“Temos de facto um filme novo nesta exposição que é um diálogo de Alexander Kluge com o filme ‘Os Canibais’, e que resultou de um desafio que lançámos ao autor. É apresentado pela primeira vez no âmbito da exposição, e é um filme integrado na coleção de Serralves”, explicou o diretor da Casa do Cinema Manoel de Oliveira, António Preto, numa visita dirigida à imprensa.
António Preto, que divide a curadoria desta exposição com Vicente Pauval, especialista na obra do cineasta alemão, explicou que os dois autores partilham pontos de vista comuns, entre elas a questão da "Política dos Sentimentos" que dá título à exposição de Kluge na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, de Serralves.
“É um aspeto que dialoga intimamente com aquilo que no caso do Manoel de Oliveira é o pensamento sobre os amores frustrados”, explicou, acrescentando que a adaptação para cinema do "Amor de Perdição", de Camilo Castelo, muito mal recebida à época, tinha uma intenção eminentemente política.
“Aquilo que Kluge faz no filme realizado especificamente para esta exposição, é colocar o filme ‘Os Canibais’ [de 1988] de Manoel de Oliveira em diálogo com uma série de outras óperas e referências culturais dos séculos XIX e XX, e também com o contexto da guerra e dos amputados de guerra, abrindo outras possibilidades de leitura do filme de Manoel de Oliveira, (…) pensando-o numa perspetiva histórica e em diálogo com aquilo que foi a história sangrenta, desde logo a guerra colonial portuguesa”, observou.
Patente até 14 de novembro, a mostra intitulada “Política dos Sentimentos” percorre a obra de escritor, cineasta e filósofo Alexander Kluge nas suas múltiplas dimensões e variantes, desde a produção fílmica até à produção televisiva, “passando também por alguns objetos concebidos e pensados especificamente para o espaço expositivo”.
Neste percurso, Kluge, explicou António Preto, faz a psicanálise da história naquilo que ela oculta e que foi menosprezado “pelo racionalismo histórico”, partindo, não de uma perspetiva romântica, mas de busca pelo invisível.
A exposição, continuou o curador, é acompanhada de uma retrospetiva – “a maior retrospetiva fílmica do Kluge que alguma vez se fez em Portugal” – organizada em colaboração com a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, em Lisboa, pela edição do segundo volume da sua obra literária, "Crónica de Sentimentos", e de um catálogo da exposição de Serralves que reúne um conjunto muito significativo de ensaios e textos inéditos sobre a obra do cineasta.
“O catálogo da exposição reúne sete narrativas do Alexander Kluge que incidem sobre Portugal e que são uma espécie de pequena crónica de Portugal”, indicou o cocurador da exposição Vicent Pauvel.
Esses textos são precedidos por uma introdução que Kluge fez para o catálogo, onde público fica a saber, por exemplo, que o autor viveu em Portugal, durante seis meses, no início dos anos 80, e na sequência do desastre de Chernobyl.
Pauval, que fez uma síntese do percurso do cineasta alemão, considera que a mostra patente na Casa do Cinema de Manoel de Oliveira é “um excerto de uma 'enciclopédia dos sentimentos'”, onde o autor pretende estimular, através da polifonia, o discernimento e a imaginação do visitante.
Pensada como um “enorme caleidoscópio”, a exposição pretende promover o confronto entre narrativas, histórias e personagens diferentes, colocando o visitante no centro de uma exposição sem linha orientadora, em que lhe cabe o pensamento e a síntese da observação.
Nascido em 1932, o escritor, cineasta e filósofo Alexander Kluge produziu, ao longo de sessenta anos, uma vasta obra fílmica que gravita em torno da ficção, das ciências sociais, da teoria do cinema, da história e da televisão.
Assistente de Fritz Lang, no início da carreira, e colaborador próximo de Thomas Adorno, Kluge, nome do novo cinema alemão que se afirma nos anos de 1960/1970, "revela um pensamento fulgurante marcado por uma profunda consciência crítica sobre a História da Alemanha e sobre a contemporaneidade", escreveu a Cinemateca Portuguesa.
Com curadoria de António Preto e Vincent Pauval, a exposição patente na Casa do Cinema de Serralves é inaugurada na quinta-feira.
Trabalho monumental de Alexander Kluge está em foco na Cinemateca e em Serralves
O cineasta alemão Alexander Kluge vai estar em foco na Cinemateca, em Lisboa, e em Serralves, no Porto, a partir de quinta-feira, com um ciclo de cinema retrospetivo e uma exposição que dão a conhecer a sua obra multidisciplinar.
Alexander Kluge, considerado um dos mais importantes nomes do cinema contemporâneo, é autor de uma obra que atravessa as áreas da literatura, da filosofia, do cinema e da televisão, desenvolvida desde os anos 1950.
A Cinemateca vai apresentar, entre 15 e 31 de julho, uma retrospetiva da sua vastíssima obra cinematográfica, organizada em colaboração com a Casa do Cinema Manoel de Oliveira, em Serralves, no Porto, e em diálogo com Kluge e com a sua equipa, divulgou a instituição.
No mesmo dia, e até 14 de novembro, a Casa do Cinema Manoel de Oliveira vai acolher uma instalação inédita, constituída por vários excertos de filmes do cineasta, intitulada “A Política dos Sentimentos”.
Com curadoria de António Preto e Vincent Pauval, esta mostra, da qual também será publicado um catálogo, aprofunda o diálogo com Manoel de Oliveira, tendo Alexander Kluge escolhido concentrar-se na obra “Os Canibais”, longa-metragem do realizador português, de 1988.
“Especialmente produzido para a exposição em Serralves e em conformidade com o seu interesse pela ópera, ‘Hommage zu Manoel de Oliveiras Film-Oper Os Canibais’ (2021) coloca esse filme em ressonância com outros referentes culturais, históricos e políticos, que marcaram os séculos XIX e XX”, de acordo com a informação da Casa do Cinema.
A obra fílmica de Kluge cruza formas e campos disciplinares muito diversos, numa síntese caleidoscópica de interrogações e perplexidades que atravessam as múltiplas frentes da sua ação política e cultural.
Aliando a crítica do racionalismo a uma estética de resistência, a obra de Kluge gravita em torno da ficção, das ciências sociais, da teoria do cinema, da história e da televisão, e o “seu projeto artístico consiste numa análise de fragmentos, onde o artista se deve deixar levar pelo ‘kairos’, esse momento oportuno e auspicioso, que ocorre inesperadamente e que não pode senão ser o aqui e agora do pensamento e da ação”, lê-se na página de Serralves, dedicada à exposição.
Isto explica o título da mostra, na medida em que, defendendo a urgência de “colocar o pensamento em tensão com o presente”, Alexander Kluge exorciza o recalcamento histórico, trazendo à luz do dia uma “historiografia do inconsciente” que designa como “política dos sentimentos”.
Já na Cinemateca, a retrospetiva que lhe é dedicada - e que atravessará as várias fases da sua obra, incluindo os trabalhos mais recentes (exceção feita a “Orphea”, porque teve estreia recente em Portugal) – terá o título de “cinema impuro”, precisamente por ser atravessado pela heterogeneidade, partindo de fotografias, pinturas, textos, outros filmes, entre muitos outros materiais.
Um cinema fragmentário assente numa reciclagem constante de imagens e sons, que o cineasta monta de “modo único” em obras destinadas quer ao cinema ou à televisão, como a exposições ou edições.
Entre os seus temas de eleição, sobressai a reflexão sobre o passado histórico da Alemanha (na sua articulação com a contemporaneidade), em que a Segunda Guerra Mundial e o Terceiro Reich se assumem como cruciais.
O cinema de Alexander Kluge reflete a sua atenção às grandes questões históricas e ao papel dos “sentimentos”, mas também a grande importância que dedica às personagens femininas, e a um “cinema dialético” que oscila em permanência entre realidade e ficção.
“Ávido colecionador de pequenas histórias em grande parte inspiradas em factos reais, o cinema permite-lhe ainda devolver importância à oralidade”, destaca a Cinemateca Portuguesa.
A homenagem a Manoel de Oliveira marca a abertura da retrospetiva, com um filme de 87 minutos, que termina com “Amor cego – Conversas com Jean-Luc Godard”.
Para dia 16, está previsto um programa de 'curtas', de 1976 a 2021, e a longa-metragem “O poder dos sentimentos”, ao passo que, para dia 17, estão reservados os filmes “Despedida de ontem” e “Os artistas sob a cúpula de circo: perplexos”.
No dia 19, será a vez de “Cem anos SOS” e “Trabalhos ocasionais de uma escrava”.
O dia 20 reserva projeções de filmes do cineasta dedicados à Alemanha da Segunda Guerra Mundial e, nos dias 21 a 24, serão exibidas as obras “A patriota”, “No perigo e maior angústia, o caminho do meio é o da morte”, “A Alemanha no outono”, “Notícias da antiguidade ideológica: Marx, Eisenstei, ‘o Capital’”.
A 26, a Cinemateca exibe “O ataque o presente ao tempo que resta” e, no dia 27, além de um programa de 'curtas', será projetado o filme “Informações diversas”, a que se seguirá, no dia 28, “Dançando com as imagens”.
A terminar, entre 29 e 31 de julho, a Cinemateca passa “Na tempestade do tempo”, “Happy lamento” e “No fio da navalha: 1929”.
Todos os filmes deste ciclo serão apresentados em cópias digitais e a retrospetiva será introduzida por uma conversa com o próprio Alexander Kluge (por videoconferência) e com Vincent Pauval, especialista na obra de Kluge e organizador da sua “Crónica dos sentimentos”, um “livro-montagem erguido sobre a análise e o aproveitamento de todas as matérias do mundo”, de que foi agora publicado o segundo volume, pela BCF Editores.
O primeiro volume desta que se apresenta como uma “obra colossal” foi publicado em Portugal em 2019, com o subtítulo “Histórias de base”, e o segundo volume saiu em junho passado, dedicado ao tema “A queda para fora da realidade”, procurando coincidir a sua disponibilização no mercado com a retrospetiva e a exposição.
Este trabalho consiste, no fundo, na compilação da vasta e determinante obra literária de Alexander Kluge.
Recorrendo a uma técnica descentralizada, excêntrica e fragmentária e acreditando sempre que “os sentimentos são o que de mais verdadeiro ocupa a vida humana”, Kluge tenta expor o que há entre os homens e os assuntos, e daí nasce a reorganização da sua obra, de onde provém o material que abreviou e reorganizou, uma vez mais, para o primeiro volume da edição portuguesa, segundo a editora.
A escrita de Kluge deriva da herança narrativo-fragmentária que se encontra igualmente nos filósofos Ernst Bloch, Walter Benjamin ou Max Horkheimer, daí que os seus livros estejam repletos de pequenas histórias, mapas, fotografias de arquivo, curiosidades enciclopédicas, verdadeiras ou não.
“Podemos encontrar ao lado da descrição de uma mosca a afogar-se num copo de Pernod, os detalhes da catástrofe de Fukushima ou o testemunho de um raide aéreo”, exemplifica.
Entre apontamentos científicos, notícias de jornal ou pessoalíssimos testemunhos, vão aparecendo desastres bélicos, ruínas da guerra, grandes dramas históricos e curiosidades aparentemente levianas, num exercício de rejuvenescimento da matéria literária onde a “verdade”, e o seu papel na arte, está sempre a ser posta à prova.
No primeiro volume, Kleist, Goethe, Engels, Lord Byron, Balzac ou Walter Benjamin cruzam-se com a memória do mundo, que pode ir da "verdadeira história da arca de Noé" e da "Canção de Rolando", aos acasos pessoais, em vésperas da I Guerra Mundial, ao 25 de Abril de 1974 e à queda da ditadura portuguesa ou à "perda de valor da atualidade", numa errância dos "caminhantes da vida" e da substância da "escrita invisível".
Neste segundo volume, Alexander Kluge recorda, por exemplo, o nascimento de um projeto de filme com o realizador russo Andrei Tarkovski: “Num quarto em Berlim, adjacente a uma cozinha, estava sentado (foi posto na cadeira pelas almas amigas que cuidavam dele) Andrei Tarkosvski. Um dos poucos grandes entre os cineastas do mundo, rejeitado pela Associação Soviética de Cinema, desconhecido em Hollywood”.
“Sou levado ao seu esconderijo por emissários. Através de terceiros tínhamos expressado a nossa intenção comum de fazer um filme a partir do livro de Rudolf Steiner Akasha-Chronik. Tarkovski tinha ouvido falar nos filmes ‘Alemanha no Outono’, ‘O candidato’, ‘Guerra e paz’. Estava interessado numa colaboração”.
Este excerto termina com a seguinte conclusão: “Era preciso ultrapassar uma divergência de pontos de vista. Eu partia do princípio de que o filme deveria ser realizado sem apoios, ou seja, sem a intervenção de qualquer instituição. Por isso as condições de filmagens teriam de ser simples, isto é, pouco dispendiosas. (…) Andrei Tarkovski, pelo contrário, imaginara as filmagens num lugar especial, por exemplo em encruzilhadas entre os Himalaias e o Caracórum, portanto em território tibetano”.
Multifacetado e multidisciplinar, Alexander Kluge é, nas palavras da escritora, ensaísta, cineasta, filósofa, professora, crítica de arte e ativista norte-americana Susan Sontag, “uma figura maior do panorama cultural alemão. Personifica, com Pasolini, o que há de mais vigoroso e original na ideia europeia do artista enquanto intelectual e do intelectual enquanto artista”.
Alexander Kluge nasceu em 1932 em Halberstadt, na Saxónia. Cineasta, escritor e ensaísta, assistente de Fritz Lang, no início da carreira, e colaborador próximo de Thomas Adorno, "revela um pensamento fulgurante marcado por uma profunda consciência crítica sobre a História da Alemanha e sobre a contemporaneidade", escreveu a Cinemateca.
Foi um dos autores do Manifesto de Oberhausen, que desencadeou o movimento do Novo Cinema Alemão, no qual participaram também Rainer Werner Fassbinder, Werner Herzog, Margarethe von Trotta, Volker Schlöndorff e Wim Wenders, entre outros.
Precursor da chamada "televisão de autor" - uma tentativa de levar qualidade artística aos programas televisivos -, Kluge é considerado um dos mais importantes intelectuais alemães contemporâneos.
Em 2015, Kluge teve uma retrospetiva na Culturgest. Em julho de 2019, a Cinemateca mostrou uma montagem específica de "O Formato das Micro-Metragens", concebida por Kluge para o ecrã da instituição portuguesa.
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