Hugo Gonçalves tem pensado muito no 25 de Abril. Não só porque foi a matéria-prima de "Revolução" — o seu romance de 2023, publicado pela Companhia das Letras —, mas porque também é o que inspirou a sua estreia no teatro. Concebida com as cantoras Bárbara Tinoco e Carolina Deslandes, a peça "A Madrugada que eu Esperava" mantém-se em cena no Teatro Maria Matos, em Lisboa, até 28 de abril — antes de uma data dupla no Coliseu do Porto em maio.
Mas não é apenas por ser fonte de inspiração que a Revolução dos Cravos permanece na cabeça do escritor, jornalista e guionista. É que o próprio reconhece que dificilmente faria o que faz sem que os ventos da liberdade tivessem soprado após esse fatídico dia. "Tenho uma dívida muito grande de gratidão para com as pessoas que fizeram o 25 de Abril, não seria escritor e muito menos escreveria este livro se não vivêssemos em liberdade", conta em entrevista ao SAPO24, no arranque do ciclo "o 25 de Abril (também) foi uma ficção".
Em "Revolução", Hugo Gonçalves aborda a história de uma família cujos membros estiveram em diferentes lados da contenda durante o 25 de Abril e o PREC — motivo mais do que pertinente para uma conversa sobre memória histórica e da necessidade de preservá-la.
"Revolução" aborda a história de uma família cujos membros estiveram em diferentes lados da contenda durante o 25 de Abril e o PREC. Quão importante foi registar essa pluralidade de experiências para este livro?
Antes de mais, quis escrever uma história sobre uma família. A saga familiar é um clássico da literatura, eu não inventei nada, até porque a família é a unidade, o microcosmos, senão mesmo o cosmos, que melhor define quem nós somos desde a nascença — os nossos traumas, o nosso caráter — e que nos acompanha pela vida fora. E, de certa maneira, a família é também uma metáfora para aquilo que estava a acontecer ao país. Ou seja, [em "Revolução] acompanhamos as dores de crescimento de uma família, já que estas passam por diversas fases, especialmente na relação entre os irmãos e os pais.
Ao mesmo tempo, Portugal estava a passar também por um período único, poucas vezes repetível na história de um país, porque vinha de uma ditadura muito longa — julgo que a mais longa da Europa, de 48 anos — e de uma guerra muito traumática — como são todas, obviamente, mas que durava há 13 anos. O país tinha também passado ao lado dos movimentos de emancipação e de libertação de outros países — como foram os "Swinging Sixties" no Reino Unido, o "Summer of Love", nos Estados Unidos, o movimento dos direitos civis...
O Maio de 68...
Claro, sabia que me estava a faltar um! Ou seja, Portugal estava atrasado em relação a tudo e o país, de repente, vê-se a braços com a possibilidade não só da liberdade, mas da necessidade de construir um novo regime, um novo modelo de sociedade. E isso implica dores de crescimento tremendas, porque não se passa de um país pobre e miserável — e isto não é simplesmente no que toca à ideia de "uma sardinha para oito pessoas" ou de um terço das mulheres serem analfabetas, mas de uma miséria existencial. Ou seja, a ditadura tinha vergado o espírito dos portugueses a uma resignação, com "o conforto pobrezinho do meu lar", como diz a canção. E então, tudo isto misturado — um caldeirão de agravos, de ressentimentos, de falta de liberdade e também de desejo de liberdade —, transforma esse período pós-25 de Abril. Atenção que eu aqui não estou a falar da revolução que acaba com uma ditadura e com uma guerra, estou a falar do período de transformação, o chamado PREC, por assim dizer.
Isso refletiu-se nas famílias, numa família com a Storm, com pessoas de lados opostos da barricada. É um retrato daquele tempo. E eu, com o luxo da distância, porque não vivi esse tempo, quis olhar para os desafios e as dores de crescimento pelos quais essas pessoas passaram. Interessava-me muito isso, do ponto de vista da criação das personagens e da experiência humana.
Desde Frederico que se vê no epicentro do 25 de Abril após uma saída à noite frustrada, até Pureza, que é mandada parar por revolucionários a caminho do hospital, apesar de estar a enfrentar uma emergência na sua gravidez, há uma ideia que se pode tirar de "Revolução": a de que somos vítimas das circunstâncias que nos rodeiam, de que grandes momentos históricos acontecem indiferentemente aos nossos problemas pessoais. Concordas?
Sim, aliás, a determinada altura, a Pureza, já mais perto do fim do livro, tem uma espécie de epifania em que percebe que "o que foi não volta a ser". Essa ideia de que, por mais que ela quisesse agarrar-se à sua noção de paz e de ordem, uma ideia de um país e de uma sociedade antes do 25 de Abril, isso já não existia. Todos nós temos muito a tendência para achar que, em determinadas alturas, somos o centro do universo — mesmo que saibamos que não. Desde Copérnico que sabemos que não somos o centro do universo, nem nós, nem este planeta (risos), mas a mente deste mamífero homo sapiens está construída para isso. O que aconteceu naquela altura, e não podia ser de outra maneira, até pelas circunstâncias que expliquei, é que não só foi um tempo de tremendas convicções, que roçavam o fanatismo para muita gente, como também de uma total incerteza. Isto era um contraste tremendo, porque ninguém sabia o que ia acontecer. Naquele ano de 75, principalmente. Nem as pessoas que estavam no Conselho da Revolução e no COPCON! Isto é dito pelas próprias, as pessoas acordavam a meio da noite para ir ouvir as notícias na rádio, na perspetiva de saber se já tinha mudado alguma coisa. Apesar desta paixão, às vezes monolítica, uma paixão ideológica, ninguém sabia.
Eu achei isso muito interessante, porque revela realmente aquilo que tu afirmaste — nós não temos controlo praticamente nenhum em relação às nossas vidas, não é? Desde as pessoas que foram parar a gulags na União Soviética às pessoas que, por um dia, não saíram da Alemanha Nazi a tempo, mas o seu vizinho judeu apanhou o comboio um dia antes e conseguiu sair a tempo, chegou a Lisboa e apanhou o barco para o Rio de Janeiro e formou lá a família... Por isso é que é risível quando às vezes ouço pessoas, à distância [do tempo], no chamado "ganhar o Euromilhões à segunda-feira", dizerem "o PREC devia ter sido isto" e "cometeu-se este erro" e "houve estes excessos". O que depreendi de todas as pessoas com quem falei e da investigação que fiz é que era muito difícil ter sido doutra maneira. Ou seja, como as peças estavam lançadas no tabuleiro, pedir sensatez, parcimónia, contenção, maturidade àquele país e àquelas pessoas é não conhecer a natureza humana. Isto sem prejuízo de que, de facto, se cometeram muitas injustiças. Houve pessoas que foram designadas como fascistas e foram parar à prisão e não o eram. Houve movimentos criminosos, como foi o ELP, da extrema direita, ou depois mais tarde, as FP-25, de extrema esquerda. Eu não estou de todo a tentar branquear o comportamento dessas pessoas, mas é como diz no livro, a determinada altura, uma personagem que é o Ricardo Walker, que as ideologias são como os cortes de cabelo, mudam com o tempo, são modas, e o que interessa é o caráter. A parte mais importante que ficou, se formos analisar o lado positivo da turbulência, foi as pessoas, através do seu caráter, conseguirem levar Portugal a uma democracia parlamentar ao jeito ocidental europeu, que ainda somos hoje, com uma Constituição e umas eleições livres, as primeiras de sempre, que levaram às urnas 91% dos portugueses — e onde mostraram, pela sua intenção de voto, que queriam uma democracia parlamentar ao jeito europeu e não embarcaram em novas epopeias extremistas, como queria a extrema-direita e a extrema-esquerda.
Recorrendo ao mesmo Ricardo Walker, essa personagem às tantas profere no livro que "o jornalismo é uma forma de ver e relatar, não se resume a escrever os factos com a gramática certa. "Há lugar para trastes como eu, com queda para contar o que escapa aos outros”. “Revolução” coloca os seus personagens a reagir a pessoas reais e a interagir em acontecimentos reais — essa escolha foi uma forma de recontar o 25 de abril sem ceder a maniqueísmos? Ou, como referiste numa entrevista recente, sem “fazer ativismo”?
Quando estou a escrever um livro, não encaro aquilo que o leitor vai sentir ou pensar. Não estou a tentar moldar a cabeça de ninguém, não estou a fazer propaganda política. Enquanto cidadão, tenho as minhas convicções e terei minha acção cívica. Mas enquanto escritor... Ainda noutro dia ouvi um excerto de uma entrevista do Philip Roth a dizer isso, que na génese dos escritores está o facto de não sermos limitados pelos constrangimentos e as convenções que temos enquanto pessoas; no meu caso enquanto pai, enquanto marido, enquanto irmão, a menos que fosse um psicopata. Enquanto escritor, eu estou liberto disso. Ou seja, estou sempre do lado de contar uma boa história e com a preocupação de construir personagens que não sejam unidimensionais, que não sejam só boas ou más, porque normalmente ninguém é.
Mas eu para este livro tinha o trabalho facilitado, porque esta é uma época dramaturgicamente muito interessante, havia muito em jogo, estavam sempre a acontecer coisas e havia muito conflito — isso é um manancial para quem está a escrever um romance. Ignorá-lo seria desaproveitar eventos reais — e houve centenas que deixei de fora. Ou seja, eu utilizei aqueles que achei que aproveitavam às minhas personagens e à minha história. Mas desde o dia das primeiras eleições, o 11 de Março — com o seu aspeto não apenas dramático, mas também cómico —, o 25 de Novembro, a manifestação da Maioria Silenciosa. Todos esses — e até muitos outros que nem sequer fazem parte do radar da memória coletiva e foram sendo esquecidos — foram eventos com uma força dramática tal que fazia sentido que as minhas personagens fizessem parte deles. Estou-me a lembrar, por exemplo, de um comício que houve da extrema-esquerda à frente do Parlamento, em que, pela primeira e última vez, felizmente, os militares apareceram fardados numa manifestação e com carros militares — o que representa uma ameaça a uma democracia. Fazia sentido que a Maria Luísa estivesse nessa manifestação, porque ela fazia parte das Brigadas Revolucionárias. Depois de estudar e de fazer a pesquisa, sabia que eventos desses é que ia utilizar em cada uma das minhas personagens.
E há casos mais tangentes não é? Por exemplo, quando o romance faz um recuo temporal, está a haver uma festa numa herdade no Alentejo enquanto acontece a tentativa de golpe de Beja de 1961. Aí parece também demonstrar como as diferentes personagens — e, por isso mesmo, as diferentes classes sociais — viveram esse período.
Eu faço essa justaposição porque é algo muito verdadeiro, porque era isso, de facto, que acontecia e ainda acontece, de certa maneira, em todo o mundo. Por exemplo, havia aquelas festas muito conhecidas nos anos 60 da Quinta do Patinho, vinham cá as figuras do jet set internacional e, não muito distante dali, até mesmo no interior do concelho de Lisboa, havia pessoas que viviam na mais absoluta miséria. Quando morei no Brasil, conheci um senhor já bastante mais velho que emigrou exactamente nos anos 60 e que me disse que a primeira vez que usou sapatos foi quando entrou no navio para ir-se embora. Esse país de contrastes foi-me dado de bandeja para retratar. E estamos a falar de grandes eventos, mas eu também servi-me de coisinhas mais pequeninas na história.
Como por exemplo?
Os "memes" da altura, por assim dizer, a chamada a poesia de parede. Havia muitas frases, algumas ficaram no imaginário coletivo. Lisboa estava pejada. Algumas eram muito simples, de propaganda eleitoral, como "Vota PCP", etc. Outras eram mais elaboradas, como "abaixo os telhados, a chuva é do povo", "luta pelo filet mignon", "mortos das valas comuns, ocupai os jazigos de família", etc... Essas frases marcaram o espírito do tempo e eu fui povoando ["Revolução"] com elas. Outra coisa que acontecia muitas vezes é que, mesmo depois da revolução, o país continuava a ter muitos delatores. Então, muitas vezes as pessoas eram acusadas de serem fascistas e pintava-se isso nas paredes de sua casa. Eu utilizei isso, por exemplo, com a família Storm — a dada altura pintam "fascista" no muro da casa de um deles e essa personagem sente-se ultrajada pois não se sente fascista.
Outra história que utilizei para outra das personagens, que é verdadeira e acho muito bonita, li num livro de testemunhos da Leonor Xavier. Essa pessoa disse que, naquela época, como estava tudo muito confuso, ela estacionava sempre mal o carro na rua. Todos os dias levava multas e todos os dias, naquele momento de contestação da autoridade, atirava as multas para o chão. Um dia, em vez de uma multa, tinha uma mensagem do polícia que a multava e que dizia simplesmente isto: "não é assim que vamos construir uma democracia". Esta pequena mensagem teve muito mais efeito do que as multas, porque depois disso nunca mais estacionou mal o carro. Essa história é lindíssima porque, de uma forma muito simples, mostra não só o espírito dos tempos, mas também aquilo que de facto é a democracia, nos mais pequenos gestos.
Essa história não só é verídica como é engraçada. Apesar da tragédia que afeta os diferentes membros da família Storm, há também muito humor em "Revolução". Recorrendo a outra citação, em forma de pergunta: "a comédia é uma forma de chegar à verdade"?
Esse é o Ricardo Walker, mais uma vez. Ele é uma espécie de coro grego do romance (risos) e é, de facto, espero eu, uma das personagens mais engraçadas. Mas eu acho que sim. Aliás, se pensarmos nisso, as ditaduras não gostam de comédia. A Igreja também não. Lembremo-nos, por exemplo, do "Nome da Rosa" [romance de Umberto Eco], que aborda isso mesmo — os livros que faziam rir estavam proibidos naquela abadia.
A comédia pode ser uma forma de subversão, mas também pode ser uma forma de lidar com o luto, com a perda, com as coisas mais difíceis da vida. E revela inteligência e pensamento crítico, o que normalmente é perigoso para os tiranos. Os tiranos não tem sentido de ridículo, não é? Por isso é que o Hitler odiava o retrato que o Charlie Chaplin fez dele [em "O Grande Ditador", de 1940]. Eu gosto muito do riso, adoro stand-up, adoro comédia, adoro escritores que recorrem ao humor, porque acho que esse é um dos recursos da literatura e deve ser usado — há pessoas que acham que não, que a literatura é uma coisa sacrossanta e tem de ser chata. Eu discordo e, como tal, isso faz parte da forma como eu vejo o mundo. Além disso, aquela época, especialmente o PREC, apesar de trágica em alguns momentos, foi muito cómica. Eu fartei-me de rir com imagens de arquivo, com notícias da altura, com coisas absurdas que aconteciam, com os excessos — tudo o que é excessivo depois torna-se quase caricatural.
As ditaduras não gostam de humor, mas não são capazes de criar também o seu espelho? Pessoas que só conseguem ver o 25 de Abril de forma sisuda ou embevecida? Hoje em dia, encaramos a data de forma excessivamente romântica?
Não, o 25 de Abril não. Deve ser visto dessa forma romântica, porque é de facto um momento emocionante, bonito e único por vários motivos. Primeiro, porque é preciso fazer a distinção entre a Revolução do 25 de Abril e o PREC. Muitas pessoas confundem isso e, depois, dizem que "no 25 de Abril andou tudo a gamar", "as pessoas vieram de África com uma mão à frente e outra atrás", etc... Vamos, de uma vez por todas, ser honestos intelectualmente e dizer assim: havia uma ditadura que tinha de acabar, havia uma guerra que tinha de chegar ao fim e houve oficiais e soldados que tiveram a coragem de sair naquela madrugada e acabar com "o estado a que as coisas chegaram", como lhe chamou Salgueiro Maia. A prova de que foi uma festa bonita é que houve muito poucos mortos, ao contrário doutras revoluções — quatro deles por causa da PIDE, que tentou resistir e que matou quatro cidadãos inocentes. Tem toda a mística dos cravos nas G3, os momentos lindos das mulheres que trabalhavam nos escritórios a saírem à rua em Lisboa e darem café com leite e sandes aos soldados. O que se cantava de vitória na rua.
E há outra coisa muito importante que contribui para o romantismo, e bem, do "dia inicial, inteiro e limpo", como lhe chamava a Sophia de Mello Breyner. O povo saiu mesmo à rua. Ou seja, o golpe foi feito por militares, mas a revolução teve uma adesão tremenda das pessoas. Vejam-se as imagens da altura: crianças que não foram à escola, milhares e milhares de pessoas na rua quando, é isto é uma coisa de que não nos podemos esquecer, a revolução não estava garantida. Durante todo o dia, houve a iminência das tropas do regime derrotarem as tropas dos revoltosos. Aliás, uma fragata chegou a estar no Tejo, com as baterias apontadas aos carros de combate dos revoltosos no Terreiro do Paço. Podia ter sido uma carnificina. Mas o povo, rompendo com uma inibição típica do Estado Novo, que era a ocupação do espaço público — porque, fosse pelas delações da PIDE, fosse pelo controlo policial, havia muito poucos ajuntamentos —, saiu em massa para a rua. Portanto, acho que nunca é demais — é bonito e temos o direito de celebrar [o 25 de Abril].
Eu não sou um românico por excelência, considero-me um pragmático, mas acredito que esse dia deve ser celebrado com um certo romantismo, acho que merecemos isso. Agora, depois temos um período muito mais complexo, que deve ser estudado e falado, que é a construção da democracia e que obviamente foi feita a duras penas. Não se transforma um país nas circunstâncias em que eu expliquei a estalar os dedos e vamos ser todos sensatos, equilibrados e moderados. Estilo "trigo limpo, farinha Amparo", temos aqui uma democracia perfeita, modelo de origem, que importámos da Escandinávia. Obviamente que isso era impossível de ser feito. Havia ali uma espécie de ajuste das placas tectónicas e esse período, sim, é mais conturbado e suscetível de interpretações diferentes, dependendo do lado em que se está. Não se pode é dizer que o 25 de Abril resultou na bandalheira e na confusão.
Nasceste em 1976, és um filho de Abril que já nasceu e cresceu com os frutos desse marco. "Revolução" também foi uma forma de entrares em contacto com esse período histórico?
Eu sempre me interessei muito por esse período histórico, desde pequeno, e acho que sempre tive contacto com essas personagens, até as caricaturais: as de extrema-direita, as que vinham da África espoliadas, os "barbudos" da esquerda. Sempre fizeram parte do meu imaginário, porque, aliás como digo no livro, nem a ditadura acabou em 25 de Abril de 1974, nem a liberdade começou exatamente naquele dia. Nós convencionamos datas para entendermos melhor o que se passou, mas a ditadura continuou a existir, por exemplo, nos meus professores da escola primária ou até do ciclo que eram professores do Estado Novo. O fanatismo ou o terrorismo de extrema-direita e extrema-esquerda existiram para além do período revolucionário — o ELP continuou a meter bombas já em 1976, já tinha acabado o PREC; as FP-25, então, foi nos anos 80, estávamos já em plena democracia, ainda que a dar os primeiros passos.
O livro foi uma forma de dialogar, de entender [o 25 de Abril], de um ponto de vista muito pessoal, não apenas como o escritor deste livro. Tenho uma dívida muito grande de gratidão para com as pessoas que fizeram o 25 de Abril, não seria escritor e muito menos escreveria este livro se não vivêssemos em liberdade. A liberdade e a democracia, para muitos de nós, é um bocado como a água e o ar — ninguém pensa no valor de poder beber um copo de água quando abre uma torneira para beber um copo de água porque está lá. Mas a verdade é que a democracia não está sempre lá, nem sequer é como a água ou o ar, é muito menos ubíqua. Se a liberdade demora muitos anos a ganhar, perde-se num ápice — basta abrir um livro de história. Eu achei era importante falar disso, dessa periclitância, dessa fragilidade, dessa luta constante das pessoas, desse equilíbrio que é necessário. Interessou-me enquanto escritor fazer um estudo das personagens que viveram o 25 de Abril.
Voltando um bocadinho atrás, quanto à questão da romantização do 25 de Abril, a determinada altura do livro lê-se que "o direito da liberdade implica o dever da memória", de não esquecermos. Um exemplo engraçado é que, quando aconteceu o 25 de Abril, "Emmanuelle", um best-seller erótico a roçar o softporn, tornou-se no livro mais vendido nos primeiros meses,e as pessoas faziam fila à volta dos cinemas para ir ver o "Último Tango em Paris", tudo pela simples nudez que hoje tomamos por garantida, tal como o erotismo, a pílula anticoncepcional ou o divórcio. Às vezes conto a amigos meus estrangeiros que as mulheres antes do 25 de Abril não podiam sair do país, ter um passaporte, pedir um empréstimo, ter uma empresa e alugar uma casa sem a autorização do pai ou do marido, não podiam ser juízas ou diplomatas, e eles respondem "mas isso foi assim em 1974?". Faz-lhes imensa confusão. Há este lado que as pessoas às vezes tendem a esquecer, mas que era atroz. Como disse há bocado, o atraso existencial era tremendo, não era apenas a pobreza. E o 25 de Abril fez-se também para terminar isso. Isto parece uma redundância, mas fez-se pela liberdade mais simples, a de ser livre, de ser o que eu quiser. E como hoje em dia as pessoas crescem com isso, não percebem que esse é um conceito criado por nós e que rapidamente desaparece se não for cuidado.
O facto de “Revolução” encarar tanto o 25 de Abril quanto o seu pré e o seu pós, de prismas distintos levou a que tipo de reações?
As reações até agora tem sido muito positivas, as pessoas gostam muito do livro e todas as semanas recebo mensagens. Eu não pensei muito nisso, mas sabendo que esse período gera muitas paixões — basta ires às caixas de comentários, que são uma espécie de latrina glamourizada das opiniões e que estas, por estarem numa plataforma, ganham uma espécie de importância de Evangelho —, pensei que ia haver mais gente de ambos os quadrantes em desacordo, mas ainda não. Isso aconteceu-me no "Deus, Pátria, Família", em que, às vezes, em clubes de leitura alguém dizia que não estava de acordo quanto a alguma coisa — aqui ainda não. Também pode ter acontecido que essas pessoas mais radicalizadas se calhar não lêem, ou não lêem este livro. Mas estou à espera — e espero que sim.
Os tempos que vivemos, ainda que longe dos anos retratados no livro, registam níveis de crispação política que há muito não aconteciam. Que tipo de traumas é que ainda nos atormenta, chegados aos 50 anos do 25 de Abril?
Não sei se existem traumas. Quero dizer, existirão, certamente, e alguns são transgeracionais. Há pessoas que nunca viveram no Estado Novo nem viveram o PREC e que têm, aí sim, muitas vezes ideias romantizadas sobre o que era o Estado Novo. A ideia, por exemplo, de que não havia corrupção, que as pessoas eram todas honestas. Não há ditadura sem corrupção! Aliás, o Estado era absolutamente corrupto, não havia era escrutínio, e era corrupto a favor de uns poucos, das famílias que dominavam, por exemplo, a economia portuguesa. Mas a crispação de hoje é um bocadinho diferente da crispação de 1974, porque havia um contexto histórico diferente. Penso que era mais justificável e percebia-se melhor que as pessoas estivessem polarizadas. Hoje, eu acho que há muitos fatores, alguns externos, mas há um fator que tem a ver com espírito do tempo
E que fator é esse?
Tem a ver com a forma como vivemos numa sociedade da informação que é de desinformação também. Nos anos 30, foi a rádio que permitiu a manipulação, a propaganda, o não saber o que é verdade, ser-se facilmente instrumentalizado, hoje é a internet. E temos também o paradoxo da liberdade — daí aquela frase, "prefiro os perigos da liberdade do que o sossego da servidão". Temos a liberdade das pessoas não se quererem informar e de sentirem que lhes é devido uma vida melhor.
Creio que há dois aspetos que contribuem para a polarização. Um deles é o sentimento de injustiça que leva à zanga, ou seja, "eu merecia mais" — e se calhar, em alguns casos sim, porque atingimos um patamar de conforto em que as pessoas não querem voltar para trás. Mas também existe muita dissonância cognitiva, às vezes até uma certa imaturidade das pessoas. Há pouco tempo estava a ler um artigo do Miguel Carvalho sobre um partido e ele dizia que uma das questões entre muitos dos votantes desse partido era quanto às pessoas que sentem que foram injustiçadas pelo sistema, porque não conseguiram um emprego, por exemplo, na função pública. Então justificam isso com a ideia de que "isto está feito para os outros e não para mim". Não estou a dizer que isso não possa acontecer, mas não acho seja a regra geral. Eu percebo essa zanga, mas esta leva a uma atitude um bocadinho infantil e egoísta de que "se não tenho, então ninguém pode ter", a ideia de lançar fogo na tenda.
E qual é o outro aspeto?
O medo — o medo do outro, de ficar sem o que se tem, seja muito ou pouco. A zanga e o medo são matéria combustível perfeita para o algoritmo das redes sociais e hoje em dia a maioria das pessoas passa muitas horas online. Isso, obviamente, afeta a forma como vêem o mundo. Não estou a dizer que nós somos crispados apenas porque existem redes sociais — o problema é muito mais complexo —, mas acho que isso é uma espécie de acelerador de partículas que acelera o medo e a zanga. E, se calhar, devíamos estar todos mais preparados para os momentos em que a democracia atravessa períodos de maior dificuldade, porque a democracia nem sempre está de plena saúde e temos e somos nós que temos de recuperá-la.
Quanto aos 50 anos do 25 de Abril, que frase é que gostarias de deixar?
Primeiro, a brincar, vou dizer uma das frases que estavam escritas na parede naquela altura, que é "se Deus existe, o problema é dele". Agora, uma coisa de que não nos podemos esquecer é que é mais fácil ser fascista numa sociedade livre do que ser livre numa sociedade fascista. E para terminar, não é que me queira citar, e peço desculpa por fazê-lo, mas esta é uma frase que vem no livro e na qual tenho pensado muito, até pelos 50 anos, que é que o direito da liberdade, este direito que nós temos, implica o dever de memória. E não nos esquercemos como era antes.
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