Escreveu Mark Fisher que “o que desapareceu”, no século XXI, “foi exactamente a própria noção de um abalo futuro”. “Enquanto a cultura experimental do século XX se viu acometida por um delírio recombinatório, convencendo-se de que a novidade estaria infinitamente disponível, o século XXI encontra-se oprimido por uma esmagadora sensação de finitude e exaustão. Não parece ser o futuro”, acrescentou. Juntamos a estas palavras o the past inside the present que os Boards Of Canada samplam em 'Music Is Math', enfiamos-lhes o conceito de retromania proposto por Simon Reynolds, e chegamos à conclusão que uma reunião dos D'ZRT, mesmo sem um dos seus membros originais (o tragicamente falecido Angélico), seria uma inevitabilidade numa era em que praticamente toda a cultura nos chega recauchutada e reinventada, em que todo o passado nos é vendido e revendido. As canções mais populares de hoje têm por base as canções mais populares do passado, como se depreende por este artigo da “Pitchfork”.

O futuro e o progresso deixaram de existir porque a repetição vende mais, porque a nostalgia é mais comercializável do que o progresso. A prova: metade da Altice Arena a cantar 'Casa', dos D.A.M.A. com Buba Espinho, que passou no PA no início do concerto: canção que é um sucesso porque vai buscar a melodia do refrão à tradicional 'Menina Estás À Janela'. Nesse sentido, estes espetáculos dos D'ZRT, assim como praticamente todos os espetáculos de reunião que todos os anos alimentam a indústria, foge à dicotomia simples do “bom” e do “mau”. Não poderemos julgá-lo de forma objetiva; o seu propósito, como os próprios membros do grupo indicaram num dos seus últimos ensaios, aberto à imprensa, é o de revisitar o passado.

“Há pessoas que me veem na rua e que me dizem que vão ao concerto, que nós representamos a infância deles. Isso tem um peso gigante”, afirmou nesse dia Edmundo. Cifrão, por seu turno, mostrou uma mensagem que lhe tinha sido enviada via Instagram por um casal a morar na Islândia, que garantiu que também iria marcar presença porque as canções dos D'ZRT representam a sua juventude.

Poucas coisas se valorizam tanto, e poucas coisas vendem mais que a nostalgia. Os bilhetes para este concerto dos D'ZRT esgotaram em poucas horas, assim que foram colocados à venda, levando o website da Blueticket a crashar. Na noite deste sábado, uma Altice Arena praticamente cheia aplaudiu em peso o regresso aos palcos daquele que foi um dos maiores fenómenos da música pop portuguesa, uma banda que, saída de uma série para jovens, transpôs a barreira que separa o virtual do real, garantindo um lugar que só a história decidirá se mantêm ou não.

E o fenómeno explica-se assim: dezenas e dezenas de pessoas que, três horas antes do início do espetáculo, já faziam fila desde a Arena até para lá da FIL, muitas delas indo assistir a um concerto dos D'ZRT pela primeira vez – o que demonstra, como desabafou o Diabo de Fernando Pessoa, que se pode, sim, ter saudades imaginárias das terras onde nunca se esteve. Em muitas t-shirts uma frase tipo mantra: o que me faz querer voltar, retirada a uma das canções do grupo.

Os que puderam estar presentes no chamado golden circle deleitaram-se com selfies tiradas antes do concerto. Assim que as portas da Arena abriram, testemunharam-se corridas de metros e metros de forma a conseguir um lugar o mais próximo do palco possível, com empurrões e choques frontais e mistura, com festejos de felicidade assim que a meta foi atingida. E, num aparte mais negativo, que também faz parte deste tipo de fenómenos desde os Beatles, o SAPO24 contou oito situações em que os paramédicos tiveram que auxiliar aquelas pessoas que se sentiram mais avassaladas pelas emoções, incluindo a mãe do próprio Angélico, após a aparição, em palco, de um “holograma” em homenagem deste.

Angélico, não estando o corpo físico, esteve muitas vezes presente em palco. Era expectável: este era um concerto para os fãs, mas também para ele, que não pôde comprovar que, quase vinte anos depois, ainda há uma multidão em Portugal que nutre um carinho especial pelos D'ZRT. Logo ao início, foi a sua voz que se escutou, pela Arena: “a vida é tão grande quanto a força dos nossos sonhos”, o género de platitudes que um olhar cínico despreza e que outros tantos consideram filosofia.

Um vídeo com imagens do passado e do presente ia decorando o ecrã de fundo, até ser travado pelas mensagens costumeiras: “esta noite é nossa”, “é bom estarmos de volta”, “estamos juntos”, com os olhares a fugirem para o topo da rampa-palco em que os três – Cifrão, Vintém e Edmundo – se colocaram para cantar 'Manos D'ZRT', o primeiro round de duas horas de luta pop.

Gritou-se a ordem e o público ondulou os braços. Gritou-se a ordem e o público acendeu as lanternas dos telemóveis. Gritou-se a ordem e o público gritou, homens e mulheres, balcões um e dois.

Um solo de guitarra roqueiro, da parte de Vintém – e ele sabe de facto tocar guitarra – abriu caminho para o fogo, e o fogo abriu caminho para aqueles momentos totalitários que existem em todos os concertos ao vivo. Gritou-se a ordem e o público ondulou os braços. Gritou-se a ordem e o público acendeu as lanternas dos telemóveis. Gritou-se a ordem e o público gritou, homens e mulheres, balcões um e dois. Aos três primeiros temas do alinhamento, tocados em velocidade furiosa, sucedeu-se uma longa pausa, com os três elementos a olhar para a distância, a trocarem abraços, a deixarem que uma ou duas lágrimas lhes percorresse o rosto, como foi o caso de Edmundo.

É possível que os próprios D'ZRT não tenham consciência da devoção de que são alvo. Mas também é possível que o saibam, e se sintam apenas agradecidos por poderem ter tido este privilégio. Não é toda a gente que desperta uma tamanha coleção de vontades. “Já toda a gente percebeu que vamos fazer uma viagem ao passado”, lançaria Edmundo imediatamente a seguir, por entre gritos mais estridentes que um álbum de Merzbow.

“De repente parecia que estava em 2005”

'Para Mim Tanto Faz', o hino da “Geração Morangos Com Açúcar”, colocou toda a sala aos pulos, as vozes a deixar escapar os versos que tinham ficado guardados em CD, com Vintém e Cifrão a conseguirem realizar, no fim, o mesmo salto mortal de antigamente. “De repente parecia que estava em 2005”, atirou Edmundo.

Ao reggae branco de 'Filosofia Rara' sucedeu-se a primeira canção que o grupo cantou, na série, uma versão de 'I Don't Want To Talk About It', tema composto por Danny Whitten, dos Crazy Horse de Neil Young, que Rod Stewart popularizou, os Everything But The Girl melhoraram e os D'ZRT assassinaram por completo. 'Verão Azul', logo a seguir, levou ao rubro quem já estava preparado para tal, o palco pintado com a cor desse êxito, Angélico a surgir uma vez mais no ecrã, encostado à carrinha animada, Edmundo a chorar.

“Emoção” é mesmo a palavra que melhor descreve esta noite dos D'ZRT na Altice Arena. Ainda assim, houve momentos em que essa era “diversão”: um agradável bolero em honra do Dia Mundial da Dança, o icónico casaco vermelho de Cifrão em 'D'ZRT Revolução' (a palavra reapropriada pelo capital para dar a vender uma rebeldia que não existe), o momento em que o “Zé Milho, faz-me um filho!” dos cartazes de antigamente foi trocado por um “Zé Milho, fizeste-me um filho!” (filha, na verdade), cortesia da namorada do artista.

Depois de uma hora e pouco de explosão, os D'ZRT sentaram-se para quatro pequenos momentos acústicos, começando com 'Estar Ao Pé De Ti', até chegarem àquele pelo qual muitos esperavam: o já mencionado “holograma” de Angélico surgiu em palco, e a sua voz ecoou uma vez mais pelo tempo, permitindo aos D'ZRT saltar novamente para o virtual para um abraço sentido à pessoa de quem mais – eles e os fãs – sentem a falta.

E saiu de palco como um gigante, com a sensação de dever cumprido

Por entre interrupções a meio de alguns dos temas, para prestar auxílio aos fãs que não se sentiram bem (sinal de que a tragédia ocorrida no Astroworld de Travis Scott fez a indústria repensar muitas coisas), e com um ou outro verso fora do sítio, o que é absolutamente normal num grupo que não tocava ao vivo há 12 anos, o espetáculo dos D'ZRT acabou por correr como os presentes assim o queriam: recuperando uma memória que foi das melhores das suas vidas.

No encore, o grupo não se coibiu de agradecer à TVI, ofereceu 1 (uma) t-shirt a uma fã, tocou 'Quero Voltar', 'Verão Azul' e 'Para Mim Tanto Faz' em modo reprise. E saiu de palco como um gigante, com a sensação de dever cumprido. A este concerto seguir-se-ão outros, com o último já marcado para o Algarve. E depois disso? Talvez nada. Ou talvez um novo regresso. Enquanto houver quem queira viver no passado, os D'ZRT terão sempre um palco à sua espera.

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