Renascer. O último ano do ensino secundário está especialmente desenhado para dar aos jovens a tentação de se reinventarem. É a altura certa para escolherem o que vão ser amanhã; quem vão ser amanhã. Christine (Saoirse Ronan), de Sacramento, na Califórnia, decidiu que quer ser Lady Bird e estudar algures na costa Leste dos Estados Unidos.
É mais ou menos por aqui que arranca o primeiro filme realizado a solo pela também atriz Greta Gerwing. E a estreia não podia ter sido melhor. Nomeado para o Óscar de melhor filme (esteve nomeado no total para cinco Óscares), que perdeu para “A Forma da Água”, este “Lady Bird” é a prova de muitas coisas. É a prova de superações e reinvenções.
Tudo isto pode ser visto como parábola, sobretudo num filme que explora as relações entre mulheres — entre mãe e filha; entre melhores amigas. Um filme que abre a porta da vida de uma adolescente naqueles momentos decisivos do fim da vida escolar antes da universidade. Uma parada de vestidos para os bailes de finalistas, de testes, trabalhos, candidaturas. Um namorado perfeito, embora com um segredo; um namorado giro, embora esteja mais preocupado com a decadência do mundo do que com o amor.
E Christine, ou Lady Bird, como ela própria se batizou, anda nessa procura. Assumir-se como quer. Erguer-se em projeto e desenhar a história de si. Fá-lo, porém, no meio de todas as incertezas, inseguranças e promessas de independência. Enche-se de hipocrisia. Desilude quem dela espera o mundo — e quem nem isso acredita ser possível.
Acaba a guerrear com o mundo. Muitas discussões com a mãe (interrompidas sempre que percebem que gostam mesmo — mesmo — daquele vestido). Uma traição à melhor amiga (que troca para se dar com uma rapariga mais popular e mais próxima do miúdo giro e niilista da escola — Timothée Chalamet, num papel que fica nos antípodas de Elio, de “Chama-me pelo teu nome”).
Pouco ou nada é inédito. Estas personagens já passaram por muitos filmes. Porém, aquilo que Gerwing conseguiu foi dar-lhes uma nova voz, reinventá-las de tal forma que o breve sentimento de que já vimos isto nalgum lado deve-se não ao cliché cinematográfico, mas à humanidade das personagens.
Isto, claro, só é possível com um argumento muito bom e uns atores ainda melhores. Começando pela escrita, raramente temos a sensação de que se está a forçar qualquer coisa de magistral retórica. O que aquelas personagens dizem são coisas que as pessoas reais podiam dizer — sem, contudo, pôr de lado a inteligência, os jogos de palavras e as frases que marcam.
Tudo isto faz deste um filme sobretudo divertido e ligeiramente frenético, exceto quando contempla Sacramento — aí, perde-se nos planos. Divaga a olhar para as estrelas, deambula a pensar no que ser e não ser, na perfeita metáfora visual para o que vai dentro da cabeça de Lady Bird.
Sobre os atores, muito se podia dizer, embora tudo o que seja dito possa apenas ser atribuído ao olhar crítico deste espetador. Realço, por isso, apenas a sensibilidade de Ronan, que, aos 23 anos, mostra que provavelmente será um dos grandes nomes do cinema, e a sincera austeridade Laurie Metcalf (que interpreta Marion, a mãe de Lady Bird).
De fora deixo todo o universo que as rodeia — e onde encontramos histórias de uma grande sensibilidade, que, talvez, merecessem ser melhor exploradas, ainda que talvez não neste filme. Fica de fora não porque peque de alguma forma, mas por economia de palavras.
O filme não é uma autobiografia, porém, há pedaços idênticos de vida entre a protagonista e a autora. Lady Bird, como Greta, está a acabar o secundário em 2003. Lady Bird, como a mulher que a criou, cresceu em Sacramento. E o filme não deixa de ser uma bonita homenagem a essa cidade do “midwest da Califórnia”, uma espécie de lugar provinciano à margem dos sítios onde as coisas realmente acontecem.
Lady Bird, traduzindo do inglês, significa qualquer coisa como Senhora Pássaro. Greta Gerwing diz que o nome lhe surgiu sem grande significado, mas não deixa de dar uma analogia para tudo isto. Porque esta é a história de uma rapariga que quer voar e é a história da mãe que não lhe vê força nas asas — se mais força quisermos neste argumento rebuscado, podemos dizer que há uma importante cena (talvez a mais poderosa com Metcalf) que envolve aeroportos.
Há muitas coisas que vale a pena ver neste filme. A par com “Chama-me pelo teu nome”, é dos melhores filmes do género em 2017. Ambos arrancam por um caminho disruptivo — que lhes valeu críticas por serem diferentes. E são. São duas obras que contrariam o esperado; que esticam a elasticidade das normas estabelecidas pelas academias e pelas sociedades acomodadas. E fazem-no sem o espetáculo do fingimento, se não com a sensibilidade e a humanidade que nos faz acreditar na história.
A janela que este Lady Bird abre para o medo e exuberância, para as dúvidas e excentricidades, para o acne e para a beleza juvenil não podia ser mais sincera. E por isso, mais do que tudo, é a história de uma rapariga na véspera de ser mulher. Seja essa mulher a personagem, a atriz que lhe dá corpo ou a realizadora/argumentista que a imaginou e concretizou.
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