O ANJO CAÍDO

Vi cair como anjos mortais uma geração inteira de rapazes. Adolescentes com a pele acinzentada e falta de dentes, a cheirarem a amoníaco e a urina. Figuras esquálidas como Cristos de Mantegna, que se espalhavam pela saída do metro de San Blas, na rua Amposta, e pelos relvados do parque El Paraíso. Cobertos de agulhas como São Sebastião. Sentados ou deitados no chão como calhasse. Quase sem se moverem, lentos e sincopados como bonecos partidos. Com o sorriso sublime dos crucificados. Indefesos, mas flutuando já em lugares onde nada os atingia. Vi-os despontar e tornarem-se cada vez mais lentos até chegarem à quietude final e se decomporem na lama que se acumulava no nosso bairro com nome de santo, mas abandonado por Deus.

A primeira vez que me apaixonei foi por um daqueles anjos. Atirou-se da janela da casa dos seus pais, que ficava por cima do nosso rés do chão de trinta e cinco metros quadrados, com uma seringa espetada no pé. O meu vizinho Efrén apareceu morto na rua, quase nu, diante da minha porta. Eu ainda não tinha seis anos, usava uma pala num olho e gaguejava. Julgo que foram os queixumes da mãe que alertaram os moradores do bloco onde vivíamos, três andares sem átrio e com escada exterior. Chegámos antes da polícia, que levava sempre o seu tempo a cumprir serviço quando se tratava de San Blas. Para eles, para qualquer autoridade, era só mais um agarrado a morrer, filho de alguma operária derreada de tanto esfregar escadas a quem, provavelmente, o seu menino adorado já teria roubado várias coisas da casa para poder injetar cavalo.

O facto é que não me lembro de Efrén vivo. Só tenho a imagem que consegui resgatar por entre as pernas da minha mãe e da minha vizinha Lola, com o único olho de que dispunha, como se espreitasse por uma fechadura. As mães do meu bairro não abraçavam os filhos mortos como as virgens das pietà renascentistas. Faziam-no prostradas sobre os seus corpos, aos gritos, desguedelhadas, com os olhos inchados e a baba a escorrer. Cobrindo os seus meninos conforme podiam, protegendo-os como feras desesperadas, chamando por eles até perderem a voz no passeio, cravando-lhes as unhas na carne, morrendo também com eles.

Se alguma vez ouviram aqueles «ai, meu filho!», nunca mais se esquecem. Permanecem no arquivo sonoro da memória como dobres a finados que vos obrigam a sacudir a cabeça para os exorcizar.

Pedro Moura e Susa Monteiro juntam-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 21 de fevereiro, uma quarta-feira, pelas 21h00. Consigo trazem  "Mensagem", de Fernando Pessoa, numa edição da RTP/Levoir.

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Efrén era lindíssimo e o vazio assentava bem naqueles traços suaves de quem nunca chegou a ser homem. Uma overdose levou-o para o lado frio. Estava agarrado há pouco tempo e a heroína quase não lhe moldara as feições, só a cor da pele adquirira a qualidade da cinza. Foi a primeira vez que desejei beijar alguém. O corpo dele ficou estendido diante de um jardim raquítico que havia à frente das nossas casas, mesmo debaixo de um dos arcos da entrada, meio coberto de flores quase secas e caules de hera que mal davam para tapar a estrutura tosca de arame gradeado. No entanto, a morte escolhera para Efrén uma moldura vegetal de uma certa beleza suja, art nouveau. Tinha entreaberta a boca de lábios carnudos, ainda por retrair, o cabelo revolto e as pálpebras a meio caminho entre a vigília e o sono. Se aos cinco anos temos capacidade de nos apaixonar, a minha derramou-se toda sobre aquele pobre desgraçado. A minha vida interior desfraldou-se sobre aquele fotograma de dor e miséria, imaginando-me leve e translúcida sobre o corpo morto, beijando-o com a leveza das coisas que não existem, não para o acordar da sua letargia, não para ser correspondida, mas desejando com toda a minha alma beijar uma coisa tão bela e indefesa. Uma coisa que, parecia caída do céu e deixada como ex-voto na minha entrada. Uma coisa que, por entre o ruído e a fúria de mães com a baba a escorrer e de pais que tapavam a boca para conterem o pranto, senti que me pertencia.

A BRUXA DO FUNDO DA RUA

Baixíssima, Peruca era magra como um cabide e tão enrugada que quando se movia parecia estar a interromper um processo inexorável de mumificação. Sempre foi velha. Andava maquilhada como uma caricatura de velha maquilhada, com sombra azul, risco preto nos olhos, lábios vermelhos e uma base toda estalada, da cor da casca da batata inglesa. Cheirava a flores mortas abandonadas numa gaveta e estava sempre a murmurar em voz baixa uma fiada de palavras incompreensíveis, qual oração secreta com uma certa dose de veneno. Isto do veneno tinha a ver com a sua forma de olhar, enviesada e trocista. A seriedade dela não era daquelas que julgam, era antes a que precede a gargalhada, como se de cada vez que olhava para alguém lhe fosse revelado algum segredo vergonhoso sobre quem tinha à sua frente.

Vivia sozinha ao fundo da rua, que era uma fileira de blocos de três andares de tijolo vermelho, com escadas exteriores em cimento. Esta paisagem arquitetónica, que se repetia por todo o bairro, era interrompida de vez em quando por um casarão deteriorado, cheio de vidros partidos, restos de papel de alumínio, seringas e materiais de construção sem préstimo. Se as pudéssemos ver de cima, estas falhas nas fileiras dos prédios davam à rua um aspeto de gengiva doente, como se dentes enormes tivessem sido arrancados aqui e ali, sem qualquer lógica, deixando no seu lugar apenas uma infeção incurável e um vazio grumoso. Além do parque e das próprias casas, aquelas lixeiras, aqueles nenhures, eram os recreios dos meninos do bairro, que também se deixavam morrer ali quando cresciam o suficiente para chutarem cavalo. Crescemos assim, várias gerações de filhos da classe operária, a imaginar mundos inteiros nos mesmos nenhures que podiam vir a ser o nosso leito de morte.

O jardim não chegava até à esquina de Peruca. A vista do seu apartamento de rés do chão, se ela alguma vez tivesse aberto a persiana verde de corda que entaipava dia e noite a sua janela, eram os caixotes de lixo. Os nossos prédios faziam parte de um grande projeto franquista de construção de habitações, nos anos cinquenta, batizado como «O Grande San Blas», que antes se chamava Cerro de la Vaca, nome que às autoridades fascistas devia cheirar a suor e a merda. Os cobradores ao domicílio chamavam-lhe «o bairro sem mães», já que quem lhes abria a porta de casa eram crianças que não iam à escola; não ocorreu às luminárias do regime que as mais de trinta mil famílias que foram ali parar precisavam de escolas próximas para os filhos e demoraram anos a suprir essa necessidade, tal como a da água canalizada ou dos mercados onde se abastecerem, que foram aparecendo com a lentidão e o desleixo das coisas que não interessam a quem é responsável por elas. Os operários sempre foram vistos pelo franquismo como bestas de carga a enfiar em estábulos na periferia. Esse abandono criou no bairro uma consciência de classe que, desde o fim dos anos setenta e durante toda a década de oitenta, as autoridades da Transição Democrática decidiram debelar, à força de chutos de heroína quase de borla. A droga foi a derradeira forma de execução sumária de dissidentes de um regime que descobrira como se perpetuar.

Sobre Peruca diziam-se quatro coisas no bairro: que tinha sido contrabandista nas grutas do morro, que era uma bruxa muito competente, que a feitiçaria a deixara careca e que era melhor evitá-la ou tratá-la com muita amabilidade, caso não houvesse outro remédio senão partilhar com ela um patamar ou uma fila na frutaria. Era difícil não olhar para o postiço sintético, encaracoladíssimo e mal amanhado, que lhe cobria a cabeça. Mas era essencial não o fazer ou não lhe prestar atenção. Além de lhe dar a alcunha, a peruca era o gatilho dos seus maus fígados e não convinha provocá-la.

Cruzar-me com ela e respirar profundamente o seu odor deixava-me louca; era como snifar traças. Ao invés de me amedrontar, o seu aspeto enternecia-me: o risco dos olhos, irregular e trémulo, e os lábios mal pintados recordavam-me as minhas maquilhagens clandestinas dessa época, feitas a toda a pressa na casa de banho da minha avó com a habilidade de uma criança de cinco anos não particularmente dotada para a pincelada perfeita.

Livro: "Maus hábitos"

Autor: Alana S. Portero

Editora: Alfaguara

Data de Lançamento: 19 de fevereiro de 2024

Preço: € 18,85

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Os meus primeiros passos como travesti foram os de uma transformista de um metro e vinte que imitava uma bruxa velha e trapeira a cheirar a tanatório.

O medo que ela inspirava era real. Os homens do bairro, bastante rudes, trabalhadores fabris, da construção, empregados de mesa, vendedores ambulantes, sucateiros ou fura-vidas em geral baixavam os olhos e davam-lhe as boas-tardes como meninos do pós-guerra a cumprimentar o pároco. Era cómico vê-los, camisas meio desabotoadas e cabeça descoberta, a caminho do bar depois de dias de trabalho escravo, cruzarem-se com ela e amedrontarem-se perante uma mulher de aparência tão frágil.

Quase ninguém se lembrava do seu nome, e a alcunha, embora toda a gente a conhecesse, não se dizia na sua presença, não só por ser cruel e mal-intencionada, mas sobretudo por medo da sua reação. Para se dirigir a ela, toda a gente se desenrascava com um «senhora».

Certo dia, duas mulheres que viviam na mesma rua de Peruca, criadas no bairro, ambas grávidas, foram dar um passeio para acalmar os inchaços resultantes de uma gestação que decorria durante um verão particularmente quente. A uma delas, que desde criança tinha problemas circulatórios bastante visíveis nas pernas, fazia-lhe bem caminhar, ajudava-a a aliviar um pouco as manchas purpúreas que se lhe formavam nos tornozelos. Habituaram-se a passear juntas ao fim da tarde, partilhando as novidades e as rotinas da gravidez, os medos, as ilusões e uma ou outra bisbilhotice de última hora, que nunca faltava num bairro onde toda a gente se conhecia e onde havia público com apreço pela má-língua.

A das pernas arroxeadas sonhava com um filho toureiro que lhe comprasse uma moradia, «como dizem na rádio que o Cordobés fez à mãe», costumava argumentar. A outra, um pouco mais nova, queria um filho muito bonito, «assim, loirinho e de olhos claros», dizia.

Assim que começaram o passeio, viram Peruca aproximar-se, vinda do fundo da rua, e, como ainda estava longe, apressaram-se a puxar o lustre à troça e à má-língua, rindo-se do aspeto da velha.

— Cala-te, que ainda me mijo — dizia a dos pés inchados sobre as barbaridades que deixava cair a mais nova, a quem não faltava imaginação para o enxovalho. Eram duas raparigas com vinte anos acabados de fazer, a exibir toda a crueldade de que a juventude é capaz, que é muita. Os remorsos e a contenção chegam com a decrepitude, tal como o egoísmo, quando se habita o reverso da vida e se acha que quase tudo o que é feio acabará por nos alcançar.

Muito antes de se cruzarem com ela, conseguiram controlar o riso e calar as atrocidades. Quase a passarem ao seu lado, fizeram ambas menção de sorrir, submissas, em jeito de cumprimento e de simpatia para com uma vizinha de idade. Não chegaram a fazê-lo. Peruca parou diante delas, de maneira a que parecesse não haver mais espaço na rua do que aquele que o seu corpinho de arbusto morto ocupava. As raparigas tentaram dar as boas-tardes, mas as palavras ficaram-lhes na boca como um refluxo. Provavelmente levaram uma mão inconsciente ao ventre. Do olhar presente e ausente da anciã, pressentia-se uma emanação que conseguiria apodrecer tudo pelo caminho, fossem flores, alegrias ou placentas. Devagar, Peruca levantou a mão esquerda e levou o polegar ao buraco mole e pastoso que tinha por boca, chupou-o com vontade, movendo-o, emitindo ruídos de sucção e saboreando-o sem deixar de olhar para as duas mulheres, para quem o tempo não passava; nelas, tudo era medo de baixa frequência, mas paralisante, e uma enorme incomodidade e impotência. Com o dedo bem besuntado de saliva, com calma, a velha levou-o até à face de uma das duas mulheres. Aquela que tinha levado mais longe a troça. Aquela que sonhava com um filho muito bonito, lindíssimo. Assim, loirinho e de olhos claros.

Ela não conseguiu esquivar o dedo, nem teve tempo de reagir. A velha desenhou uma linha reta de saliva da bochecha daquela cara jovem e arredondada pela gravidez quase até ao queixo, dizendo bem alto, com voz seca de lagarto: «MACACO.»

Mal cheguei a conhecer o menino Damián. Ele e a mãe quase não saíam de casa e, quando o faziam, ela levava-o totalmente tapado e com a capota do carrinho fechada. Dizia-se que não andava e que tinha uma doença de pele que tornava letal a exposição ao sol. Não falava. Morreu de enfarte aos seis anos, deitado no sofá de casa enquanto via televisão. Quando foram buscar o cadáver, a mãe pôs um lenço branco sobre a carinha peluda do filho, para que o deixassem em paz a caminho da morgue.

À minha mãe, os problemas circulatórios solucionaram-se com os anos, e em vez de um filho toureiro, pariu uma filha trans que nunca chegou a comprar-lhe uma moradia.