1.

UM MUNDO NUM TURBILHÃO

Herodes nasceu por volta de 73 a.C., na Idumeia ou, mais provavelmente, em Jerusalém. Morreu em Jericó quase setenta anos depois. Nascido num mundo em turbilhão, testemunhou e participou na sua transformação total.

A vida de Herodes começou na corte da rainha asmoneia Shelomtzion (em grego, Salomé), que governava o que era então um Estado judaico independente. Desde a infância, viveu perto do centro do poder: o seu pai, Antípatro, era um dos ministros de confiança de Shelomtzion. Porém, tinha apenas dez anos quando Jerusalém foi sitiada e capturada pelas forças romanas, e foi em Roma que foi proclamado rei, em 40 a.C. Os últimos sessenta anos da sua vida foram dominados pelo poder de Roma e pelas ambições de alguns aristocratas romanos. Assim, embora a sua capacidade de se mexer pelos meandros da rivalidade entre os descendentes asmoneus de Shelomtzion, que competiam entre si, tenha sido a base da ascensão de Herodes à proeminência enquanto jovem, muitos dos nomes mais significativos que surgirão à medida que a sua história se desenrola serão romanos: Pompeu e os seus rivais, Crasso e Júlio César; Cássio, um dos assassinos de César; Marco António e Octávio. Destes, o mais influente viria a ser Octávio, que, em 27 a.C., adotou o nome Augusto e reinou soberanamente no mundo romano como imperador durante o último quarto de século da vida de Herodes.

O profundo impacto dos imbróglios políticos dos senadores romanos da longínqua Itália na vida deste jovem judeu que vivia na orla oriental do Mediterrâneo resultou das mudanças tectónicas de poder ocorridas no século anterior ao nascimento de Herodes. Os grandes impérios helenísticos estabelecidos em todo o Próximo Oriente pelos sucessores do rei macedónio Alexandre, o Grande, no final do século iv a.C., já quase se tinham desmoronado aquando do nascimento de Herodes, sob a pressão de Pártia, a oriente, e de Roma, a ocidente. No início do século I a.C., o reino selêucida, que outrora governara desde a Anatólia (na atual Turquia) até ao Irão, estava em grande parte confinado a rivais em guerra na Síria e na Fenícia (atual Líbano). A dinastia ptolemaica do Egito estava tão enfraquecida pelas rivalidades internas que Ptolomeu XII Aulete, que subiu ao trono em 80 a.C. após o assassinato do seu antecessor durante uma revolta dos seus súbditos em Alexandria, governava apenas como um fantoche do Estado romano.

O processo de aquisição territorial contínua por parte de Roma não teve nada de acidental. O imperialismo romano era um produto da constituição da República Romana, ao abrigo da qual o poder era partilhado por aristocratas concorrentes, a quem eram concedidos períodos limitados para se afirmarem após a eleição para uma magistratura. Numa sociedade que atribuía prestígio sobretudo à vitória na guerra, era inevitável que os políticos ambiciosos procurassem oportunidades de glória através da conquista de terras estrangeiras durante os seus mandatos. Consequentemente, Roma, uma pequena cidade‐estado na planície do Lácio, perto da costa ocidental de Itália, no ano 100 a.C. conquistara a Grécia e toda a Ásia Menor, e era apenas uma questão de tempo até que a Judeia ficasse também sob domínio romano.

Quando esse momento chegou, por alturas do nascimento de Herodes, o sucesso do imperialismo romano começara a exercer uma pressão insuportável sobre a própria Roma. As estruturas políticas do Estado, que se tinham revelado tão eficazes para estimular a conquista nos primeiros séculos, não seriam suficientes para manter subjugada uma grande parte do mundo mediterrânico. Os exércitos tinham de permanecer no terreno durante mais do que uma campanha anual. Os generais nomeados, em teoria, como comandantes temporários conseguiam ganhar prestígio nestas campanhas prolongadas e acumular uma riqueza muito superior à dos magistrados anuais que presidiam às decisões em Roma. Nas décadas que antecederam o nascimento de Herodes, tornara‐se claro que seria possível, através de uma determinação implacável, que um desses generais conseguisse o domínio total de todo o sistema político de Roma.

Em regiões longínquas que tinham ficado sob o domínio romano no início do século I a.C., estes governadores romanos já se comportavam como reis, detendo o poder sobre a vida e a morte dos habitantes das regiões que conquistavam. Noutras regiões, o controlo romano era imposto indiretamente através de governantes naturais da região considerados amigos de Roma. A amizade era, naturalmente, desigual: aos olhos dos Romanos, estes reis aliados dependiam da aprovação do Senado romano para obterem a sua autoridade, tal como os governadores das províncias enviados por Roma. Na procura de patronos políticos influentes, os reis clientes eram, assim, inexoravelmente arrastados para o turbilhão da concorrência feroz entre fações senatoriais que atormentavam Roma na República tardia.

Alguém vindo de fora teria muita dificuldade em orientar‐se neste mundo, e ninguém na Judeia, aquando do nascimento de Herodes, teria feito a mínima ideia da sua complexidade. Por isso, era improvável que, no final dos anos setenta, Shelomtzion e o seu ministro Antípatro tivessem sequer ouvido falar dos dois ambiciosos generais, Pompeu e Crasso, que tinham acabado de chegar à linha da frente da política romana através de campanhas militares em terras distantes, no outro extremo do Mediterrâneo. As forças romanas ainda não tinham sido vistas no Levante meridional. Shelomtzion governava na Judeia um Estado judaico independente, que, nas décadas anteriores, tinha atingido o auge da sua glória, beneficiando do colapso do poder selêucida para conquistar territórios vizinhos. Quando Herodes nasceu, a Judeia era uma super‐potência regional.

Patrícia Reis junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 27 de fevereiro, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz "A Desobediente - Biografia de Maria Teresa Horta", publicada pela Contraponto.

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Mais do que uma narrativa biográfica, "esta obra é uma conversa íntima, em vários momentos sussurrada ao ouvido, com uma mulher, poetisa, mãe, ativista política e uma das vozes mais influentes e inquebrantáveis de Portugal", lê-se na sinopse do livro.

Saiba mais neste artigo.

Shelomtzion herdara o seu reino do marido, Alexandre Janeu, um descendente da família sacerdotal asmoneia que tinha chegado ao poder em Jerusalém através da revolta dos Macabeus nos anos 160. O mito fundador da dinastia asmoneia retratava a luta heroica de Judas Macabeu como uma rejeição da helenização à qual os anteriores sumos sacerdotes de Jerusalém tinham sucumbido. No entanto, no final do século II a.C., os governantes asmoneus tinham adotado não só a língua e os costumes gregos, mas também uma preocupação carateristicamente helenística com a conquista militar como justificação do regime real. Assim, Alexandre Janeu intitulava‐se rei e sumo sacerdote nas suas moedas e comportava‐se abertamente como um monarca helenístico, dedicando quase todo o seu reinado de vinte e sete anos a campanhas contínuas. Por altura da sua morte, em 76 a.C., a região montanhosa a oeste do Jordão, todo o território adjacente ao longo da costa mediterrânica (com exceção de Ascalão, que permaneceu independente) e toda a Pereia (Transjordânia), desde o norte do mar da Galileia até ao mar Morto, estavam nas mãos dos asmoneus.

Foi ao serviço de Alexandre Janeu que Antipas, o avô de Herodes, foi recrutado algures no início do século i. Nomeado governador da Idumeia, a sua terra natal ancestral, que tinha sido incorporada ao reino asmoneu apenas algumas décadas antes, Antipas evitou a perigosa política da corte de Jerusalém, concentrando‐se na administração de uma região cuja lealdade ao Estado judeu não podia ser considerada totalmente como um dado garantido. Não há indícios de que tenha sido arrastado para as intrigas familiares que rodeavam o seu senhor real, que, segundo rezava a lenda, só se tornara rei com a ajuda de Shelomtzion: dizia‐se que, em 103, Shelomtzion escolhera Janeu como seu esposo após a morte prematura do seu primeiro marido, Aristóbulo, que era irmão de Janeu. A extensão do poder de Shelomtzion foi demonstrada abertamente um quarto de século mais tarde pela sua própria ascensão ao trono, após a morte de Janeu.

O reinado de Shelomtzion pôs a nu até que ponto o Estado judaico estava agora a ser administrado segundo moldes helenísticos, apesar do papel de o Templo de Jerusalém desempenhar o papel de instituição central. O exercício do poder político em público por uma rainha não era uma prática encontrada na tradição judaica anterior, que excluía as mulheres da demonstração aberta de autoridade política, mas as rainhas guerreiras já se encontravam há muito no mundo helenístico. A grande Cleópatra VII, com quem Herodes foi obrigado a negociar nos primeiros anos do seu reinado, era apenas a última de uma série de mulheres poderosas da dinastia ptolemaica que governaram o Egito nos séculos II e I a.C. Shelomtzion viria a governar durante nove anos.
Apesar da sua posição anómala aos olhos de alguns judeus, Shelomtzion foi recordada favoravelmente na tradição judaica posterior, principalmente devido às suas políticas religiosas conservadoras. Foi descrita por Josefo como uma governante passiva, mas esta avaliação parece injustificada, mesmo com base no relato do próprio Josefo: diz‐se que demonstrou uma impressionante força de vontade ao controlar as ambições do seu filho mais novo, Aristóbulo, que recriminava a mãe com base no facto de não ser razoável uma mulher reinar enquanto os seus filhos estavam na flor da vida. Se, ao contrário do seu falecido marido, ela preferiu abster‐se de expedições ao estrangeiro, uma explicação óbvia pode ser a sua idade: já tinha sessenta e poucos anos quando subiu ao trono. A sua política de comprar a paz com subornos, quando receava que o seu reino pudesse ser subjugado pela política caótica da região mais alargada da Síria, foi simples prudência.

Não sabemos se Herodes conheceu Shelomtzion. Se a conheceu, terá sido muito jovem, pois teria à volta de seis anos quando ela morreu, em 67 a.C. Tanto quanto sabemos, o seu avô Antipas manteve o seu papel de governador da Idumeia durante o reinado de Shelomtzion, mas Antipas desaparece dos registos e, muito provavelmente, ter‐se‐á reformado ou terá morrido por essa altura. Jerusalém continuava a ser um lugar pequeno, ainda pouco adornado de edifícios públicos esplêndidos, mas o rapaz teria certamente reparado no imponente edifício de calcário muito claro que era o palácio real na colina ocidental, que proporcionava à velha rainha vistas do Monte do Templo, garantindo que a sua corte dominava a cidade. Dentro da corte, o seu pai, Antípatro, começava a estabelecer as ligações que o levariam a ele e, a seu tempo, ao próprio Herodes, ao centro do poder.

Proibida pelo seu género de ser a suma sacerdotisa, Shelomtzion insistiu em conferir o sumo sacerdócio ao seu filho mais velho, Hircano, apesar da sua falta de energia e da oposição de Aristóbulo. A intensa luta fraterna que esta escolha gerou proporcionou oportunidades de progresso a Antípatro, que se envolveu com entusiasmo nas intrigas da corte, apoiando Hircano. Antípatro estava, assim, bem posicionado para assumir um papel importante na luta pelo poder que eclodiu com a morte da rainha, quando Hircano herdou o trono nos termos do testamento da mãe e Aristóbulo marchou sobre a Judeia para o depor. Depois de uma batalha perto de Jericó, na qual muitos dos seus soldados desertaram, Hircano retirou‐se para a vida privada, deixando o reino e o sumo sacerdócio a Aristóbulo – até que Antípatro liderou uma campanha para devolver ao seu patrono a sua posição legítima. Foi Antípatro quem convenceu Aretas, o rei dos Nabateus, a marchar contra Aristóbulo em nome de Hircano.

Até que ponto estaria o jovem Herodes consciente de tudo isto? Arrancado da sua casa em Jerusalém e enviado juntamente com os irmãos para junto da família materna para ficar em segurança em Petra, a capital nabateia, teria certamente idade suficiente para avaliar os riscos da campanha do pai e os perigos que a família enfrentaria até a vitória ser alcançada. Não sabemos durante quanto tempo foi mantido fora de perigo em Petra, uma vez que, apesar dos sucessos militares, a guerra se arrastou ano após ano: para uma criança na próspera cidade escavada na rocha, escondida dos forasteiros num estreito desfiladeiro do Wadi Araba, Petra devia parecer um refúgio de paz.

Essa paz não viria a durar muito tempo. É provável que toda a família tenha regressado à Judeia dois anos depois, quando Aristóbulo, confinado a uma posição defensiva no Monte do Templo, deu o passo fatídico de pedir ajuda às forças romanas. Os coman‐ dantes romanos contactados por Aristóbulo estavam envolvidos em operações a norte do reino asmoneu, que consistiam em anexar território na Síria ao domínio romano para satisfazerem o apetite de Pompeu por mais glória militar. Grandes subornos oferecidos a Pompeu e aos seus tenentes, primeiro por Aristóbulo e depois por Hircano, serviram para estimular o apetite dos Romanos pela conquista. Ao chegar à região na primavera de 63, e decidindo‐se definitivamente contra Aristóbulo devido à arrogância dos seus embaixadores, Pompeu assumiu pessoalmente o cerco das forças de Aristóbulo no Monte do Templo, ostensivamente em nome de Hircano e Antípatro, mas, em última análise, preparando‐se já para uma procissão triunfal através de Roma para celebrar a sua grande vitória.

Nenhuma tradição posterior regista onde Herodes se encontrava quando o Monte do Templo foi cercado no verão de 63.

Estaria ele em Jerusalém com o pai ou (talvez mais provavelmente) em casa de parentes na segurança da Idumeia, enquanto as paredes do Templo eram golpeadas por projéteis numa batalha que durou três meses, culminando com a sangrenta vitória de Pompeu no final do outono? Talvez só tenha ouvido falar, mais tarde, dos engenhos de cerco e das torres que caíram, ou das casas que arderam, da matança em massa e do suicídio desesperado dos que se lançaram aos precipícios em vez de aceitarem o seu destino. Contudo, um rapaz de dez anos teria certamente idade suficiente para observar com horror, nos meses e anos que se seguiram à guerra, a extensão da destruição causada pelas forças romanas no santuário sagrado e a indignação latente entre os judeus comuns pela profanação do santuário pelo comandante romano, que os tinha chocado ao entrar no Santo dos Santos para verificar se o santuário estava tão vazio como se dizia.

Talvez Herodes já estivesse a construir à sua volta uma carapaça protetora, ao testemunhar de perto o regresso de Hircano, o amigo do pai, à prestigiada posição de sumo sacerdote, ao mesmo tempo que Pompeu punha fim à independência nacional do Estado judaico, negando a Hircano o título de rei e confinando sob o domínio romano o Estado que anteriormente governara outros. Para Herodes, a entrar na adolescência, o arrependimento motivado pelo trauma nacional era certamente contrabalançado pela ascendência pessoal que a derrota de Aristóbulo, conduzido a Roma, acorrentado, na procissão triunfal de Pompeu em 61, proporcionou ao seu pai, o conselheiro mais próximo de Hircano. Os poderes castrados de Hircano suscitariam desafios a que Antípatro estava invulgarmente qualificado para responder.

O principal desses desafios foi consubstanciado nas tentativas dos filhos de Aristóbulo de retomarem o controlo de Jerusalém. A mobilização de Hircano quando tais ameaças dos seus sobrinhos surgiram não foi fácil: Hircano foi tão fraco na sua reação à tomada de importantes fortalezas a leste de Jerusalém por um dos seus sobrinhos em 57, que o governador romano da Síria, que tinha sido obrigado a reprimir pessoalmente a insurreição, retirou‐lhe temporariamente o seu poder secular, confinando‐o ao seu papel religioso de sumo sacerdote e colocando o país sob a administração de cinco conselhos aristocráticos diferentes. Antípatro deve ter encarado este acontecimento com consternação, pois parecia privá‐lo do papel político que ele tornara seu. Herodes, com dezasseis anos de idade, viu as suas próprias perspetivas de progresso político diminuírem antes de terem sequer começado.

Antípatro não esmoreceu. Privado de um patrono, a solução para a sua situação pessoal foi tornar‐se tão valioso para os Romanos como tinha sido para Hircano. Assim, quando, dois anos depois, em 55, a Judeia foi novamente invadida pelo mesmo filho de Aristóbulo, Antípatro estava preparado para ajudar o governador da Síria, não só fornecendo tropas selecionadas para apoiarem as forças romanas num grande combate perto do monte Tabor, na Galileia, mas também negociando com alguns dos apoiantes judeus da insurreição para os convencer a mudar de lado antes da batalha. A lição de que os políticos romanos poderiam valorizar uma tal intervenção em seu favor não terá passado despercebida a Herodes, agora com dezoito anos, quando este se preparava para entrar na vida política.

Encontrar um patrono romano era, obviamente, o caminho a seguir para um jovem que procurava progredir, mas era difícil para um habitante de uma província, a viver em Jerusalém, em meados dos anos cinquenta antes da Era Comum, discernir onde residia, então, o poder em Roma – e, por conseguinte, que romano deveria cortejar. O controlo que Pompeu e Crasso exerciam sobre Roma tornara‐se mais complexo após a decisão que tomaram em 60, juntamente com Júlio César, um senador mais jovem que já tinha revelado uma ambição implacável, de deixarem temporariamente de lado a sua rivalidade em prol de uma aliança mutuamente benéfica que permitiria aos três monopolizarem o clientelismo político. A aliança destes generais ambiciosos era informal e intrinsecamente instável, mas os seus pares aristocratas romanos ressentiam‐se muito dela.

Negociar de modo a conseguir obter vantagens desta centralização de poder dentro de um triunvirato não era fácil até para os senadores romanos, mas era muito mais problemático para políticos da distante Judeia. Pompeu não regressara ao Mediterrâneo Oriental desde a sua campanha na década anterior e, de qualquer modo, não estava nas boas graças dos Judeus, que o culpavam pela profanação do Templo. César estava a ganhar fama com a conquista da distante Gália, na margem noroeste do mundo romano, mas nunca tinha visitado o Levante e os habitantes da província, como Antípatro e Herodes, não o conheciam. Crasso, o mais velho e mais rico dos três, poderia ter parecido uma proposta mais promissora quando partiu de Roma para a Síria, em 55, em busca de glória através de uma invasão do reino da Pártia, na fronteira oriental da esfera de influência romana. Porém, empenhado em angariar fundos para a enorme força de sete legiões necessária para a sua campanha, Crasso roubou o ouro e outros tesouros do Templo de Jerusalém que Pompeu deixara intactos, e os Judeus não lamentaram o desastre humilhante que terminou com a sua morte a 9 de junho de 53 numa batalha contra os Partas perto da cidade de Carras, um acontecimento que deixou a Pompeu e César o domínio do mundo romano.

Poucos anos depois da morte de Crasso, Pompeu também estava morto e César tornara‐se o maior patrono de todos. Como é que isto aconteceu e como é que as areias movediças do poder no seio da elite romana afetaram o jovem Herodes quando, com vinte e poucos anos, irrompeu na política da Judeia em 47, numa altura de crise, e quando, no espaço de poucos anos, se viu aclamado rei da Judeia?

2.

ULTRAPASSAR OS OBSTÁCULOS

A ascensão de Herodes à proeminência na Judeia no início dos anos quarenta antes da Era Comum pouco deveu às suas origens, para além da influência política de Antípatro na corte de Hircano. O pai de Herodes era um idumeu e a sua mãe uma árabe nabateia. O direito de uma pessoa de tal linhagem governar a Judeia foi especificamente questionado pelo asmoneu Antígono no final de 39, quando disse aos Romanos que «seria contrário à sua própria noção de direito se dessem o governo a Herodes, que era um plebeu e um idumeu, ou seja, um meio‐judeu, quando deveriam oferecê‐la aos que eram da família (real), como era seu costume».

A afirmação de Antígono de que os Idumeus eram apenas meio‐judeus era polémica, pois os Romanos a quem se dirigia tinham sido acusados de o privar do seu reino em favor de Herodes, de acordo com a decisão do Senado no ano anterior – mas o insulto pode ter sido motivado principalmente por um jogo de palavras em grego: idumaios (idumeu) soa muito semelhante a hemiioudaios (meio‐judeu). Mas é correto afirmar que Herodes era idumeu: foi como sendo um idumeu que Josefo apresentou pela primeira vez o pai de Herodes, Antípatro, na sua narrativa da história judaica, na sua obra Antiguidades. O relato de Josefo sobre os acontecimentos de que foi contemporâneo ao longo da vida, incluindo a grande guerra contra Roma na qual se envolveu nos anos sessenta da Era Comum, tornou claro que os Idumeus mantiveram a perceção de que a sua comunidade era separada da Judeia durante, pelo menos, um século após a morte de Herodes.

A Idumeia era uma região montanhosa a sul da Judeia, cuja fronteira oriental descia rapidamente abaixo do nível do mar, passando por um território árido até ao mar Morto. Não era, em si, um local desagradável para se viver. Tal como na Judeia, algumas áreas eram adequadas para a produção de cereais e azeitonas, mas a terra também oferecia vinhas para a produção de vinho e pastagens para cabras e ovelhas, enquanto a antiga cidade de Hébron era famosa pela produção de cerâmica e vidro. O avô de Herodes, Antipas, deve ter tido acesso a recursos consideráveis, pois diz‐se que «fez amizade com os Árabes, Gazeus e Ascalonitas das vizinhanças e conquistou‐os totalmente com grandes presentes». Diz‐se também que o pai de Herodes já tinha acumulado uma grande fortuna na altura em que interveio pela primeira vez na política da Judeia em nome de Hircano, em 67 a.C. Não se sabe se a fortuna da família provinha da propriedade de terras, da indústria ou da rota comercial de longa distância que atravessava o território idumeu, desde a cidade costeira de Ascalão até Petra, na Transjordânia, mas é evidente que pertenciam à rica elite governante da região muito antes de se envolverem na política da Judeia.

Por detrás da atitude defensiva de Herodes em relação às suas origens idumeias não estava tanto a história da sua família em particular, mas mais a complexa rede das relações entre a Idumeia e a Judeia nas gerações anteriores. Descendentes das tribos nómadas conhecidas na Bíblia hebraica como Edom, que se tinham estabelecido a leste do Jordão e a sul do mar Morto muitos séculos antes do nascimento de Herodes, os Idumeus deslocaram‐se gradualmente para oeste, para territórios mais férteis. No século II a.C., encontravam‐se a ocupar partes do sul da Judeia e do norte do Negev, agrupados em torno da cidade de Maressa.

Quando o seu território foi conquistado pelos Asmoneus, em finais do século, a maioria da população converteu‐se ao judaísmo. O carácter voluntário dessa conversão já era objeto de controvérsia no tempo de Herodes. O historiador grego Estrabão, contemporâneo de Herodes, escreveu que «os Idumeus são Nabateus, mas, devido a uma sedição, foram banidos do [seu território], juntaram‐se aos habitantes da Judeia e partilharam os mesmos costumes com eles». Josefo acreditava num relato diferente, provavelmente derivado de Nicolau, que afirmava que os Idumeus se tinham convertido sob coação.

Durante a vida de Herodes, alguns Idumeus não convertidos continuavam a adorar o deus Cós. Pelo menos um dos amigos idumeus de Herodes – o seu cunhado Costóbaro, cuja filiação religiosa (ou a dos pais) está refletida no seu nome – não achava correto que os Idumeus adotassem os costumes dos habitantes da Judeia. Mas não há dúvida de que a maioria da população adotara os costumes judaicos. Dois séculos após a sua conversão, quando multidões de Idumeus defenderam Jerusalém contra Roma durante a revolta de 66‐70 d.C., referiram‐se à cidade como a sua metrópole. Os Idumeus também se proclamavam orgulhosamente Judeus. É provável que a maioria dos Idumeus durante a infância de Herodes considerasse Jerusalém a sua capital, pois não há provas de que os Romanos alguma vez tenham considerado a possibilidade de separar a região da Judeia.

Assim, não foi por acaso que o pai de Herodes escolheu dar nomes judaicos a dois dos seus filhos, José e Salomé. Mais tarde, Herodes demonstrou o seu apego à terra dos seus antepassados, construindo o grande recinto de blocos de silhar perfeitamente assentes, ainda bem preservados, que encerrava a caverna de Macpela, em Hébron, bem como os cenotáfios de mármore requintadamente trabalhados de Abraão e Sara e dos seus descendentes.

Livro: "Herodes, o Grande - Rei Judeu num Mundo Romano"

Autor: Martin Goodman

Editora: Bertrand Editora

Data de Lançamento: 20 de fevereiro de 2025

Preço: € 17,70

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Mais difícil de definir é a atitude de Herodes em relação à família da mãe. Josefo diz que a sua mãe, Cipros, provinha de uma família ilustre da Arábia, que, de acordo com o contexto, tratar‐se‐ia de Nabateia, o reino a leste da Idumeia. No seu relato na obra Antiguidades sobre o início da carreira política de Antípatro, Josefo deu a entender que Antípatro tinha encontrado a sua esposa árabe na Idumeia; isto não é impossível, mas o relato paralelo de Josefo na Guerra Judaica afirmava especificamente que o casamento do seu filho com Cipros tinha granjeado a Antipas a amizade do rei da Arábia. Independentemente do local em que Cipros conheceu o seu futuro esposo, podemos supor que ela estaria provavelmente ligada à família real nabateia.

Os Nabateus, tal como os Idumeus, tinham uma origem semi‐nómada, mas, no século I a.C., instalaram‐se na Pereia, uma área com centros urbanos como Canatha e Petra e técnicas agrícolas avançadas que lhes permitiam cultivar terrenos marginais através da conservação cuidadosa das escassas reservas de água. A sua prosperidade, que aumentou acentuadamente durante a vida de Herodes e atingiu o auge na geração que se seguiu à sua morte, baseava‐se no controlo das rotas comerciais internacionais que passavam por Petra, ou nas suas proximidades, e tirou partido da crescente unificação do Levante e do Mediterrâneo sob a hegemonia romana. A sua língua falada era provavelmente uma forma primitiva do árabe, mas as suas inscrições eram escritas numa forma distintiva da língua internacional do comércio, o aramaico. Herodes terá comunicado com os seus parentes nabateus quer em aramaico quer em grego.

Vimos que a ligação familiar à Nabateia era suficientemente forte para que Antípatro enviasse os seus filhos pequenos, incluindo Herodes, para Petra, a capital do rei nabateu, para ficarem em segurança, presumivelmente com a família da mãe, quando embarcou com o rei nabateu Aretas, em 67, na sua campanha para expulsar Aristóbulo de Jerusalém e instalar o seu patrono Hircano. É difícil avaliar a impressão que esta visita terá causado em Herodes, na altura uma criança com apenas seis anos, em condições que devem ter sido traumáticas, mas as suas frequentes intervenções nos assuntos nabateus mais tarde ao longo da vida, depois de ter chegado ao poder na Judeia, sugerem que ele sentia que tinha um interesse pessoal, através da mãe, na sociedade nabateia.

Por outro lado, nenhuma fonte antiga sugere que Herodes alguma vez se tenha apresentado como nabateu, e nada nos é dito sobre o contacto com os parentes do lado materno depois da infância. Cipros assimilou‐se ao meio social do marido e concentrou as suas ambições na promoção dos interesses dos filhos.

O contraste entre o estatuto de forasteiros da sua família na Judeia e a vida que Herodes viria a ter como rei foi notado na Antiguidade, mas não podemos imaginar que ele tivesse começado a vida no fundo da escala social – como vimos, tanto o avô como o pai ocuparam posições de poder na corte asmoneia. Apesar disso, as origens de Herodes não lhe davam qualquer razão para antecipar a possibilidade de governar a Judeia por direito próprio. Uma historieta sobre Herodes em criança, conservada por Josefo (presumivelmente, a ser genuína, estimada, como todas as histórias deste género, porque, em retrospetiva, veio a revelar‐se verdadeira), dizia respeito a uma declaração profética de um homem chamado Menaém, que afirmava conhecer o futuro por inspiração divina. Ao passar por Herodes, a caminho da casa do seu professor, Menaém cumprimentou‐o como «rei dos Judeus».

Quando Herodes, que pensava estar a ser ridicularizado, lembrou a Menaém que era apenas um cidadão comum, Menaém riu‐se suavemente e deu‐lhe uma palmadinha no traseiro, dizendo que ele seria, de facto, rei e governaria feliz, embora o seu reinado se tornasse malévolo quando ele esquecesse a piedade e a justiça. Diz‐se que, na altura, Herodes não prestou atenção a tais previsões. A ideia de que poderia vir a ser rei estava para lá da sua imaginação.

O professor a cuja casa Herodes se dirigia ensinava a ler, a escrever e a fazer contas (se o rapaz tivesse entre sete e onze anos), ou gramática (se tivesse entre onze e quinze anos). Tanto quanto se sabe, Herodes passou os seus tempos de escola inteiramente em Jerusalém. Até meados da adolescência, terá recebido uma educação grega de elite na cidade, onde o grego era utilizado juntamente com o aramaico e o hebraico. Sabe‐se que, mais tarde, procurou instrução em retórica, história e filosofia, mas é pouco provável que tenha tido a oportunidade de progredir para além da educação secundária na sua juventude – Nicolau escreveu que Herodes começou a estudar estas disciplinas nos intervalos de uma carreira pública, numa altura em que já era uma figura de autoridade.

Herodes falaria aramaico e, possivelmente, também saberia um pouco de hebraico. Não sabemos se adquiriu conhecimentos profundos sobre a tradição literária judaica contida na Bíblia, mas deverá ter adquirido algum conhecimento da história básica do povo judeu e do culto de adoração realizado pelos sacerdotes no Templo. No entanto, nada sugere que tenha tido qualquer desejo de se tornar um especialista nessas questões: não há qualquer sinal de que estivesse interessado nas filosofias dos entusiastas religiosos, como os fariseus, cujas ideias tinham sido influentes junto de alguns governantes asmoneus, incluindo Shelomtzion. Quando, mais tarde, se voltou para o estudo da história, terá sido, presumivelmente, para a história grega, uma vez que Nicolau lhe havia dito que o assunto era «próprio para um estadista e útil também para um rei».

Jerusalém não era um lugar excitante para um adolescente se divertir quando Herodes estava em fase de crescimento. Não havia espetáculos de teatro ou desportivos para o público apreciar – estas foram inovações introduzidas mais tarde pelo próprio Herodes. Porém, seguramente, os jovens conviviam entre si; deve ter sido nessa altura que Herodes ganhou o gosto pela caça e pela arte equestre, nas quais se distinguia. O exercício físico estava intimamente relacionado com o treino militar, e Herodes orgulhava‐se da sua perícia no manejo da lança e do arco. Josefo referiu, várias vezes, a sua preocupação, nos anos mais avançados, com a aparência física, o orgulho que tinha no seu físico atlético e no seu cabelo, que era cuidadosamente arranjado quando tinha vinte e poucos anos e discretamente pintado depois dos sessenta. Mas não podemos saber se estes cuidados refletiam a sua verdadeira atitude em relação a estes assuntos ou uma atenção engenhosa para com a sua imagem pública. A dada altura, pode ter‐se apaixonado por um rapaz chamado Hípico, sobre o qual nada mais se sabe. Ele homenageou Hípico, muito mais tarde, erguendo uma magnífica torre na muralha do Palácio de Jerusalém em nome do amigo, «perdido na guerra depois de uma corajosa luta». As paixões homossexuais entre jovens, admiradas nos círculos sociais gregos, seriam vistas com desconfiança por muitos judeus devotos, mas a designação da torre é, pelo menos, uma prova de que Herodes não tinha pudor quanto à profundidade da sua amizade.

A educação mais importante de Herodes durante a sua adolescência veio do pai: aprendeu muito sobre política prática enquanto Antípatro conduzia Hircano através das tempestades que assolaram a Judeia durante os anos cinquenta. A família era muito unida e Herodes partilhou esta educação política com o seu irmão mais velho, Fasel. As suas relações com Fasel e com os irmãos mais novos – dois irmãos, José e Feroras, e uma irmã, Salomé – viriam a ser importantes ao longo da sua vida. Tal como foi a família mais alargada do pai, que, nalguns casos, confirmou as suas amizades através de casamentos: Salomé casou‐se ainda jovem com o seu tio José, irmão de Antípatro.

O próprio Herodes viria a casar‐se no seio da família, primeiro com uma sobrinha (filha do seu irmão) e depois com uma prima em primeiro grau (filha do irmão do seu pai), mas o seu primeiro casamento, quando tinha vinte e poucos anos, foi com Dóris, uma aristocrata natural de Jerusalém. O casamento, o primeiro que se sabe ter sido contraído por alguém da família de Herodes com um membro da elite judaica, foi presumivelmente organizado por Antípatro em nome do filho. O casamento sugere que Herodes já estava a ser preparado pelo pai para desempenhar um papel proeminente no Estado da Judeia. No entanto, o primeiro impulso para a carreira pública de Herodes não veio destas ligações à aristocracia de Jerusalém, mas, sim, de acontecimentos decisivos em Roma, onde as tensões inerentes ao etos competitivo da política senatorial explodiram numa guerra civil.

Vimos que a morte de Crasso, em 53, permitiu a Pompeu e César dominarem o Estado romano, mas estes sempre haviam sido aliados difíceis e, em 49, as suas suspeitas mútuas deram origem a um conflito civil que viria a prolongar‐se por muito tempo após as mortes dos dois homens. Durante quase duas décadas, o mundo romano foi envolvido num conflito que implicou a mobilização de mais tropas nas margens do Mediterrâneo do que em qualquer outra altura até às guerras de Napoleão, no início do século XIX da Era Comum. A militarização em massa sugou enormes recursos de mão de obra e riqueza a todas as regiões sob domínio romano, impulsionada não pela ideologia ou pelo patriotismo, mas, sim, pelas ambições competitivas de aristocratas romanos individuais.

Estas guerras civis não eram inevitáveis: políticos que anterior‐ mente utilizaram tropas destacadas para as conquistas no estrangeiro, com o intuito de marcharem sobre Roma e imporem grandes reformas ao Estado, confinaram‐se posteriormente à vida privada. Mas quando César, depois de quase uma década de campanhas vitoriosas na Gália – que tiveram a vantagem de acrescentar grandes somas aos seus cofres privados –, atravessou o rio Rubicão, no norte de Itália, e marchou sobre Roma com as suas legiões, procurava um regime monárquico. Parando apenas brevemente em Roma para tirar dinheiro do tesouro do Estado, empreendeu campanhas contra Pompeu e os seus apoiantes em Espanha e na Grécia e, em agosto de 48 a.C., obteve uma vitória decisiva após uma batalha campal em Farsália, na Tessália. Pompeu fugiu para o Egito, onde foi apunhalado até à morte em 28 de setembro. O contemporâneo autor judeu dos Salmos de Salomão festejou o óbito do pecador arrogante que, quinze anos antes, tinha lançado aríetes contra as paredes do Templo de Jerusalém. O autor, apelando a Deus por vingança, relatou: «Não esperei muito tempo até Deus me revelar a sua insolência trespassada nas montanhas do Egito, mais desprezada do que a mais insignificante coisa da terra e do mar. O seu corpo foi levado pelas ondas com muita vergonha, e não houve ninguém para (o) enterrar.»

Antípatro e Hircano não perderam tempo a demonstrar o seu apoio ao vencedor. Pouco depois da morte de Pompeu, Antípatro convenceu os judeus de Onias, um distrito no norte do Egito, a passarem para o lado de César na sua campanha contra o rei Ptolomeu. Em troca, César permitiu que Hircano mantivesse a sua posição de sumo sacerdote em Jerusalém e recompensou Antípatro com a posição de procurador da Judeia. Não é claro de que forma a procuradoria, um papel administrativo como agente de Roma com particular responsabilidade pelas questões financeiras, se relacionava com o poder que continuava a ser exercido por Hircano, mas o cargo era evidentemente relevante: César enviou ordens a Roma para que as honras concedidas a Antípatro fossem gravadas no Capitólio «como um memorial da sua própria justiça e da valentia de Antípatro». A nova nomeação permitiu a Antípatro lançar os seus dois filhos mais velhos na vida pública. Fasel tornou‐se governador de Jerusalém. Herodes recebeu o governo da Galileia.

Foi precisamente nessa altura, em que Herodes terá entrado, pela primeira vez, na vida pública, que o seu pai recebeu a cidadania romana das mãos de Júlio César. A concessão da cidadania foi mencionada por Josefo de passagem, como uma recompensa de César a Antípatro pelos seus esforços militares em nome de César no delta do Egito. É dito que essa concessão terá sido acompanhada por uma isenção de impostos. As concessões individuais de cidadania pelos magistrados, em nome do Estado romano, a habitantes das províncias considerados dignos desse privilégio, eram muito raras nas províncias orientais em meados do século I. Funcionavam como um meio de reconhecimento pessoal pelos favores recebidos. Essencialmente simbólicas, na prática, uma vez que os novos cidadãos viviam demasiado longe de Roma para poderem participar nas eleições e assembleias públicas suscetíveis de influenciar o curso da política romana, essas concessões distinguiam uma nova elite provincial.

Assim, desde o início, a carreira pública de Herodes foi um produto do clientelismo romano. Nos sete anos que decorreram entre a aquisição da cidadania romana pelo seu pai e a sua própria nomeação como rei da Judeia, a carreira de Herodes foi dedicada a conquistar a confiança pessoal e a amizade dos políticos romanos numa altura de instabilidade sem precedentes. O sucesso exigia uma demonstração de competência e charme. Além de também poder exigir subornos flagrantes e uma predisposição sem escrúpulos para mudar de lado.

Estas qualidades foram utilizadas com grande eficácia por Antípatro, que tinha apoiado o lado perdedor na guerra civil entre Pompeu e César. A afirmação súbita de que se tornara um fervoroso apoiante de César, demonstrando a sua nova lealdade após a derrota de Pompeu em Farsália, dedicando‐se energicamente à causa de César, foi, como seria de esperar, contestada pelos seus opositores políticos da família governante asmoneia, incluindo Antígono, filho do irmão de Hircano, Aristóbulo. Conta‐se que Antígono acusou Antípatro e Hircano de terem ajudado César no Egito apenas por receio de serem prejudicados pela sua anterior amizade com Pompeu. A acusação podia ser plenamente justificada, mas Antípatro rebateu‐a com sucesso quando foi convocado por César e se despiu para exibir as cicatrizes das feridas que tinha sofrido a lutar pelo seu novo amigo.

Herodes, empenhado em submeter Galileia a um controlo firme, era ainda demasiado jovem para ser convidado a encontrar‐se com o grande Júlio César, mas a sua enérgica ação contra os bandidos galileus que atacavam as fronteiras vizinhas da Síria chamou a atenção do governador da Síria, Sexto César, um parente distante de Júlio. A proteção de Sexto revelou‐se crucial quando as ações de Herodes na Galileia quase puseram fim à sua carreira pública praticamente antes de esta ter começado.

Herodes tinha vinte e poucos anos quando foi nomeado para governar a Galileia. No tempo de Herodes, esta não era uma idade invulgar para um político ambicioso assumir tais responsabilidades militares e administrativas, mas a sua juventude foi explicitamente mencionada por Josefo em ambas as suas narrativas, e a inexperiência adjacente a essa juventude pode constituir a explicação mais plausível para o facto de ter ordenado a execução sumária de alguns criminosos que capturou em vez de os levar a tribunal para serem julgados. Esta crueldade enérgica era popular entre a população local estabelecida, mas houve um clamor de indignação por parte das mães daqueles que mandara executar sem seguir as vias legais. Convocado por Hircano para ser julgado em Jerusalém por acusações de homicídio apresentadas por judeus importantes que se ressentiam da influência de Antípatro e dos seus filhos sobre Hircano e o seu regime, Herodes decidiu responder com uma provocação. Apresentou‐se perante o tribunal do sumo sacerdote com um ar surpreendentemente impenitente. Renunciando ao traje negro de luto que seria expectável num réu, apareceu, pelo contrário, vestido de roxo e com o cabelo cuidadosamente penteado. Chegou ominosamente acompanhado por um destacamento militar. O governador romano da Síria, Sexto, ordenou a Hircano que absolvesse Herodes da acusação, ameaçando‐o com consequências terríveis se a sua vontade fosse ignorada. O tribunal sentiu‐se demasiado intimidado para emitir uma condenação e o julgamento foi suspenso.

A provocação revelara‐se manifestamente bem sucedida. Deixando Jerusalém para se juntar a Sexto em Damasco, Herodes foi recompensado pela sua lealdade à causa de César com a adição da Samaria e da Celessíria (um enclave da Síria a norte do monte Hérmon) aos territórios sob a sua administração. A sua posição na fação de César estava evidentemente assegurada. Dali em diante, ele sabia que não teria de depender de Hircano, desde que pudesse apelar diretamente a um patrono romano. Era evidente que o ver‐ dadeiro poder residia na autoridade e no poderio militar do governador romano da Síria. Assim, quando os opositores de Herodes em Jerusalém convenceram Hircano a emitir uma segunda convo‐ cação para o julgamento, Herodes sentiu‐se suficientemente independente do seu patrono asmoneu para marchar sobre Jerusalém com um exército, ameaçando vingar‐se do insulto. Impedido de cometer atos de violência pelas intervenções de Antípatro e Fasel, regressou ao seu comando na Galileia sem atacar, mas certo de que tinha demonstrado que o seu poder não seria restringido pela jurisdição do tribunal judaico.

Diz‐se que Sexto concedeu a Herodes o seu domínio sobre a Samaria e a Celessíria em troca de um suborno, mas Herodes respondeu com um firme apoio à fação cesariana: quando Sexto foi assassinado por Cecílio Basso, um dos simpatizantes de Pompeu, e os generais de César lançaram uma ofensiva contra Basso no outono de 45, Herodes e Fasel foram enviados por Antípatro para juntarem as suas forças às dos cesarianos. A devoção à causa de César pode ter sido uma mera prudência enquanto César estava vivo, mas tornou‐se problemática quando, a 15 de março de 44, Júlio César foi também assassinado e a guerra civil que eclodiu após o seu assassinato trouxe para a Síria um dos líderes dos autodenominados libertadores que o tinham esfaqueado até à morte, Caio Cássio Longino (conhecido para a posteridade como Cássio).

O assassinato fora a evidência do receio da ambição de César, que subiu em flecha a partir de 46 perante a realidade de um poder incontestado. Em 44, foi um dos dois cônsules nomeados todos os anos para governar Roma, mas isso não foi suficiente para satisfazer as suas aspirações. Já tinha sido eleito dictator vitalício, com um sacerdócio estabelecido em Roma para o venerar como um deus, e os rumores de que poderia vir a aceitar uma coroa real motivaram uma conspiração entre muitos dos senadores, que o apunhalaram até à morte no Senado. A conspiração foi liderada por Cássio e Marco Bruto, dois apoiantes de Pompeu contra César, a quem havia sido concedida clemência pelo homem que agora assassinavam.

A morte de César mergulhou o mundo mediterrânico no caos durante mais de uma década. Quando Bruto e Cássio proclamaram libertas, «liberdade», nas moedas que cunharam, tinham em mente um regresso à política tradicional de Roma, na qual senadores como eles gozavam de igualdade de oportunidades para procurar e conceder patrocínios à medida que subiam na hierarquia. Porém, enganaram‐se redondamente na prospeção do que julgavam ter conquistado. A ambição e a lealdade à memória de César por parte de Marco Lépido, tenente de César no seu papel de ditador, e de Marco António, que tinha sido seu colega cônsul durante esse ano, e sobretudo a determinação obstinada e implacável do jovem sobrinho‐neto e herdeiro de César, Marco Octávio, asseguraram que não haveria regresso ao velho sistema de competição aristocrática.

Octávio, adotado postumamente por César, gostava de ser tratado como Caesar Octavianus (daí «Octávio»). Em 31 a.C., ele iria alcançar um poder tão absoluto como César procurara e, a partir de 27, seria conhecido como o imperador Augusto. A sua ascensão ao poder absoluto não poderia ter sido antecipada por ninguém em março de 44: o futuro imperador estava a servir como oficial subalterno numa operação militar pouco importante na costa oriental do Adriático quando recebeu, juntamente com a notícia chocante da morte de César, a informação de que tinha sido adotado pelo seu tio‐avô no seu testamento e nomeado herdeiro principal da enorme fortuna de César.

Octávio podia certamente esperar que a sua riqueza e o nome de César lhe abrissem uma carreira brilhante na política romana, mas, sem qualquer experiência senatorial ou militar, normalmente seriam necessários alguns anos até começar a deixar a sua marca. Ele não fazia tenções de esperar. Já sob o nome César, reuniu duas legiões enquanto atravessava a Itália a caminho de Roma, recrutando alguns dos veteranos de César com a promessa de lhes pagar com o dinheiro da sua herança. A sua tentativa de avançar não fora constrangida pela lealdade à memória de César. As suas tropas eram igualmente interesseiras. Nos meses que se seguiram, utilizou estas forças primeiro para ganhar o estatuto de magistrado romano, lutando contra Marco António, amigo de César, apoiando os assas‐ sinos de César, Bruto e Cássio; depois, quando os dois cônsules do ano de 43 foram mortos na campanha, usou‐as para marchar sobre Roma e exigir o consulado para si próprio; e, finalmente, em novembro de 43, trocou de lado e aceitou, como cônsul, cooperar com Marco António e Lépido num triunvirato a que o povo romano concedeu poder absoluto «para organizarem o Estado». A sua primeira tarefa foi vingar a morte de César, marchando contra os libertadores, Bruto e Cássio.

Os dois assassinos já estavam a preparar as suas defesas no Mediterrâneo Oriental e, dali a pouco tempo, estes acontecimentos longínquos teriam um impacto direto na Judeia, pois Cássio começara a angariar dinheiro para reforçar as suas forças contra o ataque iminente. Antípatro, Fasel e Herodes tinham agora de demonstrar urgentemente para que lado pendia a sua lealdade. Cássio conhecia bem a Síria; ocupara uma posição administrativa sénior na província quando Crasso embarcara lá para a sua malfadada campanha em Parta em 53, e governara o território de 53 a 51 depois de Crasso ter sido morto. Antípatro mantivera contacto com ele nessa altura, conseguindo convencê‐lo, por volta de 52, a invadir a Judeia para reprimir os apoiantes de Aristóbulo que ameaçavam a segurança do mandato de Hircano no sumo sacerdócio. Mas não há qualquer relato de que os dois homens tenham estabelecido um laço de amizade: quando os Judeus foram instruídos por Cássio, em 43, para reunirem a enorme soma de setecentos talentos para pagar as tropas que ele estava a reunir, Antípatro comprometeu‐se a recolher o dinheiro apenas por medo, segundo Josefo, distribuindo a tarefa pelos seus colaboradores. (É claro que a fiabilidade desta explicação para a cooperação de Antípatro com Cássio seja questionável, uma vez que só surgiu depois de Cássio ter morrido.)

Entre os colaboradores a quem Antípatro distribuiu a tarefa, contavam‐se os seus dois filhos. A Herodes foi atribuída a responsabilidade de extrair um sétimo da soma total dos habitantes da Galileia. A crise representava uma oportunidade: Cássio era um novo romano para impressionar. Tendo sido o primeiro a entregar a sua quota parte, Herodes estabeleceu‐se como um amigo próximo e, quando Marco António e Octávio declararam guerra a Cássio e Bruto, como seria de esperar, Herodes foi recompensado por Cássio com uma nova nomeação para o cargo de governador da Celessíria, que ocupara sob o comando de Sexto César. Cássio também forneceu a Herodes um exército, tanto de cavalaria como de infantaria, presumivelmente para manter a ordem numa região notoriamente desordeira. Herodes já tinha demonstrado a sua competência militar na supressão de bandidos na Galileia. Houve até um rumor de que Cássio teria prometido nomear Herodes rei da Judeia depois da guerra que «tinha acabado de começar então com António e o jovem César», embora a promessa não tenha dado em nada, e não é claro por que razão Cássio se tereria sujeitado a problemas ao promover Herodes acima do seu pai e do seu irmão mais velho, que também lutavam ativamente em seu nome.

Fora uma ascensão meteórica à proeminência política, mas tudo o que Herodes conseguira nos primeiros cinco anos da sua carreira pública foi lançado no caos quando o pai, Antípatro, foi assassinado no verão de 43 por Malico, um político rival do séquito de Hircano em Jerusalém. Num jantar oferecido por Hircano, no qual ambos eram convidados, Malico subornou o servo que servia vinho para pôr veneno no copo de Antípatro. Antípatro morreu pouco depois de deixar o banquete.

Os motivos de Malico para matar Antípatro são obscuros – diz‐se que ele tinha amplo apoio popular na Judeia e podia ter desejado, em última análise, suplantar Hircano e tomar para si o trono da Judeia –, mas não há nada de obscuro no seu destino às mãos de Herodes. Com a ajuda de Cássio, Herodes vingou‐se rapi‐ damente. Segundo um relato, Malico agira por preocupação com o crescente poder de Herodes, bem como com o de Antípatro, e Herodes pode ter sido incentivado por se ter sentido culpado, suspeitando de que a morte do seu pai poderia ter sido causada, em certa medida, pela sua própria ambição. Fingiu perante Malico, que simulava lamentar a morte de Antípatro, fazendo‐o crer que desejava ser seu amigo, e convidou‐o para um jantar na cidade de Tiro. Quando Malico aceitou o convite, foi intercetado à beira‐mar, a caminho do jantar, por tribunos militares (oficiais subalternos do exército romano), que tinham sido enviados por Cássio a pedido de Herodes, e foi esfaqueado até à morte.