É necessário ver e rever “Un Chien Andalou” por diversas vezes para perceber, nem que seja por um microsegundo, por uma centelha apenas, o que é que Luis Buñuel e Salvador Dalí queriam de facto expressar com todas aquelas imagens aparentemente aleatórias, sem qualquer fio condutor pelo qual os cinéfilos de todo o mundo se possam guiar. Ou, então, basta vê-lo apenas por uma vez e aceitar a explicação do realizador espanhol: “nada no filme simboliza o que seja”. Sem significado, resta o choque, principalmente o da lâmina que rasga o olho da mulher, como uma nuvem rasga a lua cheia.

É um pouco isto que acontece com “Doolittle”, o segundo álbum de estúdio dos Pixies, editado há precisamente 30 anos. Se no filme lâmina e olho surgem logo aos primeiros minutos, no disco a referência surge também aos primeiros versos de 'Debaser':

Got me a movie, I want you to know
Slicing up eyeballs, I want you to know

Tal como em “Un Chien Andalou”, a primeira reação é a de choque: de onde vem esta música que consegue, ao mesmo tempo, ser tão ruidosa e ao mesmo tempo tão melódica, ser tão rock n' roll e ao mesmo tempo tão delicodoce?

Ao choque segue-se, inevitavelmente, a confusão. Afinal, o que raio queria dizer Black Francis (o nome artístico de Charles Thompson IV enquanto guitarrista e vocalista dos Pixies, e que também é conhecido como Frank Black) quando cantava sobre “Un Chien Andalou” e sobre lâminas e olhos rasgados? A resposta dada pelo músico ao NME, em 1989, imita a de Buñuel: “Pensei que escrever uma canção em torno de um filme arty francês era uma coisa completamente idiota”.

E pronto, senhoras e senhores: está dado o mote para compreender “Doolittle” na sua totalidade, para compreender as suas histórias, para compreender as suas dinâmicas, para compreender que um disco repleto de canções sobre “Un Chien Andalou”, desastres ambientais, sexo, morte e referências bíblicas a rodos (o padrasto e mãe de Francis eram evangélicos, e o músico nunca escondeu o seu fascínio pelo lado mais violento da bíblia – o incesto, as prostitutas, a brutalidade da retribuição divina, etc.) é, na verdade, um disco sobre coisa nenhuma, sobre idiotices várias, que servem sobretudo para entreter.

Quer dizer: até lhe poderíamos colar algum significado. Mas será que isso importa verdadeiramente? “A canção é um puzzle”, explica Black Francis, no livro da coleção 33⅓ (em que cada volume aborda um álbum canónico dentro da pop e do rock) dedicado a “Doolittle”, escrito por Ben Sisario. “Algumas são fáceis de perceber, outras não. E algumas são tão difíceis que nunca as irão perceber, porque para tal teriam que estar dentro da minha cabeça, saber o que eu sei”. No fundo, as canções de “Doolittle” são um bocado como 'Telemóveis', de Conan Osiris: a letra é demasiado absurda para lhe conseguirmos conferir um significado concreto, mas o que é que isso interessa se a pudermos dançar?

créditos: DR

Deixe-se então de lado a filosofia. Eis o som: a linha de baixo de Kim Deal, isolada, puxando-nos para o centro da ação; as guitarras a ranger, eletricidade no meio de um incêndio; e a bateria, o impulso primordial para saltarmos como os punks ou como a juventude à procura de crescer o suficiente para que os braços toquem o céu. 'Debaser' não precisa de ser sobre alguma coisa; basta-lhe espancar a cóclea e obrigar ao sorriso de felicidade assim que Black Francis começa a gritar aqueles versos, explicando ao mundo que quer ser um debaser, palavra que não existe no dicionário inglês (vem de debase, desvalorizar) e que poderá ser traduzida livremente como “desvalorizador”.

Quem diz 'Debaser', diz qualquer uma das canções que compõem “Doolittle”: 'Here Comes Your Man', 'Monkey Gone To Heaven', 'La La Love You', 'Hey' ou 'Gouge Away' como exemplos notórios, canções que habitam a área cinzenta que separa o preto – o ruído – do branco – a pop cantarolável e fácil. Mesmo que algumas delas sejam cantaroláveis e fáceis, simples, sem grandes floreados. Como 'Hey', que no seu melhor é uma canção bonita sobre um amor aparentemente impossível ou sobre a comoditização do sexo, e no seu extraordinário – a parte que verdadeiramente interessa – é o baixo de Deal, o uivo da guitarra de Joey Santiago e os uh! de Francis, a banda-sonora ideal para abraçarmos o garoto ou a garota e dançarmos em câmara lenta até ao chocho final.

“Doolittle” é, ainda hoje, o álbum que melhor define os Pixies como entidade, pelo menos a nível sonoro. Foram eles que praticamente deram origem à dinâmica quiet / loud, isto é, canções que começam devagarinho e suavezinho e que explodem nos refrães sem que ninguém o espere, uma fórmula que desde então foi pilhada por inúmeras bandas dentro do chamado rock alternativo, com os Nirvana à cabeça. Kurt Cobain chegou mesmo a dizer que 'Smells Like Teen Spirit' – o grande hino dos Nirvana e da década de 90 – era só uma tentativa de copiar os Pixies.

Ainda assim, não há – mesmo hoje – uma banda que se possa dizer que soa a Pixies. A sua influência é notória e encontramos elementos seus aqui e ali, mas tentar reproduzir na perfeição as letras surrealistas de Francis (e ele autodescreve-se como “surrealista”), a guitarra poderosa de Santiago, a batida de David Lovering ou o baixo e os sussurros bonitinhos (o complemento à visceralidade da garganta de Black Francis) de Kim Deal é uma tarefa assaz complicada. Mas é, também, normal. Os Pixies são considerados os pais do rock alternativo; que miúdo adolescente, no seu perfeito juízo ou falta dele, é que quer ser como os pais?

Uma influência que, em 1989, parecia nunca se poder vir a concretizar. À altura, os Pixies não eram mais que os meninos bonitos da crítica, sobretudo da britânica. Nos Estados Unidos, ainda não dispunham de um público fiel além dos muitos jovens universitários que os descobriram pela rádio, ao passo que em Inglaterra eram-lhes tecidas loas apenas entregues àquelas bandas que se entendem como especiais. O que obteve os seus frutos: “Doolittle” chegou ao 8º lugar das tabelas de vendas do Reino Unido, ombreando com nomes como Madonna.

Nada mal para uma banda que havia começado apenas três anos antes, da mesma maneira que muitas outras bandas começam: com um anúncio. Em 1986, Black Francis e Joey Santiago colocaram uma nota no Boston Phoenix, em busca de uma baixista “que gostasse de Hüsker Dü e de Peter, Paul & Mary”. Só tiveram uma pessoa a responder: Kim Deal, que ficaria nos Pixies até ao fim da banda, em 1993 (ano em que, com as Breeders, lança outro álbum de culto dentro do rock alternativo: “Last Splash”), voltando para nova investida em 2004, quando esta se reuniu. Abandonou o projeto, definitivamente, em 2013.

Um fim que grosso modo também começou com “Doolittle”. A partir daí, as sessões de gravação dos Pixies tornaram-se mais longas e custosas, e a química que existia entre os quatro membros dos Pixies foi-se diluindo progressivamente. Ainda houve espaço para mais dois discos, “Bossanova” (1990) e “Trompe Le Monde” (1991), que mesmo contendo algumas ótimas canções ('Bird Dream of the Olympus Mons', por exemplo) nunca conseguiram alcançar o mesmo respeito de “Doolittle”, entre fãs e críticos.

Um respeito que ainda continua. No supracitado livro sobre “Doolittle”, são referidos os números que o disco alcançou em termos de vendas: 100 mil cópias nos primeiros seis meses (hoje um assombro, à época nada mau para uma banda “alternativa”), 1500 cópias por semana quando foram a banda de abertura dos U2, em 1992, 1200 cópias por semana quando se reuniram, em 2004. No final de 2005, e só nos Estados Unidos, “Doolittle” tinha vendido mais de 800 mil cópias. Hoje em dia, olhamos para o Spotify e só 'Here Comes Your Man', que é fatuamente o tema mais pop presente no disco, conta com mais de 62 milhões de plays. Nos anos que se seguiram ao fim da banda, “Doolittle” conseguiu vender ainda mais cópias baseando-se, apenas, no passa-palavra dos fãs, que se foi arrastando por duas gerações de adolescentes. Não é por isso de estranhar que, nos concertos dos Pixies, ainda haja muita gente abaixo dos 25 anos. “Qualquer pessoa que vai para a universidade ouve os Pixies”, afirmou Joey Santiago em entrevista ao Público, em 2013.

Talvez seja menos verdade agora que o hip-hop domina não só as tabelas como as mentes, mas continua a ser possível ver o foco de influência dos Pixies em muita gente que nem sequer era viva quando eles lançaram “Trompe Le Monde”. E não é só a sua sonoridade idiossincrática, ou os versos estranhos e bizarros; é também a sua atitude. “Os Pixies são o exemplo maior do que deve ser uma banda de rock alternativo (…): tinham educação suficiente para fazer referência a filmes franceses da década de 20, mas não eram suficientemente sérios para deixar de fumar erva no autocarro”, escreve Sisario. Ou seja: eram eternamente jovens. E quem os escuta pode, também, beber um pouco desse elixir da imortalidade.


Os Pixies irão regressar a Portugal no dia 25 de outubro, para um concerto no Campo Pequeno, em Lisboa. Os bilhetes encontram-se à venda em todos os locais habituais a preços que vão dos 35,00 euros aos 45,00 euros.