamos com o mundo. Hoje em dia, está realmente quase tudo filmado, porque cada um de nós tem uma câmera no bolso e, no entanto, é muito difícil convencer alguém através dessas filmagens. As pessoas não acreditam, porque os seres humanos precisam desta coisa de acreditarem em algo e sentirem que isso valida tudo aquilo que eles são. É daquelas coisas que eu acredito que nunca nos vamos livrar — temos de aprender a lidar com isto e com o facto de que não somos iguais, de que não temos as mesmas opiniões e de que essas diferenças são importantes também.
Outro aspeto muito interessante é que Valdemar vive obcecado com uma ideia de justiça, de vingar — já que não pode corrigir — os males que fizeram ao seu avô. Foi uma forma de explorares esta ideia de trauma entre gerações? E o que é que isso nos diz sobre o Portugal atual?
Com a personagem do Valdemar, queria muito explorar a cabeça de um adolescente que está zangado, basicamente. Não me lembro de estar zangado como ele quando tinha a sua idade, mas penso que é normal os adolescentes, aos 14, 15, 16, 17 anos, terem uma espécie de revolta contra o mundo. Porque queremos uma liberdade que o mundo às vezes não nos permite e queremos expressar-nos de uma forma que não só o mundo nos impede, como nós também nos impedimos. Nós próprios às vezes também não percebemos bem o que temos para dizer, mas sabemos que temos alguma coisa. Enfim, por várias razões, julgo que é normal essa revolta e essa zanga.
Ao mesmo tempo, acho que o Valdemar, de forma inconsciente, também aproveita toda essa carga das histórias que o avô lhe conta e isso provoca nele esse sentimento, esse desejo, essa urgência de fazer justiça. Mas não sei se isso tem algum paralelismo com aquilo que vejo hoje, porque não é tanto uma urgência de justiça em relação àquilo que se passou há 50 anos, é mais uma urgência de justiça em relação àquilo que se está a passar agora e é um aproveitamento, lá está, de determinadas ideias antigas para justificá-lo. Na verdade, não sei o que é que outros ficcionistas pensam sobre tudo isto, nem sei se pensam realmente sobre tudo isto, eu imagino que sim, mas diria que estamos numa situação que era difícil de prever há 20 anos, que se faz de uma mistura de ingredientes. Por um lado, um ressurgimento de ideias que durante tantas décadas foram tão aberrantes para nós. Ao mesmo tempo, uma proliferação de notícias falsas numa época, lá está, em que seria fácil acreditar que elas não existiriam. A informação está tão disseminada, todos temos o olhar sobre tudo podemos ver tudo o que se está a passar…
É-se obrigado constantemente a separar o trigo do joio.
Estando a viver este momento, percebe-se perfeitamente porque é que tudo isto está a acontecer, mas era muito difícil de prevê-lo. E por isso é que acho que o "Deixem falar as pedras"... não é que esteja desatualizado, porque que as questões que tentei abordar nesse livro continuam atuais, mas não sei se é um livro que prevê ou que tem paralelismo com aquilo que nós estamos a viver neste momento, que é tão inesperado.
Mas parece haver um paralelismo relacionado com essa ideia dos ressentimentos do passado que alimentam ou justificam ações no presente. Quando olhamos para as narrativas sobre o 25 de Abril, vamos desde a ideia de que a revolução não acabou com os resquícios do Estado Novo até à ideia de que permitiu a espoliação de pessoas que não o mereciam. Há esta noção de que vamos beber a um ideário para justificar determinadas atitudes que temos, ideológicas ou políticas. Não é que o Valdemar seja propriamente politizado, mas ele pensa sobre aqueles tempos de uma maneira que outro adolescente não pensaria se não tivesse recebido esse manancial de informação do avô, não é?
Mas aí também não é que o livro tenha paralelismo com a nossa época, tem é o efeito contrário. Ou seja, acho que hoje em dia as novas gerações estão demasiado desligadas daquela época e da política em geral. As histórias que o Valdemar ouviu do avô se calhar foram demasiado duras e um pouco traumáticas para um rapaz tão novo. Mas, ao mesmo tempo, sinto que é muito importante ele ter essa noção daquilo que aconteceu. Aí sim, lamento que os miúdos hoje em dia não tenham tão presente aquilo que foi o Estado Novo, mas essa é a evolução normal da vida — da mesma forma que também já não temos presente o que é viver em monarquia. Se agora, de repente, viesse um grupo falar sobre isso, se calhar até prestaríamos atenção, porque já não sentimos esse trauma enquanto sociedade, não sentimos qualquer tipo de ferida que a monarquia possa ter provocado no país. Por isso, de certa forma, ainda bem que os miúdos vivem a sua vida sem pensar nas questões da luta e da repressão, sem pensar na liberdade. Mas isso coloca-nos nesta situação em que se alguém lhes apontar essas soluções do Estado Novo como forma de resolver problemas atuais, problemas que são muito concretos na vida de algumas pessoas, imagino que sejam ideias que brilham no escuro e que fazem as pessoas irem atrás delas.
Uma personagem que é muito interessante, especialmente a maneira como é apresentada no início, é o pai de Valdemar, que parece interessar-se por história antiga, mas depois quer saber pouco da história recente do seu pai, da história da ditadura e da perseguição. O que é que isto nos diz da forma como a geração nascida exatamente a seguir ao 25 de Abril encarou o legado da revolução? Porque parece passar também um pouco uma ideia de uma certa amnésia para sarar feridas.
Na verdade eu até tentei ir mais longe. Ele interessa-se por uma história mais antiga, dos egípcios, dos romanos, etc..., mas fá-lo uma forma muito...
Académica? Desapegada?
Acho que até é menos do que académica, é só de uma forma popular, fetichizada.
Como um hobby?
Sim, um hobby. Ele fica entusiasmado com os objetos, é quase como se fosse um culto a uma celebridade. Não é que a personagem, se eu fosse pensar nela, pudesse ter uma camada mais profunda do que essa. Mas a forma como quis apresentá-la, foi precisamente alguém que não está a usar a história, ou o seu conhecimento, para refletir sobre o presente e sobre o futuro, para refletir sobre a sua relação com o seu pai e com o seu filho, por exemplo.
Penso que isso acontece muito nos nossos dias, em que ficamos muito deslumbrados com determinadas coisas que demonstram riqueza ou estatuto de classe. Muito interessados na nossa imagem, nos adereços e não naquilo que significam. Uma vez mais, isto em teoria poderia ser uma coisa boa — enquanto civilização, chegámos a um ponto tão favorável económica, social e politicamente que podemos dar-nos ao luxo de apreciar esses adereços. Mas, na minha opinião, isso é bastante negativo na prática, porque a História com H grande ainda não chegou ao fim nem parou de acontecer. Ainda há muito futuro para viver e é muito perigoso dar por garantidos conceitos como a liberdade ou a democracia.
Uma provocação. Outra das marcas deste romance é que Valdemar se autocensura — nas passagens em que descreve a sua vida, há frases rasuradas a negro — mas nunca o faz com a história do avô. No pós-25 de Abril, a autocensura também é uma forma de liberdade?
(Pausa) Isso é uma boa pergunta... (nova pausa)
Faço-a porque, no fundo, ele quer controlar a sua própria narrativa, não é?
Claro, mas nós estamos sempre a autocensurar-nos. Os seres humanos nunca dizem tudo aquilo que pensam e nunca fazem tudo aquilo que querem fazer. E muitas vezes até escondem coisas de si mesmos. Voltando à questão da nossa memória, é verdade que ela tem muitas falhas e que nos esquecemos de muita coisa que aconteceu, mas também há muita coisa a qual escolhemos esquecer — não de uma forma totalmente consciente, mas por vezes decidimos não pensar em determinadas situações ou pessoas. Aos poucos esse esquecimento vai acontecendo.
Esse jogo do Valdemar apagar algumas das suas frases, de pintar por cima de algumas delas, isso, para mim, na altura, teve vários significados. Um deles é, obviamente, essa relação com a censura do Estado Novo. Mas também com esta questão de nos autocensurarmos e também com o próprio trabalho do romancista. Qualquer escritor, quando está a trabalhar num texto, a certa altura começa a apagar coisas que escreveu ou decide esconder determinadas palavras ou frases, porque não são coisas que queira dizer explicitamente. São para ficar subentendidas ou são mesmo para não estar no texto. Ou então é porque não fazem falta ao texto, vão arrastá-lo em demasia, vão atrapalhar a leitura. Essa censura, ao contrário da outra, é uma coisa bastante saudável.
Tendo nascido em 1978, és um filho de Abril que nasceu e cresceu numa fase de normalização democrática. Este livro foi também uma forma de te aproximares desse período do 25 de Abril?
Não me lembro se na altura o meu propósito foi conscientemente aproximar-me desse período, mas após ter lido tanto e de ter escrito o livro, claramente fiquei numa relação de maior proximidade com essa época, de uma forma muito mais presente e muito mais viva. Eu acredito que nada disto precisa de ter conclusões muito grandiosas e muito emocionais. O simples facto de eu ter essas histórias e ideias do Estado Novo na cabeça fez-me compreender melhor as coisas que o meu pai dizia — e ele era bastante novo quando aconteceu o 25 de Abril, portanto foi uma enorme celebração para ele —, mas também o que o meu avô dizia quando, lá está, de vez em quando lhe escapava que no tempo do Salazar havia determinada situação que era melhor. Tudo isso ajuda-me a compreender melhor quem somos agora, enquanto povo, enquanto cidadãos portugueses. E ajuda-me a estar mais preparado para entender o presente e discutir ideias para o futuro.
E que povo somos?
Eu tenho esta ideia de que não somos muito diferentes daquilo que éramos há 50 anos. Acho que somos um povo bastante resiliente — eu sei que esta palavra é sobreusada, mas é algo que nos define bastante bem. Os portugueses, penso eu, têm uma coisa que é bastante interessante e parece quase contraditória. Temos esta espécie de aura de insatisfação, de quase infelicidade pelas coisas não nos correrem bem...
Uma certa resignação?
Sim, mas que ao mesmo tempo aceitamos com... não é satisfação, é mais tranquilidade. Aceitamos que as coisas sejam assim e acredito que é por causa disso que nos últimos 50 anos não tivemos conflitos internos muito graves, é por isso demorámos algum tempo a ceder a estas ideias da extrema-direita, é por isso que não temos grandes revoltas contra o governo, como se vê às vezes em manifestações enormes em Espanha ou em Itália. Aceitamos as coisas, o que aparentemente seria uma coisa má, mas também é boa, porque somos tranquilos — ao mesmo tempo, também não sei se isso não acontece por causa de 50 anos de ditadura em que as pessoas foram obrigadas a aceitar a vida que lhes davam. Não sei, mas gosto desta faceta.
Quanto aos 50 anos do 25 de Abril, que frase é que gostarias de deixar?
Eu gostava que esta ideia de celebrar os 50 anos do 25 de Abril não fosse apenas porque passou tanto tempo. Esquecemos do que aconteceu, ao ponto disto se tornar apenas numa festa que celebramos todos os anos sem realmente compreendermos aquilo que ela significa.
Comentários