Para ouvir esta história, carregue sobre as partes sombreadas do texto.

Explosões, vapores e gases. Ouve-se tudo. Metais que batem, tocam em estrondo. Ouvem-se os hidráulicos e o soprar das máquinas. O rugir do fogo, que arfa dentro dos enormes fornos, espalha-se pelo interior da nave escura de onde saem as delicadas peças de vidro e cristal da Vista Alegre (antiga Atlantis), em Alcobaça.

São onze horas. António Esteves está a pé desde as cinco. Na rua, as nuvens juntam-se para uma breve ameaça de chuva. É o pico do verão, mas não se nota. Ali, porém, junto ao mestre vidreiro da Vista Alegre, estão à volta de 50 ºC — temperatura igualmente amena se a compararmos com os 1.450 ºC que estão dentro da fornalha.

Numa mão segura um longo tubo metálico — cana —, em cuja ponta pende uma bola que podia ser de mel pelo aspeto, não fosse ser cristal incandescente, brilhante pelo calor que tem. Na outra mão, páginas dobradas de um jornal desportivo. É com a proteção desse naco de papel, apenas húmido, que o mestre Esteves vai moldando a lava vermelha.

Começou a fazê-lo aos doze anos. Hoje tem 65. A arte aprendeu-a na já perdida Fábrica Stephens, na Marinha Grande, de onde é natural. “Era o ex-líbris que havia na Marinha Grande e no país. Ainda era do Estado, uma fábrica lá dos Stephens; foi um legado que eles nos deixaram ao país... Era uma fábrica do género desta, fazia de tudo. Fazia vidro com muita qualidade, só que com os anos, os tempos foram mudando e também os governos, mas em 1992, lá ao senhor que estava no governo [Aníbal Cavaco Silva] deu-lhe a iniciativa de fechar a empresa”, lamenta.

A Marinha Grande é uma terra de raízes vidreiras. Há um ditado que diz 'o que não sopra já soprou', porque é relacionado com alguém que já esteve ligado ao vidro naquela família”, conta.

António Esteves esteve reformado mas regressou à boca dos fornos para a coleção Única, dos designers Hugo Amado, Diana Borges e Bruno Escoval. Trilogy, Portal, Ripple e Caneleto são os nomes das várias peças, feitas manualmente pelo mestre Esteves e respetivos ajudantes.

De calções e mangas curtas, um jovem que aprende e um velho que ensina, vão dando o apoio de que o mestre Esteves precisa, numa missão em que cada instante conta. “A fundição a 1.450 graus, para nós irmos buscar o vidro ao forno, para o manusearmos, a 1.100 graus. Mas na fundição o cristal tem de estar sempre em movimento, porque, como leva chumbo, tem de estar sempre em rotação e o chumbo não pode assentar no chão”, explica o mestre vidreiro.

Atrás de Esteves, no fundo da caverna, vai havendo um bailado. De um lado para o outro, as canas, de pontas incandescentes, dançam. Os homens cruzam-se, deslizam entre fornos e mesas de trabalho. Às vezes crescem as labaredas, noutras, faíscas entre rotações. Mas eles, que avançam no meio do ruído e do calor, nunca se cruzam, nunca se tocam. E se vai um forasteiro a passar no meio do caos dominado, são eles que, antes da tragédia que levam em mãos, estacam e evitam a infalível queimadura.

Do éter ao pensamento

Grandes, pequenas, azuis, vermelhas. Achatadas, compridas, inteiras, partidas. Ao fundo de um corredor vazio, pontuado apenas por portas fechadas, diante de um jardim interior onde desagua a luz de uma enorme clarabóia, está o gabinete de Diana, Hugo e Bruno. Os adereços que enchem as secretárias e parapeitos são arte que houve e arte a haver; mistura eclética do que se fez e do que se tentou.

É nesta sala que o éter conflui na execução dos pensamentos, dando origem aos primeiros passos da matéria de que são feitas as peças. “Pode nascer uma ideia de qualquer maneira. De um documentário que vejo, de um sítio que visito, de uma conversa, de alguma peça antiga que veja”, conta Diana Borges, lembrando as inúmeras peças envoltas em fino pó nalgumas estantes da fábrica, à espera de servir de modelo para retificar algum pormenor.

As formas tanto podem ser geométricas como orgânicas. Construir uma peça em cristal não é como pegar num bloco de pedra e esculpi-lo à forma desejada. É antes o inverso. É pegar no desconjunto que são os minerais, tornar o sólido em líquido, dar-lhe a forma do imaginado e fazê-lo voltar à solidez, que é o estado das coisas inertes.

Esboço da peça Portal, de Diana Borges. créditos: PEDRO SOARES BOTELHO / MADREMEDIA

Diana Borges olha para o processo como se fosse um portal, uma passagem entre estados: “o cristal é quase como lava e a ideia aqui é a de materializar essa matéria numa nova peça, numa nova forma e há aqui uma certa relação entre aquilo que vem da natureza e a intervenção do homem”.

Foi por isso que às suas peças deu o nome desse dispositivo ou objeto que permite a criação de passagens: Portal. “A peça é simples, muito simples. Não queria que fosse nada muito complicado, queria que a ação do vidreiro fosse o menos possível. Esta peça é toda moldada apenas com o jornal, que é o que separa a mão do vidreiro da matéria. Estes orifícios são propositados para nós olharmos através dela. É simbolicamente este portal entre o homem e a natureza”, entre a mecânica e a orgânica.

“[Queria] uma forma simples, fluida, que se visse o cristal, o brilho do cristal, que parece que são peças mais fáceis de fazer, mas nem por isso, porque ao serem lisas também se veem mais os defeitos, portanto o vidreiro tem de ter mais cuidado”.

Do pensamento à matéria

Depois, arranca a efetiva construção. As chamas sibilam, o calor beija a cara. “Começa-se por recolher um pouco de vidro colorido”, os chamados balotes, vai descrevendo Hugo Amado, enquanto o mestre Esteves enterra uma cana no estômago a ferver de uma caldeira.

“O balote está lá em cima [num outro forno] a aquecer. [O vidreiro] vai agarrá-lo aqui deste lado, vai dar um reaquecimento ao vidro, porque ele já está frio, para no fim, quando estiver quente, dar sopro à bola, que é para logo a seguir irmos a um molde num ‘feeder' [alimentador], aonde vamos buscar o vidro na totalidade e onde a peça vai ser reiniciada, já com o vidro todo para ela”, esclarece António Esteves, que vai observando o que fazem os assistentes: o tal novo, que aprende, e o dito velho, que ensina.

Cana à boca. A cana é um fino e comprido tubo metálico. Numa ponta, uma bola de vidro incandescente, na outra, a boca de uns pulmões que sopram. “O vidreiro está a começar a dar o sopro, a dar o calor para o balote começar a ganhar consistência com o sopro, a dar-lhe a forma. O início da peça é aqui.”

“Quando se começa uma peça, tem várias fases. Isto não é automático, é tudo feito manualmente”, acautela Esteves. E quando se diz manualmente, é mesmo de mãos que estamos a falar — mãos e umas folhas de jornal molhado. “Eu tenho de ter muita sensibilidade com aquilo que faço. Se tiver uma luva calçada não tenho a destreza para agarrar a cana como tenho só com a mão”.

Ainda por cima, “o jornal dá um ótimo acabamento de superfície às peças. É uma coisa muito mais orgânica e, quando os dedos se mexem, o jornal acompanha”, acrescenta Hugo Amado.

“Há aqui uma sequência que tem de ser lógica”, conta Diana Borges. É que para a peça “ter esta volumetria, primeiro tem de ser soprada, não pode ser furada antes, porque se não depois o sopro já não funciona. Ela é soprada, depois é furada e depois é cortada, é pegada [pela base], estão dois a agarrar a peça, um parte [no topo] e o outro segura, e depois têm de puxar, puxar o vidro, fazer uma espécie de rebuçado, tem de se cortar aquele maciço [que fecha o topo], tem de se aquecer e depois toda esta parte [de cima], e é aí que eu sou muito exigente com o mestre — elas são todas diferentes, mas isso é assumido, cada peça é única —, mas esta parte [de cima] é toda modelada. Não há aqui molde, não há aqui utensílio — é a mão, mão humana”.

“Aqui depende muito também da maneira como ele vai manusear [o vidro], da maneira como ele vai fazer os buracos — e ele tem de dar a volta, cada peça para ele é um desafio, porque eu tento dizer-lhe para as coisas ficarem o mais similares possível, mas não é possível, isto é como a natureza. São todas diferentes. Garanto que ninguém vai ter uma peça igual à outra”.

Do concreto ao abstrato

Eu ver um desenho, fazerem-me um desenho e eu logo a seguir fazer uma peça e é aquilo que eles querem”. O mestre Esteves é quem dá forma às ideias. Construtor do sonhado, o vidreiro dá forma aos esboços e indicações dos designers.

A origem de cada peça é “um trabalho de equipa”, explica Hugo Amado, responsável pelo design de cristal da Vista Alegre. E “é um trabalho nos dois sentidos — não sou só eu que chego ali com um projeto e 'olha, façam isto'. Há muita discussão”.

Discussão e “muita tentativa e erro”, diz. “Temos de estar a acompanhar; [o mestre António Esteves] dá umas sugestões, os assistentes dele dão sugestões. Eu aceito ou não, depende do projeto e do que eles me estão a sugerir”.

"Geralmente fazemos esboços e às vezes até podem ser esboços no chão ao pé do vidreiro”, acrescenta Diana. “Depois é como o Hugo disse, quando trabalhamos com o vidreiro ainda fazemos alguns ajustes”.

“Neste caso foi muito simples, como é uma peça menos complexa — tem a sua complexidade, mas é mais simples — começámos por fazer uma pequena. Fiz um esboço, testámos a pequena; a questão de como é que se fazia os buracos, como é que se faz o acabamento”, explica Diana Borges.

Por isso, a colaboração entre imaginário e construtor é o que gera a obra. “Todas as peças passaram por um processo entre o que nós pretendíamos e o que os vidreiros conseguem fazer”, conta Bruno Escoval, que está por trás das peças Ripple e Caneleto da coleção Única.

É que “isto não é só o 'artglass' para galeria, onde às vezes é uma peça única”, prossegue. “Temos de ter a capacidade de utilizar esse 'know how' [conhecimento], mas sempre utilizando uma vertente de industrialização — não será industrialização, porque é manufatura — mas o poder repetir, dentro de certos limites, estas formas”.

Por isso, quando apresenta “modelações e tudo para eles visualizarem ao máximo, com desenhos técnicos — uma ferramenta muito objetiva para eles, que usam uns compassos e já sabem que [a boca da peça] tem o diâmetro tal e é importante eles verem os desenhos à escala”. Outra ferramenta é o giz: “Desenho no chão. Isto é sempre um processo, que às vezes é mais fácil, outras vezes é mais demorado, consoante o tipo de projeto”.

Mas eu sou um autodidata também”, atira o mestre Esteves. “Faço coisas que me vêm muito à cabeça”, completa, antes de voltar à boca do forno para arrancar da lava uma nova figura. “Um urso daqueles que andam lá na Sibéria”, explica, enquanto, com a mão nua por trás do ‘Record’.

Começa numa bola, vai-lhe puxando umas orelhas, uma cauda. Cava as patas, alinha o dorso. O bicho, que vai nascer em tons azulados, ainda vai vermelho, como se o fogo do forno ainda lhe estivesse no estômago.

Das chamas à zona fria

E vinda do fogo vivo, entra na arca. Arca que é um longo carreiro onde o mel que é o cristal quente entra para ganhar a consistência e resistência que lhe permite ser rijo. Quando chega à boca, do outro lado, já depois de ter aquecido e estar em processo de arrefecimento, entra numa nova parte da fábrica — a zona fria.

Fria por contraste. Fria só porque não estão 50 ºC, ao contrário do outro lado. Aqui, o vidro é processado a frio, num processo menos orgânico e mais mecânico.

Na Ripple, que vimos acompanhando, é aqui que lhe nascem as curvas (ripples, em inglês). Começa o cristal por ser embrulhado por uma espécie de aranha, cheia de patas em cuja ponta está uma caneta com uma tinta especial que lhe vai marcar as linhas de guia para o corte.

Dizer guia é ser otimista. Debaixo dos líquidos, quando a peça vai ao encontro das rodas diamantadas que lhe cortam a forma, gemer infinito, o operador pouco mais vê que o instinto que lhe vai dizendo: vira aqui, vira ali. Mais à esquerda, à direita. De igual modo com a pressão: mais força dá um corte mais fundo, menos força o oposto.

Depois do desbaste e eventuais acabamentos retificativos, chega o banho e o polimento. E por fim o batismo: debaixo de um jato de areia, não um prior mas um homem de luvas grossas, marca para sempre o nome daquele pedaço de cristal. O jato incide sobre um pedaço de plástico, colado com cuidado, e onde estão cortados os pormenores de cada letra. Depois de os grãos baterem no cristal, é tirado o decalque e está o vidro nomeado.


O jornalista viajou a convite da Vista Alegre