“O Bairro do Aleixo, quem o conheceu e conhece a cidade sabe: nunca pertenceu à cidade, e a cidade nunca o tomou como fazendo parte dela. Era como se fosse uma ilha dentro de um outro espaço. O Bairro do Aleixo pertenceu à sua própria cidade, ao seu sítio, construiu as suas próprias conexões, completamente fora do que o envolvia. Este filme funciona em qualquer lado, toda a gente se pode relacionar com estes acontecimentos”, explica o realizador, André Guiomar, em entrevista à agência Lusa.
A estreia de “A Nossa Terra, O Nosso Altar” dá-se hoje no Cinema Trindade, no Porto, e na Casa do Cinema, em Coimbra, e só acontece tão tarde, quase dois anos depois da estreia mundial, em Bilbao, pelo efeito da pandemia de covid-19, numa primeira fase, e por uma ‘espera’ por salas em Lisboa, onde não surgiu qualquer interesse.
A trabalhar entre Portugal e Moçambique, onde roda a próxima longa-metragem, André Guiomar não deixa de notar como “o documentário português tem muito pouco espaço nas salas de cinema, e, ainda por cima, se passado no Porto”, ainda que a relevância e a forma como a narrativa, e aquela comunidade, ressoam a nível nacional se mantenham.
“Apesar de tudo, a atualidade não se perde nestes temas, infelizmente para as próprias pessoas, para as cidades. O normal decorrer de uma cidade que se vai tornando moderna, cosmopolita, ao mesmo tempo vai perdendo as suas gentes – e quero dizer as classes mais baixas, que são as primeiras a sofrer”, resume o realizador, sobre a chegada mais tardia do filme às salas comerciais.
O documentário tenta “ser mais humanista do que político”, afirma o realizador, que nota como o Aleixo, “hoje em dia, não é repetível, assim como a comunidade”, com a qual manteve o contacto e que vê, longe de estar satisfeita, com problemas de desenraizamento e sociabilidade, “quase todos a pedir mudanças”.
“Aquilo perde-se para sempre e as pessoas têm de reaprender a viver e a sentir que pertencem a um lugar. Pode ter-lhes sido tirado isso. Após oito ou nove anos de suspensão autêntica, parece-me que estas pessoas já não têm grandes alicerces nem forças para quererem pertencer a um local”, lamenta.
“A Nossa Terra, O Nosso Altar” foi rodado em dois diferentes momentos do final da vida do Bairro do Aleixo: no início do processo de demolição das primeiras torres, em 2013, quando os habitantes se uniam em defesa do seu lugar, e no termo do processo, quase sete anos mais tarde.
Como objeto fílmico, “foi o culminar de uma aprendizagem”, atravessando largos anos que consolidam uma forma de filmar, num registo que necessita “da maior privacidade e intimidade possível com as pessoas”, reduzindo a equipa ao indispensável, e do próprio tempo, que muda a realidade e permite estabelecer relações, diálogo e confiança.
A mostra dessa ligação mais forte e prolongada no tempo é “Saturno”, curta-metragem que estreou no festival Curtas Vila do Conde, este mês, aguardando estreia internacional, e que junta uma personagem real do Aleixo, ‘Caveirinha’, e um trabalho de ficção, corporizado na atriz Ana Moreira.
Esta “presença muito forte”, um “pescador muito musculado” com uma vida recheada de episódios trágicos, mostra como se mantém “a relação em aberto com pessoas e comunidades”, além de tentar “trazer à cidade e à comunidade artística do Porto” um pouco do bairro.
Em cima da mesa, e “também a durar mais anos do que o previsto”, também pela crise pandémica, está num novo projeto, “New Chung — A Força de Um Touro”, que Guiomar espera conseguir estrear no próximo ano.
O trabalho debruça-se sobre as forças especiais de Moçambique, com New Chung a apontar a uma pessoa que treina este grupo com técnicas corpo a corpo, na preparação para a guerra no norte daquele país.
“A Nossa Terra, O Nosso Altar”, primeira longa-metragem de André Guiomar, e primeiro filme da produtora, “testemunha as últimas rotinas no quotidiano do bairro social do Aleixo, marcadas pela tensão de um destino forçado”, lê-se na sinopse do filme.
A rodagem do documentário, de perto de 80 minutos de duração, mostra a realidade dos habitantes “obrigados a aceitar o fim da sua comunidade”, face aos anos entre a queda da primeira e a última torre, com vidas em suspenso e uma “lenta desfiguração do seu passado”.
Rodado no bairro estabelecido em 1974, em dois momentos, impôs-se, primeiro, em 2013, como uma resposta “de urgência”, e depois, em 2019, quando os moradores tiveram de abandonar as suas casas, mostrando de forma íntima aquela “comunidade única que ia desaparecer”, como André Guiomar descreveu à Lusa, quando da estreia no festival Porto/Post/Doc, em novembro de 2020.
Até então, aquela urbanização “estava riscada dos mapas dos turistas e tinha uma sombra em volta que levava automaticamente as pessoas a não querer aproximar-se ou cruzar as suas ruas”.
“Eu também tinha esse estigma. Consegui conhecer o bairro, as pessoas, a dinâmica. Percebi que havia uma urgência de memória, uma urgência histórica de como recordar o bairro, de como as pessoas que saem de lá recordavam os seus próprios tempos, e uma certa injustiça social”, explicou então o realizador.
O filme é produzido pela Olhar de Ulisses e pela Cimbalino Filmes, com o apoio da Escola das Artes e do Instituto do Cinema e do Audiovisual, com distribuição da Nitrato Filmes.
Selecionado para festivais como os de Bilbao (onde teve estreia mundial em setembro de 2020), de Kiev, Linea d’Ombra, de Itália, Kitzbuehel, da Áustria, e para os portugueses Porto Post Doc, DocLisboa, Caminhos do Cinema Português, CineEco, “A Nossa Terra, O Nosso Altar” foi distinguido, até agora, com nove prémios, como os de Melhor Longa-Metragem, Melhor Documentário, Melhor Filme e de Melhor Realizador Emergente, em diferentes certames.
Na estreia, será apresentada igualmente uma exposição de fotografia de Luís Costa, sobre o último dia no bairro social do Aleixo, antes da demolição, e o regresso às salas contará com apresentações pelo realizador.
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