Quando, em 1949, o aclamado livro de George Orwell “1984” foi publicado, criou-se um marco na história da literatura e da política. Uma obra crítica que, ao apresentar um regime totalitário e opressor de todos os que se opunham, contestava as perversões do partido socialista britânico da altura. A obra viria a definir uma nova ideia de controlo social, em que as câmaras ocultas que se encontravam por toda a cidade impediam os cidadãos de agir livremente, onde quer que estivessem. Em meados dos anos 50 seria inconcebível imaginar a possibilidade de existir um sistema tecnológico capaz de captar e analisar toda a informação gerada pelas imagens das câmaras.

No entanto, aos olhos do século XXI, esta ideia é bastante real e não está tão longe assim de ser verdade. O filme “O Círculo”, que estreou ontem nas salas de cinema nacionais, propõe-se explorar exatamente esta ideia, de que a sociedade tecnológica em que vivemos atualmente está a progredir para um campo de partilha de informação perigoso para a privacidade humana.

Realizado por James Ponsoldt (“The Spectacular Now”), “O Círculo” é um filme baseado na obra literária de Dave Eggers, do mesmo nome, feita com o intuito de explorar de forma clara o poder que as empresas tecnológicas têm atualmente na nossa vida. O conceito é simples: se cada vez mais temos a tendência de partilhar com o resto do mundo tudo o que fazemos, o que comemos e os sítios onde vamos, porque não auxiliar a comunidade e tirar proveito dessa vontade incessante de partilhar?

No filme, o “Círculo” não é mais que uma empresa americana que muito se assemelha a grandes empresas da atualidade, como a Google ou a Facebook, em que o seu produto inicial, o TruYou, é também uma plataforma virtual que permite aos utilizadores agrupar toda a sua vida numa só conta e depositar a sua informação numa “cloud” - (nada que não tenhamos visto ainda).

Mae Holland (Emma Watson), uma rapariga simples e modesta, decide fazer um upgrade na sua carreira num call center de uma empresa amadora, e é então admitida para trabalhar no “Círculo”. Com as múltiplas tecnologias que agora invadem a vida de Mae, esta torna-se progressivamente mais ativa na sua vida virtual e os problemas começam a surgir. Mae afasta-se da sua família e amigos e isola-se na sua “bolha” social, partilhando gradualmente as ações do seu dia-a-dia com a rede.

Mas a verdadeira desventura inicia-se quando o CEO da empresa, Eamon Bailey (Tom Hanks), sobe ao palco e apresenta aos seus colaboradores, com todo o carisma de um verdadeiro líder, mais uma das inúmeras invenções desenvolvidas pela empresa. Depois de pulseiras capazes de analisar o nosso corpo e de plataformas incumbidas de gerir as nossas relações, a nova câmara “SeeChange” iria revolucionar a forma como a informação sobre a realidade era partilhada e analisada numa base de dados global.

Com as capacidades únicas da pequena câmara pessoal SeeChange, as possibilidades de partilha seriam agora ilimitadas. Imaginem que os “diretos” do Facebook e do instagram agora abrangiam todas as pessoas, todas as casas, estradas, paisagens e monumentos de todo o mundo e estariam acessíveis a todos. Seria agora possível partilhar e saber toda a informação em tempo real, um feito que mais do que fascinante seria assustador.

O papel de Mae Holland, a primeira colaboradora a implementar a SeeChange na sua vida, torna-se cada vez mais importante para a empresa, na medida que uma líder aspiracional como Mae era capaz de influenciar as massas a submeter-se às ofertas da empresa. A história progride durante cerca de uma hora até que a um certo ponto as coisas escalam para um nível desmedido, mas muito real, e o filme termina com uma forte mensagem a incomodar o nosso pensamento - “dado o avanço tecnológico, qual virá a ser o limite entre aquilo que é público ou privado?”.

"O Círculo" é um filme que nos põe a pensar sobre questões filosóficas atuais e relevantes para todas as gerações. O resultado enquanto obra cinematográfica fica aquém das expectativas. À semelhança de outros filmes que abordam temáticas sociológicas interessantes, como Sem Tempo (2011) ou Os Agentes do Destino (2011), este segue a receita clássica de cliché americano e pouco acrescenta na sua composição, em termos de originalidade. Com planos básicos, um guião bastante vulgar e uma música também muito simplista, o estilo do filme é talvez o seu ponto menos forte. É conduzido com demasiada leveza para o desafio de pensamento que propõe, e as próprias personagens não têm a profundidade que é desejada numa história com tanto significado. E, ao contrário de Emma Watson, Tom Hanks encara o seu papel com a firmeza e naturalidade de que estamos habituados, sem nunca desiludir. 

A grande diferença entre "1984" e "O Círculo" reside no facto de que, no primeiro, todo o sistema de vigilância partir de uma medida do Estado, enquanto que, no último, o sistema nasce da incessante e crescente vontade da sociedade de partilhar e expor a sua vida à comunidade. Dá que pensar.