Introdução Geral

A História Global da Literatura Portuguesa configura-se como uma abordagem temática enquadrada no horizonte epistemológico e hermenêutico da história global hodiernamente emergente no panorama científico internacional. O campo da literatura é um locus privilegiado para observarmos a relação entre o local e o global e o global e o local e compreendermos as suas significações complexas.

Os territórios da literatura configuram-se como espaços abertos, por excelência, de interconexões, de interinfluências, de interseções, de cruzamentos, de interfecundações, quer de modelos, de géneros, de correntes e de disciplinas de saber, quer ainda de mundividências. Se a literatura é a «antropologia das antropologias» (CRISTÓVÃO, 2010, 17), em que o ser humano se retrata na diversidade, complexidade e profundidade das suas aspirações e manifestações, o domínio da criação literária é o campo poroso pelo qual o mundo todo tem muitas vezes passado ou pelo qual pode vir a passar. Por estas razões, a literatura é um território global e/ou suscetível de ser compreendido como fenómeno global. Neste sentido, é também objeto privilegiado de história global.

No quadro da emergência de uma nova historiografia que assume o «global» como chave hermenêutica para revisitar e repensar a história dos vários campos da produção humana, a história da literatura beneficia deste ampliar de perspetivas, que implica superar um método de conhecimento «nacionalista» e fechado através de um outro que tenha por foco o global, ou seja, o desiderato de o situar, em termos de compreensão do fenómeno literário produzido no chamado âmbito do território geográfico e cultural português, numa plataforma de interseção, de cruzamentos de movimentos que têm modelado a forma de fazer literatura em língua portuguesa. Como considera Chloé Maurel (2014, 111), «a história global implica a ideia de que as trocas, as influências entre sociedades e culturas, não se fazem somente em sentido único, mas muitas vezes em duplo sentido, e que há circulações culturais, circulações de saberes, que se estabelecem entre espaços dominados e espaços dominantes».

No nosso caso, o espaço geográfico e cultural onde se elaborou secularmente a chamada literatura portuguesa deixa, no prisma da história global, de ser estudado em circuito fechado ou mesmo comparado para passar a ser tomado como espaço de circulação global, de chegadas e partidas, por onde o mundo passou e do qual se partiu para o mundo. A observação analítica deste grande ângulo, tendo como ponto de observação crítica o longo movimento de idas e vindas de que a literatura se torna território de expressão, permitir-nos-á perceber a composição de literaturas nos seus vários géneros e diálogos com originalidades híbridas e compósitas, «linhagens estéticas» (ELIOT, 1992), em que o local recebe do global e o global também se enriquece com o local. De algum modo, abriremos caminhos para a compreensão da literatura portuguesa como uma identidade «glocal», ligada à «máquina» circulante do mundo. Mesmo em tempos de maior isolamento, houve fronteiras porosas que garantiram alguma circulação e um certo arejamento, mesmo que o resultado tivesse sido o exercício de negação do global para enfatizar defensivamente a perspetiva umbilical autorreferenciada da elaboração literária.

Maria Francisca Gama junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 24 de outubro, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz o seu mais recente livro "A Cicatriz", editado pela Suma de Letras, chancela da Penguin Random House.

Para se inscrever basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro vai receber, através do WhatsApp — no nosso canal —, todas as instruções para se juntar à conversa. Se ainda não aderiu, pode fazê-lo aqui. Quando entrar no canal, deve carregar em "seguir", no canto superior direito, e ativar as notificações (no ícone do sino).

"A Cicatriz" é o segundo livro de Maria Francisca Gama e vai já na 7.ª edição, com mais de 25 mil exemplares vendidos e um fenómeno nas redes sociais, em particular no TikTok.

Se as novas humanidades emergem defendendo a inter e a transdisciplinaridade, reagindo ao fragmentarismo do conhecimento especializado e respondendo à mudança na nossa perceção do real, informada e promotora da convergência de saberes, que aspira a uma compreensão totalizadora, integradora, marcada pelo conceito de «consiliência», de Edward Wilson (1998), na senda da «unidade do conhecimento», também uma história global da literatura de um dado país deve ser intrinsecamente interdisciplinar, interepocal e interespacial. A arrumação por idades, correntes e géneros é apenas instrumental para efeitos de facilitação do trabalho, mas essas fronteiras devem depois ser quebradas pela transversalidade das análises, que podem tornar-se, se os dados empíricos o permitirem, transepocais e transtemáticas. Segundo o Manuel d’Histoire Globale, «é errado, todavia, limitar a história global a uma história «totalizante». Pelo contrário, a sua riqueza e a sua especificidade residem principalmente na vontade de promover análises em diversos níveis, de mudar de perspetivas, de combinar diferentes escalas, desde as grandes às mais pequenas» (WILSON, 1998, 61; cf. INGLEBERT, 2018).

A História Global da Literatura Portuguesa não tem, pois, um escopo totalizante, mas possibilitante. Tem como fito primordial abrir caminhos novos para explorar uma imensidade de análises que permitirão complexificar o conhecimento e apreender criticamente, de forma mais profunda, a riqueza do campo literário como área por excelência da criação humana e a mais relevadora das múltiplas dimensões da sua condição.

É justamente pelo carácter mais possibilitante e menos totalizante desta História Global da Literatura Portuguesa que pensamos na aldeia global enquanto axis mundi. As suas cores misturam-se na urdidura do mosaico contínuo que é o universal. As fronteiras foram abolidas, e um amplexo fraterno repensa o saber, que cada vez mais se escusa a uma submissão compartimental, tomando veredas dialógicas que reconverte em pontes. Pensar no efetivo e mais que visível diálogo entre as literaturas mundiais é também evocar um longo trajeto preceituado por Piaget em 1970 (cf. PIAGET, 1996), de que igualmente dá conta o modelo transdisciplinar de Jantsch e Bianchetti (2008), e que faz refletir na necessária interação literatura-sociedade-outras artes. Através dele se observa a progressiva união entre as áreas do saber que impõem uma mudança de paradigma.Trata-se de uma mutação epistemológica que gere as suas relações alcançando o seu nivelamento numa democracia cognitiva, numa nova forma de repensar o mundo que, segundo Edgar Morin (2008, 15), pretende «recompor» contrariando a decomposição habitual de um pensamento anacrónico. É, pois, impensável perspetivar uma história da literatura despreocupada de outras estórias e de outras literaturas, outrossim pensar o diálogo viabilizador de uma abolição de fronteiras, uma etapa superior de integração, numa indagação do sentido da vida através de reciprocidades que é objeto de debate desde Aristóteles, Leonardo da Vinci, Goethe ou Victor Hugo, entre outros, e se tornou acutilante no século XX, sobretudo depois da publicação de As Duas Culturas (1959), de Charles Snow. Outros pronunciamentos houve, como os de John Brockman, Lévy-Leblond, Aldous Huxley, Stillman Drake ou o brasileiro Mário Schenberg.

De facto, a sustentabilidade da literatura cria-se em diferentes plateaux atinentes a uma região contínua que se movimenta sobre si própria, evitando qualquer orientação para um ponto culminante que a finalize ou emoldure. Microfendas estabelecem a comunicação entre esses plateaux de convergências e (in)dependências, em jeito rizomático, sendo que linhas e conceitos criam conexões que impelem a multiplicidades. Cada literatura, respeitando as suas idiossincrasias, e sem compromissos, comunica com todas as outras e com os respetivos contextos. Aqui não há começos nem conclusões, há a vida no entreser e no entrelugar. Há articulação, segmentaridade, estrato e desestratificação, territorialidade e desterritorialização, linhas de fuga, pois «A questão é produzir inconsciente e, com ele, novos enunciados, outros desejos: o rizoma é esta produção de inconsciente» (DELEUZE e GUATTARI, 1999, 28). Uma História Global da Literatura configura um engenho mensurador da relação literária não só com a máquina da abstração que a arrasta, como também com forças «que desenvolvem uma subjetividade processual, autofundadora de suas próprias coordenadas, autoconsistencial» (GUATTARI, 1993, 179).

Deleuze e Guattari inspiram-se na botânica, chamando às ciências humanas a noção de «rizoma»; contrariando a árvore de Descartes, cavam um pouco de terra, num modelo de contraposição ético-estético-político que procura linhas e não formas. O rizoma foge, eclipsa-se, confunde-se, destrói, corta caminhos, diz não às formas fechadas e às ligações definitivas. Enformam-no tão-só linhas de intensidade – a intensidade da vida opositora do pesadelo da linearidade. Também o mapeamento de uma História Global da Literatura se faz e desfaz em múltiplas direções, procurando as microfendas por onde possa despontar qual «riacho sem início nem fim, que rói as suas duas margens e adquire velocidade no meio» (DELEUZE e GUATTARI, 1999, 37), e, pospondo cartesianismos, cria novos sentidos em disseminadas microconexões. Cadeias semióticas estabelecem redes imagéticas evocadoras de signos de outras linguagens, de outras artes, de outras literaturas, que se ligam à história do procedimento criativo.

A História Global da Literatura, recuperando a metáfora do riacho, não tem urgência na demarcação de limites, antes procura a reciprocidade entre a produção mundial, sentindo que a literatura se institui uma longa-metragem sem fim à vista e será elemento salvífico da deslembrança, ao reter «qualquer coisa do tempo onde não voltaremos a estar» (ERNAUX, 2020, 196). É a metáfora do riacho que perseguimos na estrutura desta obra, em que sete idades – Ressurgências, Humaniores litterae, Entre as sombras e o esplendor, O espírito das Luzes, Decadência e regeneração, Com golpe de asa e Primavera fulgurante – consagrarão em título imagens sugestivas do que nelas se destaca, torneando a classificação tradicional, mas nunca renegando as suas lições: são «focais» pregnantes da compreensão dos temas, dos autores e das obras, das suas linhas de sentido, destacando nas datas escolhidas um momento mais significativo da tensão entre as forças centrípeta e centrífuga da cultura refratada na letra. Contudo, um olhar ensaístico atravessa-as em busca de um antes e de um depois iluminadores da sua inteleção.

Livro: "História Global da Literatura Portuguesa"

Editora: Temas e Debates

Data de Lançamento: 17 de outubro de 2024

Preço: € 24,90

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

Como em outros volumes da série História Global, que a editora Temas e Debates tem vindo a publicar, todas da iniciativa e de coordenação geral de José Eduardo Franco, as idades, acima referidas, da literatura portuguesa foram divididas por cem autores, cada um criando um verbete da sua especialidade académica, tendo sempre em conta a desejada harmonia entre o local e o global (incidência da obra/autor no vasto território da literatura, traduções, comentários globais). Os quatro diretores (Annabela Rita, Isabel Ponce de Leão, José Eduardo Franco e Miguel Real) confiaram ao coordenador-geral de cada idade (Carlos F. Clamote Carreto, Isabel Morujão, Micaela Ramon, Maria Luísa Malato, Luísa Paolinelli, Dionísio Vila Maior e Maria do Carmo Cardoso Mendes) a elaboração de um plano de temas/autores de referência na sua idade, bem como a seleção dos respetivos especialistas que sobre eles criavam os verbetes. São, de facto, os responsáveis executivos perante os cem autores desta primeira História Global da Literatura Portuguesa.

Faltará algum tema, algum autor? Porventura sim, sem que tal ausência afete as linhas axiais interpretativas do período em que se insere. Perseguindo-se o necessário rigor científico, somos também conscientes da subjetividade inerente ao ser humano e às suas opções geradora da diversidade que promove o desejável debate.

Os verbetes criam novos rizomas interpretativos, novas visões epistemológicas de temas tradicionais e dos autores mais significativos da literatura portuguesa, que, porque incomodam, geram a polémica de onde nascerão novas luzes.

Por tudo, na senda de Conrad (2019), dando resposta à inevitável globalização adversa ao isolamento, conscientes das suas vantagens, mas também dos seus perigos, queremos a literatura portuguesa inserida no novo paradigma de uma cartografia globalizante.

BIBLIOGRAFIA

CONRAD, Sebastian, O Que É a História Global?, Lisboa, Edições 70, 2019.

CRISTÓVÃO, Fernando, «A literatura como medianeira entre a política e os valores», Letras com(n) Vida, n.o 1, 2010, pp. 15-24.

DELEUZE, Gilles, e GUATTARI, Félix, Mil Platôs, vol. 3, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1999.

ELIOT,T. S., Ensaios Escolhidos, Lisboa, Edições Cotovia, 1992.

ERNAUX, Annie, Os Anos, Lisboa, Livros do Brasil, 2020.

GUATTARI, Félix, «Da produção de subjetividade», in PARENTE, André (org.), Imagem Máquina:A Era dasTecnologias do Virtual, São Paulo, Editora 34, 1993, pp. 177-191.

INGLEBERT, Hervé, Histoire Universelle ou Histoire Globale?, Paris, PUF, 2018.

JANTSCH,Ari, e BIANCHETTI, Lucídio (org.), Interdisciplinaridade: Para além da Filosofia do Sujeito, Petrópolis, Vozes, 2008.

MAUREL, Chloé, Manuel d’Histoire Globale, Paris,Armand Colin, 2014.

MORIN, Edgar, A Cabeça bem Feita: Repensar a Reforma, Reformar o Pensamento, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2008.

PIAGET, Jean, As Formas Elementares da Dialética, São Paulo, Casa do Psicólogo, 1996.

WILSON, Edward, Consilience – The Unity of Knowledge, New York,Vintage Books/Random House, 1998.