A editora Companhia das Letras fala num “livro irresistível”, no qual o leitor é transportado “para um cenário que combina memórias e imaginação, e que revela um rapaz à descoberta da Cidade Eterna, dos laços de amizade, dos sonhos que se evaporam, dos primeiros desejos”.
“Do que falamos quando falamos de ‘Bambino a Roma’?”, interroga a editora, na apresentação da obra. “Falamos de memória, de recriação, de autobiografia tornada ficção. Ou vice-versa. […] Somos transportados no espaço e no tempo até à Via San Marino, nas cercanias da esplêndida Galleria Borghese, na capital italiana: no rés-do-chão do número 12, um pequeno prédio amarelo, um menino traça caminhos no mapa-múndi que cobre a parede do seu quarto. As náuseas que sentiu durante a viagem de barco entre o Brasil e Itália ficaram para trás, e o desejo de traçar novas rotas cartográficas é deslocado para as ruas de uma cidade inteira por descobrir”.
“Bambino a Roma”, que foi editado no Brasil em agosto e entrou em pré-venda no mercado português na semana passada, remete para o período entre o fim da infância e início da adolescência que Chico do Buarque viveu em Itália, o que coincide com o pós-guerra italiano e o longo processo de recuperação económica do país, na década de 1950.
O pai do cantor e escritor, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, foi convidado a dar aulas numa universidade em Roma, na década de 1950, e emigrou levando com ele a família.
“Bambino a Roma” abre com a partida do Brasil. “Agarrado à bola de futebol, olhei para trás ao sair de casa na Rua Haddock Lobo 1625, São Paulo, assim que partiu o caminhão de mudança. Vendo a casa tão vazia, com manchas de mobília no chão e de quadros na parede, entendi que a ausência seria longa, talvez para sempre”, escreve Chico Buarque, no início do novo livro.
Em Itália, tudo se prefigura diferente: “Minha mãe explicou que o país saíra empobrecido da guerra, terminada poucos anos antes […]. Estava tudo confuso na minha cabeça, endereços se misturavam nos meus sonhos, e mesmo acordado permaneci num ambiente de sonho por um bom tempo”.
“Estranho, estranho mesmo era alguma coisa que eu não via, uma coisa que faltava em toda parte”, prossegue o escritor. “De noite eu perdia o sono matutando nisso; era dessas adivinhas difíceis de decifrar e que quando decifra a gente exclama: é claro! Era estranho ver no bonde tantos homens de muletas? Sim, mas não era a isso que eu me referia. Era estranho ver na feira tantas mulheres de luto fechado? Sim, mas não era disso que se tratava. Era um pouco estranho não ter feijão com arroz, mas logo tomei gosto pelas massas que a cozinheira servia todo dia no almoço”.
A Companhia das Letras nota que, em “Bambino a Roma”, “vivemos com o autor a aventura de todas as reminiscências do fim da infância: as partidas de futebol com Amadeo, o filho do merceeiro; as saudades do feijão com arroz; as escapadelas da escola; as primeiras erupções do desejo; a paixão juvenil por Sandy L., alimentada por cartas e bilhetes românticos”.
Chico Buarque viaja através das suas recordações tal como antes ziguezagueava “pelas ruas da Cidade Eterna”, com a sua “bicicleta niquelada”, compondo agora “uma narrativa sedutora e comovente”, “num equilíbrio delicado e irresistível entre memória e imaginação […] que abre as portas ao passado e a todos os mundos possíveis”, descreve a editora, garantindo que “‘Bambino a Roma’ é uma deliciosa aguarela de lugares, recordações e sonhos”.
O músico e escritor voltaria a Roma mais tarde, entre 1968 e 1970, quando já era um artista reconhecido. Aqui se exilou durante a ditadura militar do Brasil (1964-1985). A primeira filha do cantor, com a atriz Marieta Severo, Sílvia, nasceu na capital italiana. E o país não é estranho à sua obra.
Entre os vários álbuns que editou está “Chico Buarque de Hollanda na Itália”, que saiu em 1969 e inclui versões em italiano de músicas de Chico como “A banda”, “Madalena foi pro mar” e “Olê, Olá”.
Francisco Buarque de Hollanda, que completou 80 anos em junho, tem uma carreira musical de seis décadas, mas também se destaca no mundo das letras, há já 50 anos, desde que se estreou na literatura, em 1974, com a novela “Fazenda Modelo”. O seu primeiro romance, “Estorvo”, data de 17 anos mais tarde.
Além de romances, Chico Buarque é também autor de contos, poesias, peças teatrais e livros infantis. “Roda Viva”, “Gota d’Água”, “Ópera do Malandro”, “Chapeuzinho Amarelo”, “Benjamim”, “Leite Derramado”, “Anos de Chumbo”, “Essa Gente” e “O Irmão Alemão” são alguns dos seus títulos.
Chico Buarque esteve em Portugal no ano passado para receber o Prémio Camões, com o qual foi distinguido em 2019, e para uma série de concertos de apresentação do espetáculo “Que tal um samba”, no Porto e em Lisboa.
Para o júri do Prémio Camões, a maior distinção literária da língua portuguesa, a escolha de Chico Buarque deveu-se à sua “contribuição para a formação cultural de diferentes gerações”, e ao “caráter multifacetado” do seu trabalho, da poesia, ao teatro e ao romance, estabelecendo-se como “referência fundamental da cultura do mundo contemporâneo”.
Antes do Prémio Camões já fora distinguido três vezes com o prémio Jabuti, o mais importante prémio literário no Brasil, por “Estorvo” (1991), “Leite Derramado” (2010), obra com que também venceu o antigo Prémio Portugal Telecom de Literatura (antecessor do atual Prémio Oceanos), e “Budapeste” (2006).
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