Peter Brötzmann, nome cimeiro do free jazz europeu, morreu esta quinta-feira aos 82 anos. Ao longo de uma vasta carreira dedicada ao saxofone e à música dita de vanguarda, destaca-se “Machine Gun”, álbum inspirado pela Guerra do Vietname e onde a sua furiosa forma de tocar melhor se distingue – ouvimos o disco de uma ponta a outra, toda aquela cacofonia, todo aquele ruído mágico, e é como se de facto caísse sobre nós uma saraivada de balas, como se cada nota e anti-nota nos deixasse uma ferida eterna no corpo, e o nome dessa ferida é liberdade. Em 2012, Brötzmann deu uma entrevista à conceituada revista “The Wire”, onde dizia assim: “O sexo constitui uma enorme parte do jazz. Não é nada a esconder. Olhem para os tipos dos blues, para a maneira como pulavam pelo palco. O que é o rock n' roll, senão vamos pinar?”

Lembramos Brötzmann e lembramos esta citação porque, para além dos tremas no seu nome, o que eles têm em comum com o alemão é a adoção dessa filosofia. Desde o primeiro dia. Vamos pinar: o rock n' roll não como motriz para revoluções, não como forma de contar histórias mirabolantes, não como uma massa de energia transcendente e teológica. Apenas e só como uma forma de sacar miúdas, levá-las para a cama, não as ver no dia seguinte. “Os Mötley Crüe são sobre a música, sobre as miúdas, sobre a música, sobre as drogas, sobre a música e a violência”, escreveu Nikki Sixx em “The Heroin Diaries”, livro que junta as páginas do diário que escreveu nos seus tempos de maior excesso, nos anos 80, quando os norte-americanos eram uma das maiores bandas do mundo e o seu baixista – Sixx – escrevia canções – 'Kickstart My Heart' – sobre a sobredose de heroína que o ia matando.

Porém, tudo tem o seu fim. Nos anos 90, quando o grunge matou bandas como os Mötley Crüe (que também tinham na sua origem uma base punk), os norte-americanos tiveram que lidar, pela primeira vez nas suas vidas, com o maior pesadelo de uma estrela rock: já não haver ninguém que goste de si. “Mötley Crüe” e “Generation Swine”, este último com título batizado por Hunter S. Thompson, não venderam o mesmo que os seus antecessores (“Dr. Feelgood”, “Shout At The Devil” ou “Girls, Girls, Girls”) venderam. Em 1992, o vocalista Vince Neil saiu do grupo e acabou substituído por John Corabi, que nunca teve o mesmo impacto que o original. O baterista, Tommy Lee, ainda figurava nas capas dos jornais – não pela música, mas por namorar Pamela Anderson, com quem realizou uma das sextapes mais conhecidas do planeta. Em 2002, os Mötley Crüe, outrora considerados “a banda mais perigosa do mundo”, chegavam ao fim. Tinham sobrevivido às muitas noites de álcool e seringas espetadas nos braços. Mas só lhes restava essa mesma sobrevivência.

Até que chegou algo que revitaliza sempre o rock n' roll da velha guarda: a digressão de reunião. Neil voltou ao grupo, os Mötley Crüe voltaram aos concertos de estádio, e o período entre 2004 e 2007 foi dos mais férteis, comercialmente falando, para a banda. A edição de “The Dirt”, autobiografia do grupo lançada em 2001, também contribuiu para uma espécie de renovar de público: as gerações mais novas apreciaram aquela escrita honesta e sem rodeios. Deu, inclusive, para gravar um novo álbum, “Saints Of Los Angeles”, de 2008. Da reunião saltaram para uma última digressão, em 2014. Dessa última digressão saltaram para uma nova reunião, em 2018. “The Dirt” foi adaptado para a Netflix e valeu-lhes uma outra geração de fãs.

Eis-nos assim chegados à noite de 23 de junho de 2023, no Passeio Marítimo de Algés. Muitos fãs da velha guarda, mas também alguns mais novos, que nunca poderão ver os Mötley Crüe enquanto “uma das bandas mais perigosas do mundo”, e sim como um simulacro daquilo que não voltará a ser. A banda já não conta com o guitarrista Mick Mars, que abandonou os Crüe em 2022 devido a uma doença degenerativa, e que colocou os seus ex-colegas e ex-amigos em tribunal devido a questões de royalties. Os demais estão limpos: não bebem, não se drogam, são casados e pais de filhos, três escuteiros em palco a trocar memórias dos seus tempos de juventude. O que é que resta, portanto, a uma banda como os Mötley Crüe, que mais que música eram a própria definição de excesso, mesmo antes de os Guns N' Roses lhes roubarem esse estatuto (com canções, digamos, melhorzinhas)? Resta-lhes fingir, à boa maneira do cinema norte-americano. Resta-lhes começar o concerto com uma mensagem de alerta, uma notícia de última hora falseada a dar conta da sua presença em Lisboa. Resta-lhes uma mensagem pateta: “não podemos desfazer o passado, mas o futuro é nosso”.

Nem futuro nem presente voltarão a ser alguma vez dos Mötley Crüe; o que se passou em palco em Algés serviu, apenas e só, para que aqueles três indivíduos da banda original esmifrassem ao máximo o pouco de mitologia passada que ainda lhes resta. Pondo de lado a enorme tristeza que foi ouvir Vince Neil a “cantar” (se é que se pode chamar àquilo cantar; a sua voz ficou na década de 80 e não de lá saiu), pudemos encontrar um fogacho dos antigos Crüe na presença de duas cantoras-barra-dançarinas que trouxeram até ali, nos seus corpos objetificados, algo da filosofia da banda. 

O quase-thrash de 'Live Wire' não soou mau, as perguntas de Neil (“quem é que quer ouvir coisas antigas?”) não foram menos que absurdas, o medley de versões que fizeram oscilou entre o problemático ('Rock And Roll Part 2', de Gary Glitter, condenado por violação de menores e posse de pornografia infantil), o absolutamente execrável ('Helter Skelter', dos Beatles, que nunca se escutou tão assassinada) e o interessante quanto baste para agradar a um público rock ('Anarchy In The UK', dos Sex Pistols, e 'Blitzkrieg Bop', dos Ramones). A dada altura, Tommy Lee vem para a frente do palco pedir aos presentes (sobretudo às presentes) para que mostrassem as marufas, e algumas corresponderam. 

No final, já depois de 'Kickstart My Heart', houve petardos a assinalar o fim do concerto, com a banda a desfazer-se em agradecimentos e a chutar baquetas para o público. Sai-se do concerto rodeado de personagens vestidas de preto e homens de cinquenta anos, de camisa branca, que saíram a correr do escritório para se lembrarem de como eram as discotecas que frequentavam na juventude. Lembramo-nos de uma das frases de “The Dirt”: “os miúdos não vão ver um concerto dos Mötley Crüe para pensar na sua própria mortalidade; vão para, com sorte, conseguirem que alguém lhes saque um bico na parte de trás de um carro”. Lamentavelmente, o rock segundo os Mötley Crüe está morto. Paz à sua alma.

Quase mortos, os Def Leppard vieram até ao Passeio Marítimo de Algés com uma inglória missão: fazer esquecer a piada que todos os bateristas do mundo conhecem, e que é: o que é que tem nove braços e não vale nada? A resposta é Def Leppard e é uma espécie de humor negro, baseado no facto de Rick Allen, baterista da banda desde 1978, ter perdido um braço depois de um acidente de viação. Com eles não sentimos que o rock está morto, apenas algo engravatado. Foi um concerto onde cabem palavras como “coeso” ou “aceitável”, mas nunca palavras como “extraordinário”; são o género de banda que anda em digressão a tocar sempre as mesmas canções, sempre da mesma forma, como se o rock fosse um ponto a ser picado e não adrenalina.

O que é pena. Há ali boas canções: 'Let's Get Rocked', por exemplo, com os ecrãs de palco a transformarem-se numa espécie de BD. Ou 'Armageddon It', que antecedeu o lamento do vocalista Joe Elliott, pelo facto de uma pandemia os ter impedido de vir a Portugal mais cedo. 'Kick', uma das canções presentes no seu novo álbum, “Diamond Star Halos”, foi buscar parte do riff à gloriosa 'No Fun', dos Stooges – e é por isso boa por osmose. Arrancam-se as baladas xaroposas e as guitarradas para fãs da M80 do alinhamento e até que poderíamos dizer que este concerto dos Def Leppard foi bastante agradável, se não mesmo bonito. No final, Elliott deixou clara a mensagem: “não se esqueçam de nós que não nos esqueceremos de vocês”. A promessa de um regresso futuro também foi feita.

Contratados à última hora para preencherem a slot das 18h30, os portugueses The Quartet of Woah! foram, ainda assim, os únicos que nesta tarde-noite ergueram bem alto a bandeira do rock n' roll, na medida em que estavam ali para se divertirem e não porque aquilo é o seu emprego a tempo inteiro. Começaram só com bateria e baixo e arrancaram, de seguida, para um fantástico delírio progressivo de mais ou menos quinze minutos que, se não acordou alguns dos presentes, ao menos deu mostras da sua existência. Uma e outra bofetada blues a fechar e estava feito o concerto, que se pôde prolongar por mais dez minutos que o tempo previsto – consta que o agente dos Mötley Crüe gostou da coisa. Mas o melhor mesmo é verem-nos por aí.