Pela primeira vez em cerca de 200 anos, a procissão ao mar e a Romaria em Honra de Nossa Senhora da Agonia não saem à rua. Habitualmente, em agosto, minhotos, portugueses das restantes zonas do país e estrangeiros rumam a Viana do Castelo para sentir o abraço dos vianenses. Cláudia Cavaleiro Ramos, natural da cidade, desabafa: “ainda não consegui assimilar de como se irão viver os dias da romaria… sinto, não vou esconder, alguma tristeza no coração. Desde pequenina que vivo estes dias intensamente e que participo no cortejo». João Lomba da Costa, outro natural da terra e vice-presidente da Fundação Gil Eanes recorda Amadeo Costa, etnógrafo, estudioso e escritor de diversos livros sobre a terra, trajes e tradições, e autor de algumas frases que refletem a alma romântica e apaixonada: «Viana é Amor». Complementada por «Quem gosta vem, Quem ama fica». Esta frase une as gerações dos dois vianenses que nos acompanham nesta volta.
Este ano, mais do que nunca, a romaria irá sentir-se. Em tempos de pandemia, as cerimónias não irão realizar-se; contudo nada foi descurado para que todos possam viver a festa adaptada ao formato digital. Para além disso, mantendo os cuidados exigidos, “as gentes de Viana” foram convidadas a levar à rua um “bocadinho da romaria”, trajando pelas ruas, honrando a tradição, a história e a alma de um povo. Cláudia, que costuma participar no Desfile da Mordomia, diz envaidecida que a «cerimónia começa no momento do trajar, que obedece a uma espécie de ritual e que se prolonga pelo dia fora, quando exibimos com chieira (orgulho) pelas ruas da cidade, o traje e o ouro ao peito e nas orelhas, elevando o sentimento». João Lomba da Costa complementa que o ouro é familiar, passado de geração em geração e que «em tempos constituía um investimento, um aforro». Destaca as cores e o brilho como algo único e indescritível, «o vermelho, o verde, o amarelo, o azul, o castanho e o preto dos trajes enchem a cidade de brilho e de alma». Os detalhes das tradições do trajar e do ouro (e a filigrana em ouro), podem encher o coração no Museu do Traje na cidade minhota.
Desengane-se quem acha que a alma vianense se limita à Romaria, nada disso. «É um cantinho que respira a alma minhota na história, património, gastronomia e natureza», afirma a nossa guia.
«A noção de tempo perde-se na contemplação da paisagem», assegura Afonso Cruz no livro «Jalan Jalan», como se já tivesse chegado ao monte de Santa Luzia. Aqui presenciamos «a melhor paisagem do mundo», assume parcial e orgulhosamente João Lomba. Não está sozinho, já em 1927, a National Geographic considerou um postal ilustrado este panorama como o 3º melhor do mundo. Uma visita ao zimbório, «o ponto mais alto do Santuário de Santa Luzia não é mais uma igreja, é uma verdadeira experiência 360º», com a cidade de Viana a piscar o olho, o mar e o estuário do Lima a brilhar por entre vales e montes a confortar. O subir à montanha pode ser realizado por funicular ou por um escadório maravilhoso, que surge por entre árvores centenárias.
A imponência do Santuário é evidente, que envolve uma cidade nobre com os seus palácios, igrejas e chafarizes. É bom perder-se pelas ruas do centro histórico, o coração da cidade, a Praça da República com os antigos Paços do Concelho. Edifícios quinhentistas convivem com inspirações românicas da Igreja Matriz e o barroco da Igreja da Senhora da Agonia, que acolhe a sua imagem, abençoa o mar na nobre e devota procissão de agosto. O passado convive com a contemporaneidade da arquitetura portuguesa - Siza Vieira, Fernando Távora, Carrilho da Graça, Jorge Albuquerque e Souto Moura -, exibem em edifícios pela cidade os seus traços.
A ligação ao mar de Viana do Castelo é um traço da sua história, tendo acolhido um dos mais importantes estaleiros navais, como também foi um importante porto na costa portuguesa da pesca do bacalhau. Os pescadores enfrentaram condições de trabalho árduas e difíceis, uma alimentação débil e múltiplas doenças respiratórias e digestivas, tendo surgido a necessidade de construir um navio-hospital, Gil Eanes, para dar assistência médica e logística aos mais de 100 navios e pescadores. Operou até 1972 após a mudança do tipo de pesca usada, o navio deambulou de doca em doca e acabou por ser resgatado de uma sucateira em Lisboa com o apoio da comunidade vianense, «sendo hoje um monumento de Viana e um ponto de referência e de visita da cidade», valoriza o vice-presidente da Fundação Gil Eanes, João Lomba. Enaltece dizendo que «é um dos museus mais visitados de Portugal, contabilizando cerca de 60 mil visitantes ano», com a ajuda da Fundação mantém-se recuperado, reabilitado e edita recursos históricos sobre a pesca do bacalhau e a história da região.
O mar e o rio convidam à prática de desportos náuticos desde a vela, remo, canoagem, surf, windsurf, kitesurf ou a passeios com paisagem litoral ou fluvial, por ecovias e trilhos assinalados. Cláudia aconselha os passadiços do Sistelo, «um passadiço especial, com uma paisagem fantástica, ar puro e sempre juntinho ao rio Vez de águas cristalinas». Ou, em alternativa, optar por entrar a fundo pelos caminhos de Santiago que passam pela cidade de Viana ou seguir pelos percursos que passam pelo interior na zona de Ponte de Lima.
Sentir Viana a caminhar para equilibrar as tentações da gastronomia. Cláudia sugere com confiança «nos passeios não podem deixar de visitar o Manel Natário e comer uma bola de Berlim ou uma tacinha de vinho branco (bem fresquinho) com uma empadinha de pato! Hummm… uma delícia! Seja a que hora for, no caso da tacinha e empada, porque as bolas de Berlim têm hora certa para sair e rapidamente desaparecem das montras da pastelaria». João Lomba perde-se nas iguarias do Minho, «desde o arroz de cabidela, os rojões à moda do Minho e o bacalhau confecionado de mil e uma maneiras, acompanhado de um generoso e distinto vinho verde». Acrescenta que «o mais difícil é escolher». E, «as papas de Sarrabulho ou o arroz de Sarrabulho», remata a nossa mordoma, «são coisas diferentes, não confundir».
Assim, como o nome da cidade, Viana permanece, sem confusão, envolto numa lenda. Para Cláudia «é uma das lendas mais bonitas». Conta-se que um barqueiro que percorria o Rio Lima, se enamorou de uma rapariga linda cujo nome era Ana. Passava a vida a perguntar pela amada: “Viram a Ana?”, ao que as pessoas respondiam: “Sim, eu Vi a Ana!”. Algumas vezes, era o próprio apaixonado que gritava ao “mundo”: “Hoje vi a Ana! Vi a Ana!”. Desde 1248, data que o rei D. Afonso III concedeu o foral à cidade, Viana passou a ser sempre Viana, «se bem que umas vezes foi do Lima, da Foz do Lima, de Caminha (imagine-se lá!), de Riba do Minho…, mas sempre Viana», explica a vianense.
E, foi sem qualquer confusão que D. Maria II reconheceu a lealdade da população de Viana do Castelo, a 20 de janeiro de 1848, elevando à categoria de cidade a Vila de Viana da Foz do Lima atribuindo-lhe o nome de Viana do Castelo, como forma de reconhecimento pela defesa do Forte S. Tiago da Barra e lealdade com a Coroa.
Lealdade é também perpetuada pela vasta obra de Pedro Homem de Mello com poemas imortalizados por uma grande amiga da terra (e que foi em tempos também “madrinha” das festas da cidade) a “grande” Amália Rodrigues. «Havemos de ir a Viana» é uma «música potente que enche as gentes de Viana de “chieira pura”. Enfim, uma paixão traduzida em palavras!», garante com orgulho Cláudia.
Em Viana do Castelo, o ar do mar namora com o monte, com os rios e ribeiras e com o vento como é elogiada neste poema de Homem de Mello:
«A minha terra é Viana
Sou do monte e sou do mar
Só dou o nome de terra
Onde o da minha chegar».
Este é um artigo da autoria de Rita França Ferreira do projeto Desculpas para Ler.
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