O encenador falava à margem da estreia de “Canja de Galinha (com Miúdos)”, que se estreia hoje no Museu da Marioneta, em Lisboa, e que é o segundo trabalho dramatúrgico do ator e encenador desde o fecho da companhia que dirigiu ao longo de 43 anos, o Teatro da Cornucópia, até ao seu fecho, em dezembro de 2016.

“Sou contra a superficialização e o esvaziamento das artes", contra a sua redução a "um atrativo turístico”, sublinhou o encenador à Lusa.

“Canja de Galinha (com Miúdos)”, o seu novo trabalho de encenação, é um espetáculo divertido, que pede uma grande cumplicidade com o público, entre o público, e entre os atores e a plateia, algo que "está bem patente até na forma como é montado no auditório daquele museu", referiu à Lusa.

“É isso que eu acho que o teatro tem de excecional e que não devia morrer de maneira nenhuma: as pessoas que pertencem a uma mesma comunidade reunirem-se numa sala para, através de um jogo, rirem-se ou chorarem ou pensarem ou discutirem sobre um assunto que é comum a toda a gente”, defendeu Luis Miguel Cintra.

E prosseguiu, sobre o que entende por teatro: Um ponto de vista sobre a arte “que é político”, que “muito poucas vezes é lembrado” e “é pena que esteja a perder-se”, alegou.

Com a ideia das grande salas e de economizar na produção -- na medida em que se faz mais espetadores numa sala com muitos lugares pelo mesmo preço que se gasta numa sala com menos lugares -- faz-se com que o espectador seja cada vez mais anónimo e apenas um número na soma de bilhetes vendidos, e menos uma pessoa com a qual, eventualmente, se está a tentar comunicar e a estabelecer um diálogo, argumentou.

E “isso é que eu acho que não se devia perder, de maneira nenhuma”, sublinhou, acrescentando, todavia, não ser contra o êxito das estreias de cinema, de teatro e do amor ao espetáculo que as pessoas possam ter.

“Sou contra a superficialização e o esvaziamento de conteúdo das próprias artes, quando as artes passam a ser, sejam elas quais forem, um atrativo turístico”, enfatizou.

"Não é à custa da cultura portuguesa que se está a fazer vir pessoas a Portugal", argumentou, sustentando que isso é “mais um condimento de publicidade para outras coisas que não têm nada a ver com o verdadeiro sentido da arte. E o Estado não devia permitir que isso acontecesse”, acrescentou.

Este é um problema a “que já toda a gente se habitou” e que já cansou algumas pessoas, como o cansou a si, que “passou a vida inteira, desde o 25 de Abril de 1974, a discutir este assunto”, disse à Lusa.

Mas é também um assunto que "nunca chegou a ser claro na cabeça dos que atribuem subsídios, pela parte do Estado, nem das pessoas que os recebem, pela parte dos artistas, nem do público, para quem os subsídios são atribuídos”, observou.

Para Luis Miguel Cintra, “nunca ficou claro que os subsídios são uma atitude do Governo [feita] em nome dos cidadãos”.

“Sempre se falou de subsídios aos artistas, financiamento dos artistas, como se fosse uma espécie de prémio ou uma espécie de salamaleque aos artistas que vão subsidiar a sua atividade”, referiu, acrescentando que “não é para isso que são subsidiados”.

São subsidiados “por terem interesse nacional ou local, interesse para o público. E isso não é uma coisa que seja tida muito em conta”, indicou o fundador e diretor do Teatro da Cornucópia, sublinhando que a situação continua a agravar-se há muitos anos.

Exemplificou mesmo com a companhia que dirigiu durante 43 anos, considerando que o fim desta teve origem muitos anos antes do fecho.

“Quando a companhia começou a crescer, a crescer em prestígio, e foi laureada por uma quantidade de sítios”, isso “correspondeu a um “esvaziamento cada vez maior do financiamento, que chegou a metade do que era”.

“Como se o Estado não acreditasse na necessidade de subsídio: uma vez que tinha prémios, já não precisava de dinheiro”, ironizou.

Para Luis Miguel Cintra, a questão dos subsídios é daquelas em que “sempre houve equívocos sobre equívocos”. “E um deles é a incapacidade técnica dos gabinetes para analisar os pedidos e a orçamentação que é feita. Muita vezes muda-se de critério de forma abissal”, sustentou.

"Muitas vezes, determinada estrutura tem o subsídio muito alto quando é gasto em coisas que não são a própria estrutura, enquanto há casos de estruturas que recebem subsídios aparentemente pequenos, mas que acabam por ser maiores, porque se trata de estruturas com poucos gastos", exemplifica.

“Tudo isso exige um conhecimento técnico e um aparato que acho completamente inútil. Porque uma pessoa com um bocadinho de experiência nas artes de espetáculo percebe logo se um pedido é correto ou incorreto, se merece apoio ou não merece, se vale a pena apostar naquela estrutura emergente”, argumentou.

O encenador recordou ainda que quando a Cornucópia funcionava, e anunciava um debate sobre um espetáculo, havia “imensa gente interessada", "o que era um bom sinal”, porque as pessoas gostavam de intervir, mesmo que tal denotasse também que havia poucos sítios onde isso era possível.

Outras companhias começaram a debater os seus programas com o público, nomeadamente o Teatro Nacional D. Maria II, que começou a ter um sistema de comunicação muito mais ativo.

Mas "quando isso é aliado a uma ânsia tão grande de números de espetáculos, e de quantidade mais do que de qualidade efetiva, a gente começa a perguntar-se se não valerá a pena distinguir a qualidade das coisas e se o marketing não será uma coisa diferente, que se confunde com um verdadeiro desejo de comunicação com o espetador”, questionou.

Instado a pronunciar-se de que forma se inverte essa situação, o encenador defendeu a necessidade de “esperar pela construção de uma quantidade de setores da sociedade”, nomeadamente “toda a questão da educação”.

Cintra questionou, a propósito, como é possível estar a discutir-se se vale a pena fazer autores clássicos, “se não há nenhuma perspetiva histórica no ensino básico das pessoas”.

“Desapareceu. O ensino tem um único objetivo que é criar funcionários para os funcionários, porque não precisam de pensar, só precisam de executar o esquema está previsto“, frisou.

E para que o teatro volte a ganhar força, “tem de haver desejo e capacidade de intervenção e análise crítica”, preconizou.

Por isso, acha muito mal que se façam os clássicos atualmente.

“As pessoas vão ver os clássicos não percebendo nada do que aquilo é, porque estão profundamente enraizados na sua época e de forma genial, normalmente uma coisa que é perdida nas adaptações feitas”, referiu.

"E isso é injusto para com as populações, porque não têm formação possível, além de que não é possível que os jovens se interessem por aquilo", indicou, sublinhando estar convicto de que os mais novos se interessam por “álibis ao lado da questão que é discutida no espetáculo, e que não leva a nenhuma comunicação verdadeira”

“É sempre uma comunicação postiça e acessória e de coisas que são supérfluas. O que passa a ser importante é a animação que se sente na fachada, na entrada e saída das pessoas, na livraria, no bar, no estardalhaço que pode fazer haver uma quantidade de coisas que acontecem simultaneamente, a noite fora”, observou.

"O teatro é uma arte superior”, afirmou.

Luis Miguel Cintra não acredita numa grande transformação enquanto outros fatores não entrem em campo.

“O que acredito é que (…) se devia criar o gosto de uma comunicação de outro género, criar o espectador responsável pela parte do teatro, mesmo que fossem 'mini-mini-círculos' de público próprios para cada uma das companhias”, argumentou.

Que “cada companhia criasse o seu grupo de adeptos, e que se criasse um pensamento em profundidade, e não superficial, feito à pressa. Mas claro que isto custa caro (...). Para se fazer uma peça em profundidade, há que fazer ensaios demorados, e isso custa", disse.

O que se verifica, porém, é o contrário. E como se paga cada vez menos ao trabalho do atores, isto faz com que sejamos confrontados com uma verdade: os atores que estão a trabalhar "têm muitíssimo trabalho porque se dividem em muitas coisas ao mesmo tempo”, afirmou.

E como acumulam e fazem tudo muito depressa, e se tornam-se cada vez mais competentes na execução rápida de uma coisa qualquer, "isto vai descendo a qualidade dentro das próprias estruturas e do meio artístico", concluiu.