Um filme inteligente que assusta. Um filme que satiriza o "Sonho Americano", mas que supostamente cria tanta tensão que faz comichão na barriga. Um filme do realizador do aclamado "Foge", um dos favoritos do público e da crítica em 2017, e que agora regressa com uma ambição redobrada — e de forma mais visceral. Uma montanha russa de autor que contrabalança no mesmo plano arte, horror e comédia. Comparações com "The Shining" (de Kubrik) e "Brincadeiras Perigosas" (de Haneke). Assim rezam as críticas pelos Estados Unidos. E, no entanto, na sequência inicial do filme deparamo-nos com uma criança que entra por engano numa casa de espelhos assustadora numa feira porque o pai não estava a tomar conta dela como era suposto. Isto é, estamos perante algo incrivelmente inovador nisto dos sustos. (Ou se calhar não.)
Ora, em "Nós", vamos acompanhar um período de descanso da família Wilson. A matriarca é interpretada por Lupita Nyong'o (vencedora dum Óscar por 12 Anos de Escravo, em 2014), o pai tem os préstimos do ator Winston Duke (M'Baku de “Black Panther”). Juntos, têm um casalinho amoroso, com aquela simbiose familiar que não deve ser diferente de tantos outros filhos, uma vez que a mais velha é uma adolescente sem grande paciência para o irmão mais novo — que anda sempre com a máscara de um gorila na cabeça. E são todos "fixes" e inteligentes, ainda que cada um o seja à sua maneira.
Sem querer revelar muito da história, diga-se que os pais decidem ir de férias para Santa Cruz, uma cidade californiana, perto da praia. Só que, para grande frustração do pai, Santa Cruz traz memórias menos felizes a Adelaide, a mãe. E isso é-nos explicado no prólogo, na primeira sequência do filme, que nos faz viajar até 1986, a uma feira de diversões. Porque é nessa feira, numa casa assombrada, que acontece algo que vai marcar a vida de Adelaide. Trata-se dum episódio que está intrinsecamente ligado aos horrores que os Wilson vão acabar por sofrer às mãos dos seus doppelgängers (uma versão má e animalesca não domada deles próprios) que vivem num mundo marginal oculto (cujo acesso se dá por uma escada rolante) e que se preparam para fazer muito mal aos seus homólogos bonzinhos.
Apesar da ironia, as personagens acabam por ser um dos pontos fortes do filme. Lopita Nyong'o sobressai pela forma como interpreta a sua "sombra" — "Red" — e pelo modo como coloca a voz; forçando uma rouquidão pausada e trémula, parece um adulto a aprender a falar pela primeira vez (se bem que por vezes roça o exagero, uma vez que dá a sensação que tudo isto acontece ao mesmo tempo que está a ser operada e o anestesista fez asneira tal é o esgar de dor ao falar). Sempre que aparece há uma aura sinistra e medonha que se apodera daquilo que o espetador vê.
Já o ator Winston Duke, que dá vida ao seu marido Gabe, parece ficar em segundo plano nestas andanças porque a estrela é Lopita; no entanto, a verdade é que é igualmente sólido na sua interpretação. Gabe é um pai de família prestável, engraçado e que faz piadas secas. O papel de comic relief, portanto. Contudo, a sua "sombra", apresentada por "Red" como sendo "Abraham", parece um grunho das cavernas que não passou da era do Homem Neandertal. E é essa disparidade entre Gabe e Abraham que realça o bom trabalho de Duke. É que damos por nós a torcer para que Gabe fuja com vida. Só que pensando bem nas coisas, a verdade é que estamos a torcer para que um ator não se mate a si próprio. E isso quer dizer que o homem teve algum mérito no seu trabalho.
(Ah! Na ficha do elenco poderá reconhecer também o nome de Elisabeth Moss, a June Osborne de "Handmaid's Tale", mas é preferível ignorar, tal parece o piloto automático com que fez as suas cenas. Passadas horas após ter visto o filme ainda me interrogo se a vi num intervalo da rodagem de um episódio de MadMen, já que só aparece a beber como não houvesse amanhã, ou se a vi num papel secundário em "Nós".)
PS: aqui fica também aqui um conselho: se ler esta crítica e faz intenção de ver o filme, atente com a máxima atenção à seguinte passagem que se segue de Jeremias, profeta do Antigo Testamento, uma vez que vai aparecer de 25 minutos em 25 minutos no ecrã (vá, não é bem assim, mas aparece umas poucas de vezes) nas mãos daquele que parece ser um sem-abrigo.
Jr 11:11: Por isso, assim fala o Senhor: Descarregarei sobre eles calamidades, às quais não poderão escapar. E, quando gritarem por mim, Eu não os atenderei.
Peele consegue mostrar a tal calamidade e chamadas de desespero através dum trabalho de câmara refinado. Apesar de existir muito conflito, correria e esfaqueamento, não existe a trepidaria habitual para registar que tudo mexe. O que se passa no frame, lá fica, sem grande bazófia a nível técnico que nos distraia ou iluda. Ou seja, a tensão não foge da cena, apesar de recorrer aos "jump scares" — que aqui resultam. Ainda assim, não é um filme como "Foge". Há qualquer coisa de Twilight Zone, há qualquer de George Romero. (Até há t-shirts de Michael Jackson). Lá está, é um filme de terror e não outra coisa qualquer que se tente classificar. Aliás, até o próprio realizador o confirmou numa entrevista à Rolling Stone.
Há que tirar o chapéu à banda sonora conduzida por Michael Abels — está no ponto. O que não está no ponto é a história dos doppelgängers. Não é o facto deles existirem, é simplesmente o rol mal amanhado como Peele os apresenta e justifica. A explicação para estas cópias ("as sombras") dos protagonistas é dada perto do final — mas sabe a pouco. É-nos revelado de forma tão rápida que, após estar as vasculhar por símbolos, pistas ou palpites subtis durante 1h30 nos planos de Peele, não se consegue perceber muito bem a sua origem.
De resto, percebemos que as "sombras" têm um rosto assustador, correm rápido e quando a câmara se vira na sua direção sabemos que algo de mau vai acontecer. Deduzo que sejam seres humanos, mas que não sabem sê-lo; os "cá de cima", ou seja, nós, os originais, somos os sortudos; os "lá de baixo", as nossas "sombras", tiveram uma vida semelhante, mas terrível e confinadas à desgraça. Basicamente, é como se cada um de nós tivesse uma cópia internada num centro hospitalar psiquiátrico desprovido de contacto humano e amor, vivendo como animais.
Duma coisa, no entanto, sabem: querem vingança. E tem um plano. Um plano acutilado a malícia animal intrínseca até ao mais dos bondosos seres. Malícia (ou alguém) essa que, por sua vez, os vai fazer vestir um fato de macaco vermelho, dominar a arte que é a matança à tesourada e fazer ginástica acrobática. (Estou a pôr-me a jeito, bem sei; porque sei também que se daqui a dois ou três meses for ao YouTube, há lá um vídeo que me vai explicar a simbologia por detrás da "sombra" que está a fazer o pino antes de tentar espetar uma valente tesourada no pescoço da sua "original".)
Até que chega o final. E aviso já que não tenho problemas com "finais abertos". E, por muito que apeteça fazê-lo e questionar tudo o que tenho entalado a remoer desde que o vi, não quero escrever sobre o final porque iria estragá-lo. Porém, diga-se que fiquei com a sensação de que estava a sair dum filme escrito por M. Night Shyamalan. O problema disso é que tenho para mim que nunca é bom sair de um visionamento de imprensa com a sensação que acabei de ver a "Senhora da Água" — um dos plot twists mais bonacheirões de que me recordo. E foi com essa sensação que saí da sala escura após ver "Nós". (Não, não estou a comparar filmes e realizadores; estou só a comparar os finais, ou vá, o último ato do guião.)
Se fizermos um "descubra" as diferenças, "Foge" assusta pelos temas que aborda e pelas observações (leia-se críticas) sociopolíticas que faz, "Nós" assusta ao estilo dos filmes de horror; gore, gente a fugir de gente que as quer matar. Isto é, no primeiro, temos uma chávena de chá que nos transporta para outro sítio que não o nosso corpo e uma data de alegorias em forma de crítica à sociedade; no segundo, temos máscaras assustadoras dignas de um concerto de Slipknot e pessoas a fazerem aquilo que uma família normal numa casa no meio do nada nunca faria.
Em suma, há aquela certeza de que os fãs de Peele e do suspense vão ficar satisfeitos. Está escrito e realizado para criar uma mescla de emoções durante uma incursão de quase 2 horas entre o espetador e aquilo que se passa na tela. Tem momentos em que parece uma comédia negra, outros em que estamos a hiperventilar como se estivéssemos num thriller; além disso, ao contrário do que acontece em "Foge", há gore e sangue. Muito sangue. E uma protagonista que ligou o turbo em modo Uma Thurman em Kill Bill; só que em vez de contar uma história de esquartejamento em esquartejamento envergando uma katana, está na luta pela sobrevivência munida de um (igualmente letal) atiçador de lareira.
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