Rui Cardoso Martins
Rosa Oliveira
Maria do Rosário Pedreira
Pedro Mexia
João Reis
Ricardo Fonseca Mota
Julieta Monginho
José Gardeazabal
Paulo Faria
Filipa Melo
Ana Bárbara Pedrosa
Patrícia Reis
Cláudia Andrade
Eugénia de Vasconcellos
Pedro Vieira
H. G. Cancela
Ana Margarida de Carvalho

 

É curioso recordar os 200 anos do nascimento de Fiódor Dostoiévski porque me lembro de quando me sentei mesmo ao lado do sofá onde o escritor morreu, em São Petersburgo. Junto do sofá, já agora, estava o samovar em que só ele mexia e em que ferveu o último dos seus chás. 

Já que estamos em efemérides, esta visita foi em 2017, cem anos depois da revolução soviética, num Inverno de -15ºC em São Petersburgo e de -32ºC em Moscovo, onde andei na rua como se caminhasse no fundo do oceano, tal a parede de frio.  

Fui à Rússia, precisamente, por causa da minha admiração pelos escritores russos do séc. XIX e princípios do XX, com destaque para Gógol, Tolstói e Maikóvski. Mas é a Dostoiévski que mais devo. O título do meu primeiro romance é uma frase tirada de um romance seu — "Crime e Castigo" — e, com ele, já tive a alegria de ser editado em russo (tradução de Maria Mazniak). A frase é "E Se Eu Gostasse Muito de Morrer":

O estudante Raskólnikov decidiu que há seres de moral superior que podem fazer tudo o que lhes apetecer na existência, até matar alguém. E deu com uma machadinha numa velha agiota, e também na irmã que apareceu de surpresa, e do apartamento só roubou uma bolsa com dinheiro para disfarçar como assalto o filosófico homicídio. Mas quando, depois de várias confusões, e na febre dos miasmas de Agosto no Báltico, estava quase a salvo da Justiça, um sentimento de culpa cai-lhe em cima, Raskólnikov deita-se num sótão e desata a falar:

“— Ouve, Razumíkhin — começou Raskólnikov com uma calma aparente —, não vês que não quero a tua caridade? Que interesse tens tu em ajudar pessoas que... se estão nas tintas? Pessoas para quem, afinal, é difícil suportar isso? Porque me procuraste e me encontraste no princípio da minha doença? E se eu gostasse muito de morrer? Será que não te fiz entender claramente que estavas a atormentar-me, que eu estava... farto de ti? Que prazer é esse de atormentares as pessoas?1"

Foi esta personagem incrível que alimentou parte do ambiente descompensado, violento, às vezes de falsa ligeireza, mas capaz de fervor poético, em que o jovem narrador Cruzeta vive, tentando perceber um dos maiores mistérios de Portugal: a taxa de suicídio entre os alentejanos. 

A Rússia e o Alentejo são casos complexos, é o que é. E Dostoiévski é como todos os grandes clássicos: está vivo, duzentos anos depois de nascer.

1"Crime e Castigo" (1866) — Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra — Colecção Mil-Folhas, Público

 

“Uma barba imaginária é característica
de muitas caras russas.”

Nabokov

nada nem ninguém
nos preparara para
aquele roçar de ombros
na avenida nevski
a invenção do
ressentimento

Do livro "tardio", Tinta-da-China, 2017

Esta referência directa a Dostoiévski não é a única ligação nos meus textos ao grande escritor russo. De forma mais ou menos velada, Dostoiévski surge intermitentemente no que escrevo: é um dos meus autores de eleição. 

Quando, aos 14 anos, descobri um livrinho já sem capas no escritório gélido do meu avô materno e ali fiquei, isolada do resto da família agarrada àquelas páginas intrigantes, não sabia que estava a ler o mais dostoievskiano dos livros de Dostoiévski. Tratava-se de “A Voz Subterrânea” (traduzido também como “Cadernos do Subterrâneo” ou “Memórias do Subterrâneo”). 

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Mais tarde, li “Crime e Castigo”, “O Jogador”, “Noites Brancas”, “Os Irmãos Karamázov”, “O Eterno Marido” e, felizmente, tenho ainda muitos livros de Dostoiévski à minha espera.

O fascinante nas suas obras é aquele momento decisivo, como uma rajada violenta que abana uma existência banal e provoca um “momento de verdade”. As suas personagens ficam totalmente nuas diante de nós numa transparência absoluta. Dostoiévski dá-nos o retrato do homem comum, o homem sem qualidades, sem epopeia possível, que se vê mergulhado numa situação violenta, porque a realidade que vem nos jornais é violenta. O famoso nihilismo de Dostoiévski é uma visão da grande cidade cada vez mais tentacular sob crises repetidas da revolução industrial que provocam fome e acumulam bairros da lata. É a tragédia da impotência e a revelação de um mundo subterrâneo de recalcamento que Freud nos faria descobrir pouco depois. 

Continuo a preferir o título de “A Voz Subterrânea” e continuo a pensar que é o mais dostoievskiano dos seus romances. Proust dizia que todos os romances de Dostoiévski se podiam chamar “Crime e Castigo”. Eu diria o mesmo de “A Voz Subterrânea”.

 

Embora o meu livro preferido de Dostoiévski seja “Crime e Castigo”, gostaria de sugerir a leitura de um conto do autor russo intitulado “O Crocodilo”, publicado autonomamente e que descobri numa feira do livro na Ericeira e é menos conhecido. Sobretudo porque se trata de uma sátira cheia de humor, coisa bastante rara nos livros do mestre: uma paródia à burguesia que quer à viva força modernizar a velha Rússia, fazendo entrar divisas e alugando terras a estrangeiros. Ivan Matviéitch, o porta-voz destas ideias, é um funcionário público que acaba engolido por um crocodilo numa exposição a que vai com a sua bela mulher. O problema é que o dono do crocodilo, um alemão, não está disposto a matar o animal para pôr o russo cá fora, pois não quer abdicar do rendimento que ele lhe traz… E Ivan dá-lhe razão de dentro da barriga do bicho, tecendo teorias altamente elogiosas sobre a moderna economia europeia…

Uma história divertidíssima sobre a perda de valores humanistas, que tem, curiosamente, muito que ver com as sociedades contemporâneas – em que, por um lado, o dinheiro parece estar acima de tudo e, por outro, há cada vez mais gente a preferir os animais às pessoas…

 

Dostoiévski interessa-me como ficcionista de ideias a alta intensidade. Há muitos e bons ficcionistas de ideias na tradição germânica, entre outras, mas são, quase sempre, escritores frios ou irónicos, elegantes e distantes. Dostoiévski é caótico, arrebatado, e usa o tom patético de uma forma que, incrivelmente, resiste ao nosso cepticismo, ao nosso cinismo, à nossa sobrevalorização do bom-gosto. Essa intensidade, que se manifesta sobretudo em temas que lhe diziam directamente respeito (eslavófilos vs. europeístas, a questão de Deus, o modo funcionário de viver, a adição, os inocentes corrompidos ou incorruptíveis, e assim por diante) faz dele um escritor inesquecível, mesmo quando se pode dizer, como alguns disseram, que «escrevia mal», descuidada ou apressadamente, febrilmente. Gostei de todos os livros de Dostoiévski que li, desde a novela "Noites Brancas", que fica na memória em qualquer idade, mas ainda mais quando lida na adolescência, com aquela atmosfera em suspenso, violentamente casta. E há vários textos curtos que me tocam tanto ou mais do que os longos, embora "Crime e Castigo" dificilmente possa ser superado na demonstração de que a consciência não é uma invenção. Em "Os Possessos" (ou "Os Demónios", noutras traduções), interessa-me aquela investigação da mente radical, assunto hoje de interesse óbvio, e que Dostoievski conhecia de perto, dos seus tempos de proto-revolucionário. Mas, a escolher apenas um livro, teria de ser "Os Irmãos Karamázov". Romance teológico sobre um parricídio, é um livro que usa e abandona com destreza as técnicas do romance policial e judicial, que fragmenta a narrativa em diversos e poderosíssimos estudos de caso, que vai ao fundo do indivíduo sem esquecer as suas circunstâncias sociais, que faz todas as perguntas russas relevantes, e algumas perguntas universais também.

 

Escolher um só livro de Dostoiévski não é tarefa fácil. Na minha adolescência, o meu preferido seria porventura "Os Demónios", mas atualmente tenho como preferido o seu romance "Crime e Castigo". De todas as grandes obras de Dostoiévski, esta parece-me a mais relevante. A história de Raskólnikov proporciona-nos um acesso àquilo que a verdadeira literatura tem como mote: o estudo da essência humana. Raskólnikov tem ideais, sonhos, mudanças de humor, idiossincrasias várias, receios, remorsos. É capaz do melhor e do pior, como um genuíno representante da espécie humana. O psicologismo modernista de Dostoiévski nunca é miserabilista, e, conquanto sério, não deixa de ser divertido. A experiência de leitura é plena de prazer, e a mensagem da obra nunca perderá a validade.

 

“Cadernos da Casa Morta” é o meu livro preferido de Fiódor Dostoiévski. Nele encontramos o húmus do qual nascerão o grande escritor universal e algumas personagens inesquecíveis de, por exemplo, “Crime e Castigo”, “Os Demónios” e “Os Irmãos Karamázov”. «Nas paragens longínquas da Sibéria», o proprietário rural Aleksandr Petróvitch Goriántchikov cumpre pena de prisão pelo assassínio da sua mulher. A Casa Morta encerra um mundo onde estão expostos os limites da nossa humanidade.

Destaco a minúcia dos castigos físicos, a troca de identidades e respectivas penas a troco de dinheiro, a inesquecível encenação da peça de teatro «Kedril, o glutão», o relato do internamento hospitalar – mistura desconfortável de miséria e candura. Sinto que a Casa Morta é o nosso lugar comum, exilado desse outro que, pelos vistos, ainda não merecemos, chamado Liberdade.

 

Escolhi “Crime e Castigo”, pela ligação ao tema da Justiça, que me é tão próximo. A leitura desta obra ficcional é mais proveitosa para um criminologista do que a de um manual sobre a matéria. Centrado num (duplo) homicídio do qual se conhecem as circunstâncias, o autor e a motivação (o inverso do policial clássico), o que prende o leitor é o jogo entre o homicida – Raskólnikov, estudante de Direito – e os acontecimentos que o enredam nas consequências do seu acto, provocados pela interacção com as diversas personagens. Dostoiévski dá-nos acesso ao funcionamento mental do assassino, escalpelizado com a minúcia e a profundidade de um sábio analista. Não por acaso Freud tanto admirava a complexidade do autor, como decorre da sua introdução a "Os Irmãos Karamázov", intitulada "Dostoiévski e o Parricídio".

Teria vinte anos, quando o li pela primeira vez. Acompanhei Raskólnikov como um herói-vilão, no seu percurso de confronto com a culpa. Ansiava avidamente descobrir se a confissão se consumaria. A justiça da punição convivia com uma insensata esperança de absolvição que, paradoxalmente, implicaria o assumir da culpa, à semelhança do processo contrição/absolvição/penitência, próprio da religião cristã, e não à do laico processo judicial: confissão (prova)/condenação/pena. A importância de personagens como a de Svidrigailov (a «pura personificação do vazio», segundo Harold Bloom1), ou Porfírio, o inspector da polícia que tortura Raskólnikov com a incerteza, escaparam a essa primeira leitura. Muitos anos depois, juntam-se à sacrificial Sónia no interesse que me despertam. Entender a consciência do criminoso, dividido entre o desejo de grandeza e o desvio da autoestima, às voltas com o sentimento de culpa (anterior ao acto?), eis o que nos proporciona Dostoiévski, desenhando a traço finíssimo o protagonista, moldado no Macbeth de Shakespeare, mas também no próprio autor (como assinala Bloom).

Este romance, enquanto via de acesso aos processos mentais de um assassino, é especialmente estimulante quando assistimos, estarrecidos, à proliferação de actos individuais e grupais de extrema violência. A literatura, e “Crime e Castigo” em particular, oferece-nos a possibilidade de aceder aos obscuros domínios da natureza humana, com o prazer de quem se envolve numa história que faz sua.

1"Como Ler e Porquê" – Caminho, 2001

 

A Voz de Dostoiévski

Ficção e Desassossego
Um aviso: estas memórias são ficção. Tal como o autor: o autor destas memórias avisa-nos que também ele é ficção. Mesmo assim, "devem existir entre nós seres semelhantes ao autor." É assim, entre a verosimilhança e a estranheza, que Dostoiévski nos prepara para esta sessão de auto-análise avant la lettre, no momento em que o mundo e a Rússia pareciam entrar num caminho de não retorno a que podemos chamar modernidade ou pior. Uma modernidade interior, disso aqui se trata. Dostoiévski pratica em voz alta, a partir do subsolo, um strip-tease da alma desconfortada diante do mundo. "Sou um homem doente...Sou um homem mau. Sou um homem antipático." Este herói subterrâneo diz o que não é para nos aproximar do que é. E depois, "[N]ão sei ao certo o que me dói." Essa dor faz-nos companhia, Dostoiévski apresenta em livro a sua álgebra mental da felicidade, o seu cálculo do desassossego.

Um Canto no Subsolo
Dostoiévski (ou o autor) fala a partir de um canto, de um buraco, de um subterrâneo, do subsolo. "[E]n fiei-me no meu canto; já lá morava há muito tempo, mas agora instalei-me definitivamente." Podia estar num sofá recoberto de um tapete persa, a falar para um especialista. Está num buraco a escrever para nós, leitores, a falar para nós.

Razão ou Coração?
Este homem-autor reconhece que uma consciência demasiado lúcida é uma verdadeira doença. Bastaria "uma fracção igual a metade, uma quarta parte da consciência concedida a ao homem culto do nosso século XIX [...] em São Petersburgo." É um homem acossado no solo pela razão e a ciência, que luta com o dois mais dois são quatro e o dois vezes dois são quatro. Ouvem-se os "gemidos de um homem culto" e este gemer instruído é um choque e uma novidade na literatura do dezanove, "este nosso século tão negativo". É um homem cercado por cima, por um muro interior, cercado pela natureza, pela ciência, pela consciência de si. O pessimismo interior do século XIX, premonição das grandes tragédias ao ar livre do século vinte.

O Grito
Contra o "registo dos interesses humanos", as "fórmulas económico-científicas", os "cérebros estatísticos". Entre os milhões de factos, o peso anunciado que a razão impõe à liberdade, o psicanalisado levanta-se do divã e aponta-nos o dedo. "Riam! Riam, meus senhores, mas respondam!" Mas o cansaço não para a pena. Sim, "Tantas palavras, meu Deus!", mas "Irei até ao fim. Foi por isso mesmo que peguei na pena..." Ao contrário da psicanálise que haveria de vir, a voz não vem de cima e do sonho, vem do subterrâneo. E ecoa. Como nos diz o autor, "isto é quase misticismo, meus senhores1".

1As citações foram retiradas da edição de "A Voz Subterrânea" da &etc

 

Os grandes romances são aqueles cuja narrativa faz brotar em nós uma outra narrativa, uma espécie de negativo da história que o autor nos conta. Este romance alternativo que cada um de nós cria passa a povoar-nos a imaginação com a mesma força do romance que o autor efectivamente escreveu. Digamos que a grande literatura gera em nós possibilidades.

Na véspera de matar a velha penhorista e a pobre Lisaveta Ivanovna, Raskólnikov deita-se ao relento, numa mata, e tem um pesadelo dantesco, no qual, diante de uma turba enlouquecida, um bêbedo espanca uma égua sucessivamente com um chicote, um pau e um pé-de-cabra, até a matar. Nesse pesadelo, Raskólnikov é ainda uma criança e assiste a tudo, horrorizado e cheio de pena do animal. Cada vez que leio “Crime e Castigo” e chego a estas páginas, crio um novo romance. Nesta minha narrativa, quando o pequeno Rodia se volta para o pai e exclama: «Pai, pai, que é que eles fazem? Batem tanto no cavalinho!», o pai não responde como em Dostoiévski: «Vamo-nos embora. Estão bêbedos, ninguém os pode deter.» Em vez disso, o pai enfrenta os bêbedos, com risco da própria vida, e salva o cavalinho. Nesta minha narrativa, algumas páginas mais à frente, Raskólnikov nunca mata a pobre Lisaveta. Por vezes, não chega sequer a matar a penhorista. Dostoiévski nunca poderia ter escrito estes romances que imagino. São os meus esforços para me aproximar de uma história que, sei-o, nunca irei compreender plenamente, cuja superfície me limito a esfolar ao de leve.

 

Depois de anos a preferir “Os Irmãos Karamázov”, um dia li com atenção “O Idiota” e percebi por que dizem ser tão simples e, afinal, o romance mais perfeito de Dostoiévski. Porque nele a descrição gótico-trágica dos ambientes sociais, os diálogos vibrantes, a leitura cirúrgica da psicologia das personagens, tudo serve a magistral invenção de uma personagem. O príncipe Míchkin, cujas limitações, dedicação ao amor e bondade sugerem a verdadeira liberdade moral, é uma criação literária sem igual, um prisma que se redescobre, e brilha, técnica e humanamente, a cada releitura.

 

Não sei se é mesmo por ser o "Crime e Castigo", se é por ter sido a porta da entrada para Dostoiévski, via Gabriel García Márquez. Seja como for, o que é inegável é que, quando dei por mim, já os remorsos do Raskólnikov eram meus. Dostoiévski sabe como poucos entrar nos abismos psicológicos das suas personagens, daí que a tortura moral não nos abandone um segundo. Li-o pela primeira vez à chegada da adolescência e, bem antes de a ter terminado, já tinha lido toda a obra. Com personagens inesquecíveis e paisagens que nos trazem frio às mãos, Dostoiévski põe sempre o leitor no centro do drama alheio.

 

“Os Irmãos Karamázov” é um romance ímpar ao qual volto sem qualquer dificuldade.  Em Dostoiévski, a narrativa é sempre de grande lucidez e acessível, mesmo que tenha um pendor filosófico e psicológico. É um autor que radiografa com facilidade o ser humano na sua dimensão complexa e na qual se encaixa o bem e o mal. Sigmund Freud escreveu, a propósito deste romance, o seguinte: "Na rica personalidade de Dostoiévski poderíamos distinguir quatro facetas: o escritor, o neurótico, o moralista e o pecador". E pergunta: "Mas como é que nos podemos orientar no meio desta desconcertante complexidade?"  O poder do autor está em saber conduzir e envolver o leitor ao ponto de conseguir abarcar tudo, ou quase tudo, perceber que o romance é exemplar da condição humana. Somos todos neuróticos, moralistas e pecadores.

Ao mesmo tempo, este livro é também reflexo da vida atribulada do escritor. Sem esquecer "Crime e Castigo" e "O Jogador", "Os Irmãos Karamázov" surge-me sempre como o expoente máximo de Dostoiévski tanto ao nível da escrita como na agregação de temas que lhe são caros: a doença, a religião, a moral, o bem e o mal, o alcoolismo, a desfaçatez, as regras da sociedade. Muitas das reflexões são de uma grande pertinência e actualidade, comprovando que uma obra-prima resiste ao tempo, às eventuais mudanças da sociedade.

 

Conheço duas versões que se contam sobre a concepção de “Crime e Castigo”: uma, diz que o livro teve início durante os anos de trabalhos forçados na Sibéria; outra, que se originou na intenção de Dostoiévski explorar os males do álcool, sendo que esse propósito se perdeu pelo caminho. Nenhuma delas parece encaixar-se de todo neste livro, fabuloso advento da psicologia criminal. Isto parece-me insinuar, pelo rebuscamento, que talvez ambas as teorias estejam correctas.

Li-o há muito tempo e recordo-o como um romance maravilhoso e terrível, polifónico, seguindo um polifónico herói/vilão que voga num universo depravado e paranóico, mas que a tempos faz o favor de nos oferecer algum alívio cómico. Lembro-me de sopesar o machado e de olhar de esguelha a usurária, de encolher os ombros ao dano colateral que é morte da irmã desta (como evitá-la?), de torcer pelo assassino e de me retorcer de remorso por isso mesmo. Recordo que Sónia vê, por detrás do criminoso, um Pecador (coisa diferente), e por isso o manda deter-se numa encruzilhada e beijar o chão na direcção de cada ponto cardeal, parecendo misturar religiosidade e paganismo nessa imagem e, também, insinuar a Raskólnikov que, fosse qual fosse a direcção que viesse a tomar na encruzilhada, não poderia eximir-se de fazer o mal, sendo humano.

 

Admirável Dostoiévski

Dostoiévski é o escritor da dia gnose, i.e., expõe-nos na nossa mais íntima natureza, e demonstra-a, não apenas através das personagens mas do curso das suas acções, circunstâncias e decorrentes consequências. E diante de um pensamento tão límpido como as suas frases são claras, o maravilhamento é inevitável. São páginas hipnóticas.

E há, para além do enorme talento literário, a inteligência aguda, reflexiva e preditiva — e o humor. É impossível não reconhecermos Dostoiévski nesta remodelagem ideológica da realidade levada a cabo pela intelligentsia radical e os seus wokismos interseccionais de índole totalitarizante, ou como diz o seu personagem Shigalyov «tendo começado com uma liberdade sem precedentes, termino com um despotismo sem limites.» Estas questões de natureza moral e ideológica, de um homem-deus e da sua necessidade de recriação do mundo à medida dos seus valores, atravessam toda a sua obra. É por isso que é um escritor do século XXI.

E ainda há a beleza. A perda iminente. “Noites Brancas” talvez seja dos mais belos contos de Dostoiévski.

 

Glosando o slogan de um conhecido refrigerante à base de cola, a minha relação com a obra de Dostoiévski fez-se na lógica do “primeiro estranha-se, depois entranha-se”. De inicio, li dois livros que ficaram longe de me satisfazer; talvez não nas melhores edições, talvez no momento errado, pois acredito que há momentos certos para determinados livros. Assim, escapei incólume - outra forma de escrever entediado - a "O Jogador" e a "O Idiota". Algo no universo, no tom, na irrisão sobretudo do segundo fizeram com que não tivesse muita vontade de continuar a explorar o universo do autor. Até que comprei "Crime e Castigo". E aí tudo mudou. A complexidade da personagem Raskólnikov terá poucos paralelos no panorama dos grandes livros e autores e ainda penso nela com frequência. O cocktail de sentimentos, a soberba misturada com desespero, a impunidade contaminada de um desejo de morte, tudo isso banaliza outros relatos, outras figuras da literatura. Ou melhor, eleva-se sobre tantas outras. Lá para o fim, a redenção em torno da fé soube-me a soco no estômago e contrariedade. Voltei a maldizer Dostoiévski. Acho que andarei sempre à luta com ele.

 

De Dostoiévski, a haver um livro a destacar, talvez "Humilhados e Ofendidos". É eventualmente uma obra menor, diante de livros como "O Idiota" ou "Os Irmãos Karamázov", mas onde é nítido o movimento narrativo de quem, de olhos abertos, caminha em direcção ao abismo. Esta será uma constante dos trabalhos do autor. A atracção pela ruína, a obstinação de quem faz o que tem de fazer, com a consciência de que  tal será não apenas inútil, mas errado. É uma forma de lucidez que se funda e não se distingue da perturbação.

 

"UM SONHO DO TIO" (das Crónicas de Mordássov)

Escolho este livro do Dostoiévski, que não costuma constar da lista das suas obras-primas, como o óbvio "Crime e Castigo", "O Jogador", "O Idiota" ou "Os Irmãos Karamázov"… É uma comédia extraordinária, hilariante, daqueles que fazem rir para fora, poderia figurar numa colectânea de livros humorísticos: a história do alvoroço causado pela chegada de um príncipe a uma comunidade na província; um príncipe decrépito, com tudo postiço, olho, perna, cabelo, até suíças, e as rugas esticadas com molas, um senhor totalmente senil e inconveniente, que é tomado como melhor partido do mundo pelas alcoviteiras da terra. Uma comédia de costumes, claro, muito sarcástica e satírica, que acentua o ridículo e a absurda vã cobiça das elites medíocres da época. 

Curiosamente, o livro refere-se logo às primeiras páginas – facto que muito me impressionou, lembro-me, na altura em que o li pela primeira vez — a Lisboa. A propósito dos estragos causados pelas intrigas de Mária Aleksándrovna: …« factos tão capitais e escandalosos que, contados na altura certa e atestados como só ela o sabe fazer, provocariam um terramoto lisboeta em Mordássov». Bem sei que é uma alusão trágica, só atesta como, cem anos depois, o terramoto de 1755 foi uma tragédia tão avassaladora cujas réplicas se fizeram sentir do outro lado do mundo e até serviu de metáfora cómica a Dostóievski. É terrível e divertido ao mesmo tempo.  

Curiosamente, é o livro que Nabokov elogiava, ele que se fartava de desdenhar de grandes obras da literatura.

Curiosamente, é um livro cómico e satírico, do autor mais tortuoso, que compunha personagens que agonizavam em dilacerantes dilemas, em estado de esgotamento e levam quase à mesma exaustão o leitor.

Curiosamente, é um livro cómico escrito enquanto Dostoiévski cumpria o seu doloroso e prolongado exílio na Sibéria, condenado pelo poder czarista a trabalhos forçados, com a acusação de adoptar comportamentos ou actividades revolucionários – logo ele, o escritor que menos simpatizava com as novas ideologias que se impunham, nem mostrou algum optimismo pelas doutrinas socialistas nem o inquietavam a necessidade de mudanças sociais…

Há uma piada que, volta e meia, salta do fecundo baú do anedotário de Woody Allen: «Frequentei o curso de leitura rápida. Li o Guerra e Paz numa noite: Passa-se na Rússia»…

Este «passa-se na Rússia», outra vez curiosamente, e não seria essa a intenção da piada de Allen, diz tudo. 

É preciso lembrar que esta geração de ouro da literatura russa da segunda metade do século XIX só podia acontecer na Rússia. Ainda a Rússia czarista, antes da revolução de Outubro (mas já depois de um primeiro abalo sísmico bolchevique abortado em 1905). 

Estava formada a tempestade perfeita para que pudessem coexistir Leon Tólstoi (1828-1910) e Dostoiévski (1821-1881), que se antagonizavam: o primeiro o escritor de grandes quadros; o segundo o delineador, até às vísceras, de personagens atormentadas.

Uma vez li um ensaio que dizia que os russos eram confrontados com uma beleza tão extrema das suas paisagens, os rios, as estepes geladas, tudo o que os rodeava era tão estrondosamente belo que só poderiam lidar com isso sendo também eles excessivos, hiperbólicos e extremistas.

Talvez faça algum sentido, mas também é preciso dizer que ao contrário do que acontecia na Europa, em que os movimentos de libertação, até ideias democráticas, de direitos liberdades e garantias etc..., iam germinando, pelo menos entre operários, estudantes e intelectuais, durante o século XIX, na Rússia, o império russo e o regime czarista mantinham-se intocáveis. A Rússia estagnava.  Mesmo com a ameaça das penas de morte ou com o risco de exílio na Sibéria (foi o que aconteceu a Dostoiévski), muitos escritores da segunda metade do século XIX contribuíam para a mudança da situação feudal, mesmo não sendo propriamente revolucionários, criticando nas suas obras não só as terríveis condições dos mujiques (praticamente escravos, servos da gleba, «almas» chamavam-lhes), suas misérias e sofrimentos, mas também as classes mais altas e educadas, por não encontrarem um sentido para a sua existência e talvez por um receio crescente e subconsciente de que o passado já os rejeitava e o futuro não lhes pertencia.

Há aqui um lado excessivo que sobressai na literatura russa e que é um pouco inexplicável. Só lendo conseguimos captá-lo, esta ideia de grandeza, de extremos, de capacidade de ironizar, ridicularizar, gozar consigo próprios e ao mesmo tempo ter um enorme orgulho, tudo isto e esta pujança de emoções, que são universais, que são as de todos nós.

Ivan Turguêniev (1818-1883) já revelava um espírito de compaixão por estes homens e mulheres servos, que ele, sendo um aristocrata, observou bem de perto, na casa onde cresceu. No romance "Pais e Filhos" (1862), uma história baseada no conflito entre o velho e o novo, e aí já se detecta um esboço de um genuíno espírito revolucionário. Ele, ao contrário de Tólstoi e Dostoiévski, era mais cosmopolita e ocidentalista.

Apesar das distâncias e da língua — sobretudo da língua, porque só muito recentemente dispomos de traduções directamente do russo —, estamos impregnados de cultura literária russa. Por alguma razão existem de dezenas de versões cinematográficas da "Anna Karenina" do Tólstoi: logo em 1935, Greta Garbo foi Anna Karenina, num filme de David O. Selznick… É muito curiosa a atracção que Anna Karenina, um dos célebres clássicos de Leon Tólstoi, exerce sobre os cineastas americanos: uma vintena de adaptações, entre filmes e séries televisivas. Greta Garbo interpretou-a duas vezes, uma num filme mudo, a outra em 1935; Viven Leigh, em 1948; Sophie Marceau, em 1997… E agora a sempre angulosa e algo alienígena Keira Knightley. O dobro das versões cinematográficas dedicadas a outra mulher adúltera — a primordial — da literatura mundial ("Madame Bovary", de Flaubert). Isto apesar da proximidade de culturas – ou então, talvez justamente por isso. A sociedade da Rússia czarista da segunda metade do século XIX, todo aquele ambiente de altíssima aristocracia, de príncipes e princesas («os ricos farão tudo pelos pobres, menos saltar das suas costas», nas próprias palavras de Tolstói), a ostentação, o luxo, as estepes geladas, e os mujiques que também faziam parte da paisagem, terão muito mais potencial cinematográfico do que a tristonha e entediada Emma, que acumulava a sua queda em desgraça social com imensas e prosaicas dificuldades financeiras. Bom, e a cena do comboio, princípio e fim da história, é muitíssimo iconográfica. 

Se Tólstoi era o escritor dos grandes príncipes. Turguêniev era o escritor dos grandes niilismos. Tchekhov era o escritor dos grandes desalentos. Pushkin era o escritor da grande alma russa. E Gogol (o pai deles todos), nesta arrumação simplista de prateleiras literárias, era o escritor da grande pequenez. Do diminutivo. Do funcionariozinho menor, da banalidadezinha grotesca, da fraudezinha lúgubre, do burocratazinho ridículo, untuoso, subserviente... E Dostoiévski foi o escritor das grandes angústias. Por isso é admirável, e de certa forma improvável, que tenha escrito esta comédia tão divertida. Dostoiévski que passou por tantas provações e humilhações, teve uma infância difícil, cresceu numa família modesta, num bairro miserável de Moscovo, filho de um pai, médico para pobres, tirânico, assassinado pelos servos, em circunstâncias misteriosas… (situação transposta, especula-se, para Os Irmãos Karamázov)… Ainda por cima, o homem tinha epilepsia, e demorava dois dias a recompor-se depois de cada ataque, e neurastenia, vivia obcecado por dívidas e problemas financeiros e, logo em 1849, já enquanto escritor, foi condenado à morte por conspirações socialistas e revolucionárias. Foi uma condenação sádica, ele e os companheiros colocados à frente do pelotão de fuzilamento, em roupa interior, atados a postes, três deles de olhos vendados, mas não chegou a haver disparos. Um dos condenados enlouqueceu (em "O Idiota há uma descrição do condenado antes de morrer), Dostoiévski, (em 1849) foi parar à Sibéria, durante quatro anos, a um campo de prisioneiros e de trabalho forçados. E depois serviu no regimento siberiano, como soldado raso, por mais cinco anos. Talvez por causa disto (é impossível passar incólume a esta travessia) a sua angústia que espelha nos livros, a falta de confiança na bondade humana, e o poder do mal na conduta das pessoas. As suas personagens agonizavam por indefinições existenciais, pela culpa, pelo desespero mental, em permanente conflito psicológico, a quem o escritor, para piorar a situação, está sempre a puxar o tapete. O mesmo autor que compôs o estudante e parasita da sociedade Raskólnikov que, sim, decide matar a velhota usurária, premeditadamente e à machadada (acaba por ser um duplo homicídio), porque na verdade se sente superior a ela (um simples piolho, acha ele), tudo isto num ambiente claustrofóbico, abafado, febril, desesperante, voraz, alucinante, em que os acontecimentos se precipitam, num emaranhado elíptico e irrevogável, é o mesmo, que, em pleno inferno da Sibéria, desenhou esta comédia, quase teatral, em que um cobiçado velhinho caquético, disposto a ser seduzido, sem sequer se dar conta, pelas pretendentes, em "Um Sonho do Tio".