Pais, mães, irmãos, tios, primos, uma panóplia de parentescos. Novos, velhos, intermédios, todas as idades juntas num só amor: o amor pelos Metallica e pelo heavy metal, a comunidade que gosta de música pesada e de se vestir de preto a esgotar o terceiro dia do NOS Alive para assistir a nova investida da maior banda entre as maiores do thrash. Pouco importa que esse mesmo thrash já faça parte do passado. Os fãs da velha guarda dirão que morreu em 1986, com a edição do seminal “Master Of Puppets” e com a morte do baixista Cliff Burton. Fãs posteriores dirão que morreu com “Load” e “Reload”, os mal-amados discos que os Metallica lançaram na década de 90, depois de terem cometido o sacrilégio de cortar o cabelo. Os mais novos dirão que morreu com “St. Anger”, igualmente criticado, pelas fracas canções e pelo som da bateria. Outros que morreu com “Lulu”, álbum em que os Metallica colaboraram com Lou Reed, demasiado vanguardista até para os vanguardistas.

Apesar de todas estas opiniões diversas, a verdade é uma apenas: independentemente da quantidade de sentenças de morte que se possam aplicar aos Metallica, o quarteto continua a encher recintos, a dar ótimos concertos, a conquistar novos fãs. Os mais recentes descobriram-nos através da inclusão de 'Master Of Puppets', a canção, na nova temporada de “Stranger Things” – e, a dada altura do concerto em Algés, foi possível ver o baixista Robert Trujillo a envergar uma camisola da famosa série da Netflix. Alguns desses terão marcado presença no festival para assistir, pela primeira vez, à sua nova banda favorita. E o que viram foi uma máquina de fazer metal ainda oleada, o poderio de um grupo que, mesmo vivendo do passado, continua a querer fazer o presente.

Os fãs mais cínicos, que colocam “Kill 'Em All” (1983) e “Ride The Lightning” (1984) acima de qualquer outro disco dos Metallica, poderão dizer que a banda deixou, há largos anos, de ser espectacular ao vivo. Terão alguma razão: os concertos dos Metallica de hoje já não são o tipo de concertos em que se sai a pensar que se viu a melhor coisa de sempre. Mas mesmo esses não deixam de sentir aquele frémito que corre pelas veias mal se escuta 'The Ecstasy Of Gold', a peça de Ennio Morricone que é há décadas a canção que lhes dá as boas-vindas aos palcos. Não é um concerto espectacular, nem precisa de o ser. É uma reunião de família, uma oportunidade de rever caras conhecidas, trocar duas de letra com quem não víamos há muito. Aliás, são eles próprios que o dizem: os Metallica são uma família, e quem gosta deles faz parte dessa mesma família.

Rita Sousa Vieira

Começando na chamada “língua”, com uma bateria ali montada para o efeito (havia outra no palco propriamente dito), os quatro patriarcas arrancaram com 'Whiplash', um dos temas mais frenéticos do seu álbum de estreia, como que para querer provar aos supracitados cínicos que ainda existe ali muito thrash para dar. Logo a seguir, 'Creeping Death' manteve a mesma toada veloz, encontrando um público que não se limitava a cantar apenas os versos da canção mas também os riffs, como se de uma claque se tratasse. Pequeno aparte: estranha que nenhuma claque de futebol tenha ainda inventado um cântico em torno de um tema dos Metallica. E esse tema poderia muito bem ser 'Enter Sandman', um dos grandes clássicos do grupo, que nesta nova digressão (cuja etapa europeia terminou aqui em Algés) deixou de se situar na dianteira do alinhamento para ocupar um dos lugares cimeiros.

James Hetfield, bigodaça loura, cabedal imenso, lançou o repto: «Estão vivos?», numa espécie de trocadilho com o nome do festival (“espécie”, porque o vocalista/guitarrista faz a mesma pergunta ao público a cada concerto). A resposta foi avassaladora: sim, estamos, sim, respondemos à chamada, sim, é bom voltar a ver-vos, Metallica. «É claro que a família Metallica está aqui», acrescentou pouco depois. 'Cyanide', que só tinha sido tocada por duas outras vezes ao longo desta tour, ocupou o lugar de 'Ride The Lightning', que havia sido interpretada no espectáculo em Madrid, dois dias antes. 'Whenever I May Roam', o “On The Road” dos metaleiros, seguiu-se-lhe. Interventivo quanto baste, Hetfield aproveitou também para agradecer o facto de os Metallica aqui estarem, todos juntos, 41 anos após a sua formação. Fixe-se, 41: número impressionante para qualquer banda, mais ainda por se tratar de uma banda de heavy metal, género do qual o mainstream foge a sete pés, sendo que o metal faz o mesmo em relação ao mainstream.

Se a balada 'Nothing Else Matters' fez aquecer os corações, 'Sad But True' procurou testar os decibéis emitidos pelo público. 'For Whom The Bell Tolls', mais tarde, trouxe o fogo, o mesmo que percorreria o palco durante 'Moth Into Flame'. 'Seek & Destroy', cujo primeiro verso sofre sempre uma alteração ao vivo, dependente do local em que os Metallica toquem (claro que ninguém disse a Hetfield que Algés não é Lisboa), colocou um ponto final no concerto propriamente dito, antes do encore: a magnífica e devastadora 'Damage Inc.', com a bandeira nacional por trás, o hino anti-guerra que é 'One' e a inevitável 'Master Of Puppets', que terminou com o rebentar de fogo de artifício. «Vocês fazem-nos sentir tão bem», voltou a atirar o vocalista. O contrário também se aplica. Marque-se já a próxima reunião.

Rita Sousa Vieira

Se os Metallica trouxeram os fogos, M.I.A. foi o incêndio. Nome cimeiro do rap feito não só em Inglaterra como no feminino, M.I.A. encheu o Palco Heineken, logo após o concerto dos Metallica, entregando aos presentes 45 minutos de pura perfeição. Normalmente, um espectáculo ao vivo é feito de altos e baixos: neste último campo, existe quase sempre uma canção menos conseguida, um ritmo mais frouxo, um riff que não arranha tanto.

Munida de dois pares de clones dançarinos e de duas mãos cheias de excelentes canções, a britânica apresentou-se constantemente nos píncaros, desfilando verso atrás de verso e beat atrás de beat, fazendo dos corpos borracha a ondular. O público provavelmente não pensaria que a primeira canção do alinhamento fosse desde logo uma das maiores malhas de M.I.A.: 'Born Free', a canção que vai beber de 'Ghost Rider', dos míticos Suicide, e que a transforma num hip-hop explosivo que é também o grito de guerra de uma guerrilheira. Não esquecer que M.I.A. é uma fervorosa ativista pelos direitos dos tâmiles, povo que é o seu e que travou durante anos uma luta sangrenta contra o governo do Sri Lanka. 

A sua música é reflexo disso, um hip-hop não-anglófono, onde a batida chega não do funk ou da soul americanas, mas dos ritmos do “terceiro mundo”. E também do punk rock: 'Paper Planes', a mais famosa das suas canções, foi “roubar” a sua melodia aos Clash. Durante este concerto, também a escutámos a replicar 'Roadrunner', dos Modern Lovers de Jonathan Richman.

«De Portugal para o mundo», M.I.A. e sua música só precisaram de duas coisas muito simples: luzes a rodopiar e o volume no máximo. Se 'Bucky Done Gun' e 'Galang' agradaram – e muito – aos seus fãs mais antigos, 'Borders', já no encore (e já depois de os dançarinos terem brindado o público com diversos sacos de pano), e 'Miracles', mesmo a fechar (com a rapper debaixo de um lençol de plástico), foram as chaves de ouro de um espectáculo que será recordado ad infinitum por todos quantos lá estiveram. «Obrigado por terem cá estado, com tanta loucura que há no mundo», disse. Caso a energia gerada em cima daquele palco e fora dele, àquela hora, tivesse sido recolhida, daria para iluminar todo o concelho de Oeiras durante anos. Como não o foi, só serviu para suar o que ainda não se tinha suado ao longo de mais um dia de calor.

Rita Sousa Vieira

Num Heineken igualmente cheio, e a pouco mais de uma hora do início dos Metallica, a norte-americana St. Vincent (que tem em Kirk Hammett um fã fervoroso) subiu ao palco ao som do wah-wah de uma guitarra, loira como Marilyn, sedutora como Monroe. Na lapela, um patch onde se lia “Daddy's Home”, o título do seu mais recente disco, inspirado pela saída do seu próprio pai da cadeia (foi condenado a 12 anos de prisão por fraude fiscal, cumprindo apenas 9). A música, um funk a roçar a disco, fez as delícias de quem prefere elevar as ancas no ar em vez de as prender ao chão, passando por canções como 'Digital Witness', 'Down' ou a própria 'Daddy's Home'.

Sensualidade é a palavra que mais se aplica, aqui: os momentos de St. Vincent com o seu guitarrista estiveram a escassos instantes de necessitar de bolinha vermelha, o lenço com que foi enxugando o suor, e o qual atirou depois ao público, já deve estar a ser alvo das mais variadas sevícias. A bebida que tragou ao som de um piano lounge, dedicando um brinde ao regresso aos concertos «depois de toda a insanidade», deu o mote para 'New York' e, pouco depois, 'Pay Your Way In Pain' acabaria com um fabuloso grito metal. «Vocês merecem amor humano básico», despejou ainda, qual cupido. A sua seta foi certeira.

Rita Sousa Vieira

Os Royal Blood não esconderam o seu entusiasmo por estarem a tocar para tanta gente e, mais importante ainda, antes dos Metallica. Transformados em trio, ao vivo, pela adição de um teclista, o grupo inglês trouxe o seu rock n' roll simples e direto a um público predisposto a dar-lhes uma oportunidade. Há bandas que procuram explorar todas as possibilidades que a guitarra elétrica lhes oferece; os Royal Blood preferem retirar tudo o que é supérfluo e manter apenas um esqueleto ríffico, ao qual é acrescentado uma bateria poderosa. 'Come On Over', que começou com os mesmos acordes da genial 'I Wanna Be Your Dog', dos Stooges, levou mesmo alguém a arriscar-se no crowdsurf. Um solo de bateria aparentemente interminável levou à utilização de um gongo. E houve ainda espaço para representar a classe operária inglesa, com Mike Kerr a dirigir-se a quem estava no golden circle: «vão-se f... seus c... cheios de dinheiro». Mais um tiro certeiro dos Royal Blood em Portugal.

Horas antes, os Sea Girls falharam o seu: o quarteto, que não é composto por rapariga alguma ao contrário daquilo que o nome indica, mais parecia uma boys-band a tocar um indie rock banalíssimo que só agradou a alguns fãs, os mesmos que lançaram gritos de entusiasmo em 'Lucky'. «É a nossa primeira vez a tocar em Portugal, mas já cá tínhamos estado e adoramos», lançou o vocalista Henry Camamile. Percebe-se o porquê de uma estreia tão tardia: há milhentas bandas a fazer o que eles fazem, em melhor. Safou-se o rock quase gótico de 'Sick' e pouco mais.

O NOS Alive termina este domingo, com o regresso dos Da Weasel aos palcos, e com concertos de HAIM, Imagine Dragons ou Caribou. O dia está esgotado.

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