Ao terceiro dia de festival, o primeiro de um país em estado de emergência. Para muita gente foi, também, mais um dia em isolamento voluntário – o “mais” soando aqui como uma sentença. Por todo o território nacional, quer seja através das notícias, dos vídeos partilhados em redes sociais ou das conversas informais com os amigos tidas em cada meio de comunicação ao nosso dispor, é possível assistir a exemplos dos cinco estágios do modelo de Kübler-Ross; o último, a aceitação, tarda em chegar à maioria da população. Mas mesmo que não seja vivido em pleno, a sua ideia de base - “vai acabar tudo bem” - persiste, mesmo que apenas para nos fazer esquecer.

“Vai acabar tudo bem”. Mesmo que, neste dia dedicado aos pais, o número de abraços, beijos e carícias por dar tenha sido maior. Vai acabar tudo bem porque ainda somos um povo com alma para cantar e ouvir cantar. António Zambujo parece ter aprendido essa lição, inscrita em cada português à nascença: na meia hora que lhe foi atribuída pelo festival, o músico alentejano, de guitarra nos braços, limitou-se a interpretar as suas canções sem grandes devaneios, ao contrário da grande maioria dos artistas. Dele ouviram-se apenas um par de frases, ambas extremamente importantes: «mantenham-se serenos, unidos e com saúde» e «estou mortinho para cantar à vossa frente, em palco».

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O palco improvisado, um sofá, a plateia, um ecrã. Na horizontal, o primeiro músico a fugir à regra da verticalidade. Fez-nos virar a cabeça e também nos virou os corações do avesso quando de 'A Deusa da Minha Rua' passa para 'Valsa do Vai Não Vás', sem qualquer tipo de pausa, apenas o rio das palavras correndo fluido. Um avesso onde a mágoa quase que enternece. Talvez tenha sido saudade ou outra palavra sem tradução. Mas nenhuma palavra existe para o que se passou a seguir – aquela nota prolongada, impressionante, no final de 'Pica do 7'. António Zambujo a erguer-nos nos seus braços, os seus braços a sua garganta. Também com a ajuda de 'Catavento da Sé', 'Valsa de um Pavão Ciumento', 'Zorro', 'Multimilionário' e 'Algo Estranho Acontece' se fez um concerto único, que na vida real – o mundo como o conhecemos, sem o medo, sem a doença – estaria a ser aplaudido de tal forma que os seus ecos se escutariam na Grécia.

Logo a seguir, Mafalda Veiga percorreu uma 'Estrada' até chegar a Espanha, dedicando aos amigos do país vizinho 'Una Casa', cantada na língua destes. Mafalda Veiga, a bélica: «vamos ganhar esta guerra juntos». Mafalda Veiga, a filosófica: «estamos no fim para começar qualquer coisa boa a partir daqui». Mafalda Veiga, a desejosa: «vamos ficar um bocado alérgicos a telemóveis e a redes sociais, e vamos passar a conviver mais». Pelo meio, 'Restolho', a eterna 'Tatuagens' (sem Jorge Palma, natural e tristemente) e 'Cada Lugar Teu', para além de uma versão de 'Stand By Me'.

Poucas horas antes, Tainá teve o maior azar do EuFicoEmCasa: o seu direto só começou a funcionar corretamente dez minutos após a hora marcada. Mas o que seria um festival sem atrasos? Desse momento de estranha e familiar normalidade surgiu a grande surpresa do dia, um sotaque e bossa brasileiras (não nos esqueçamos que o país-irmão também tem sofrido com o vírus), de 'Caminho' a 'Desertos', onde a sua voz e a sua guitarra sussurram como se fossem o mais bonito dos silêncios. «Vou tocar a 'Sonhos' porque não podemos deixar de ter sonhos», disse, antes de voltar a ter problemas com a rede em 'Senti', canção compartilhada com Left. Uma lástima. Tainá estava a ser um mundo.

Bispo, um de vários rappers presentes no cartaz do festival, não fugiu à regra imposta pelos seus antecessores: um instrumental a tocar no computador, e siga. Por entre muitas e muitas palavras de incentivo e ânimo, das quais tanto precisamos, o músico mostrou temas como 'Nós2', 'Aviola II' («cantada pela primeira vez», confessou) e 'Vai Devagar', onde mesmo no stream se notou a força do beatMirai – que significa “futuro”, em japonês, e por agora só poderemos mesmo tentar imaginar o futuro – seguiu-lhe o exemplo e deu à audiência um trap aos gritos, a lembrar JPEGMAFIA, ainda que sem as influências certas. O esquadrão rap do dia ficou completo com Prodígio, que começou por ensinar que 'Homens Não Choram', e com o DJ set de DJ Ribe, onde os The xx e Kanye West surgiam ao lado de uma cabeça de cavalo e dos comentários do people das Caldas da Rainha.

Joana Espadinha e os Cassete Pirata, representados por João Firmino, apresentaram-se numa espécie de dueto, cantando canções de uns e outros intermitentemente. O concerto foi dedicado – claro – aos pais, com 'Pó No Pé', 'Pensa Bem' e 'Leva-me A Dançar' mostrarem todo o seu sorriso. Sim, há canções que sorriem como crianças, e que por arrasto também nos fazem sorrir. Não tanto, claro, quanto vídeos de gatinhos na internet; no caso, era uma gata, chamava-se Arlinda e quase mandou o telemóvel ao chão.

Fábia Rebordão não tinha gatos, mas tinha um guitarrista e um ruído de fundo que não cessou nem quando a fadista recomeça o direto; digamos que se pôde assistir a uma espécie de cruzamento entre Alfama e Merzbow. Ruído, mas do bom, a voz de Afonso Cabral, algures entre o deserto e um bagaço, a mostrar-nos a sua 'Morada'. Matias Damásio também lembrou os pais, com 'Papá', e acrescentou-lhes 'Faltou Coragem', dando-lhe a volta: «que não nos falte coragem». Paulo Sousa e Marta Carvalho decidiram fazer pandã: ambos começaram com versões de temas de Rui Veloso, 'Anel de Rubi' e 'Jura' respetivamente.

O quarto dia do Festival EuFicoEmCasa contará com a presença de Sean Riley, Frankie Chavez, Kalú, Cláudia Pascoal, Nelson Freitas e Pedro Abrunhosa, entre muitos outros. Para ver no Instagram, uma vez mais.

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