1
Maria Ana fechou à chave a porta da galeria de arte, voltou-se e contemplou a noite quente de setembro sem vontade para nada. Uns passos à frente, Isabel, a sua assistente, já se adiantava, destrancando o carro à distância e acenando.
— Até amanhã —, disse Maria Ana, retribuindo o aceno.
Viu-a entrar no carro, um daqueles pequenos citadinos elétricos cuja marca não saberia dizer, e partir acelerando o motor silencioso.
Deu por si a olhar para o bar no outro lado da rua e a ponderar ir até lá só para adiar um pouco o regresso a casa. Abrira a galeria há cinco anos, entusiasmada com o espaço enorme da loja, o pé-direito altíssimo, a fachada toda envidraçada. Tivera de fazer obras para converter um stand de automóveis falido numa galeria moderna, a Art Vinci, na rua da Boavista, que ficava bem perto do Mercado da Ribeira e da margem do Tejo, uma zona de prédios antigos e degradados que, com o virar do século, ganhara novo fôlego, iniciando um processo de recuperação, levando a que os modestos moradores de sempre passassem a partilhar do bairro com uma nova geração, e as lojas de bairro, a estar paredes-meias com os restaurantes sofisticados e com a agitação vibrante da vida noturna que atraía os mais endinheirados e os turistas. E, entretanto, tinham passado aqueles anos todos, e Maria Ana nunca entrara no bar que ficava mesmo em frente da galeria e que — reparou pela primeira vez — tinha um néon a tremeluzir no vidro escurecido da janela com o nome O Isqui Bar. Sem pensar mais, atravessou a rua.
Aos trinta e dois anos, Maria Ana perdera alguma da deslumbrante beleza que possuía antes de casar, há uma década. Casara muito nova com um homem dezasseis anos mais velho. Na altura, não tivera dúvidas, e ela sempre fora de ideias fixas, quando metia uma coisa na cabeça ninguém lha tirava. De modo que a frescura de outrora tinha vindo a dissolver-se impercetivelmente, muito por causa do feitio irascível do marido, que transformara o seu casamento num tormento de prepotência e agressividade gratuita, com tendência para se tornar cada vez mais abusiva. Contudo, ainda era uma mulher bonita, dona de uma graça e uma distinção próprias daquelas pessoas que se destacavam naturalmente em qualquer ambiente.
No seu posto atrás do balcão, o dono do bar olhou de soslaio para a porta da rua quando esta se abriu. E, no tempo de um piscar de olhos, registou a mulher alta que entrava, na casa dos trinta, cabelo castanho-claro, risco ao meio, envergando jeans de marca e camisa branca que faziam o termo «casual» perder todo o sentido no que se referia à elegância. Mulheres daquela categoria não apareciam todos os dias no seu bar, e menos ainda sozinhas.
Ele chamava-se Joaquim, na versão portuguesa do Gioacchino original que ficara inscrito no registo de nascimento na sua Calábria natal há trinta e três anos — Gioacchino Ferraro, ou Gio, como o tratavam em casa desde miúdo. De qualquer modo, ninguém o conhecia por nenhum desses nomes. Alguém o rebatizara por brincadeira com um informal Quinto, pouco depois de chegar a Lisboa sem falar uma palavra de português, e Quinto ficara até aos dias de hoje. Passada uma década atrás do balcão — confessionário de bêbedos e verborreicos incontinentes —, Quinto já falava praticamente como um nativo, se se lhe perdoasse o ligeiro sotaque que o traía quando entoava algumas palavras no inconfundível estilo italiano.
O ambiente do bar era algo intimista, iluminação suave, música calma, conversas sussurradas. Duas televisões sem som sintonizadas num canal desportivo, uma na parede atrás do balcão, por cima do espelho ao comprido, e a outra na parede lacada de verde-garrafa, ao fundo da sala. Sentados a uma mesa, um casal de namorados concentrados um no outro — mãos dadas, rostos juntinhos. Maria Ana teve um momento de indefinição entre as mesas à esquerda e o balcão à direita. Já arrependida de ter entrado, optou pelo balcão. Pelo menos, assim poderia tomar qualquer coisa rapidamente e sair. Sentou-se num banco alto. O barman, de costas para ela, preparava um cocktail sabia-se lá para quem. Olhou em redor só para confirmar a impressão inicial e viu a sala vazia e os namorados a levantarem-se. Bolas, pensou, dentro de momentos seria só ela e o barman no bar vazio. Bob Dylan arrastava-se numa daquelas músicas intermináveis — Hey, Mr. Tambourine Man, play a song for me... — e deprimentes, ainda mais antigas do que o bar. E este, definitivamente, já vira melhores dias há muitos, muitos anos. As mesas toscas de madeira, o soalho riscado, as manchas de humidade no teto, o pó nas garrafas atrás do balcão davam asas à imaginação. A julgar pelo aspeto geral, supôs que o recatado O Isqui Bar devia estar exatamente igual ao dia em que abrira as portas, há uns dez ou mais anos. Nem uma mesa a mais, nem uma cadeira a menos. Zero remodelações. É a primeira e última vez que ponho aqui os pés, pensou.
Os namorados passaram por trás de Maria Ana, o homem acenou ao barman, disse adeus, Quinto. Este voltou-se, retorquiu ciao, obrigado, ao mesmo tempo que colocou o cocktail à frente de Maria Ana sem lhe perguntar se o queria tomar. A porta da rua fechou-se, o casal já lá ia. Ela olhou espantada para a bebida.
— Eu não pedi isto — protestou.
— Não pediu, mas está com cara de quem precisa.
— Estou?
— Hum-hum...
A arrogância dele não lhe caiu bem. Temos um marialva armado em bom, pensou.
— E o que é isto? — perguntou, com ar desdenhoso, no tom e na cara.
— Vodka Martini.
Maria Ana deu um gole, fez uma expressão de indiferença resignada, bebeu o resto de um só trago. Quinto sorriu.
— Eu não lhe disse? Maria Ana não sorriu. — Disse.
Ele perguntou:
— Outro?
Ela deu-lhe uma resposta seca.
— Não, obrigada. Quanto é?
— Nada, é oferta da casa.
Ela encolheu os ombros, não fosse ele pensar que a impressionava com um Vodka Martini.
— OK, obrigada — disse, levantou-se, saiu.
Quinto ficou a ver a porta da rua a fechar-se devagar, empurrada pela força da mola, e, para lá do vidro, ela a afastar-se a passo firme, a atravessar a rua, a entrar num pequeno Mercedes Classe A prateado, e tudo isto sem voltar a cabeça uma única vez. E ele a abanar a cabeça, desconcertado, com um sorriso amarelo nos lábios, a pensar gira pra caraças, mas uma arrogante de merda.
Recolheu a taça do cocktail, lavou-a, acabou de arrumar o bar, recolheu umas quantas notas da caixa registadora e meteu-as no bolso. Em seguida, levantou a tampa lateral do balcão, saiu para a rua, trancou a porta, sentou-se no degrau da escada da entrada e tirou um maço de tabaco do bolso da camisa. Era o seu momento sagrado do dia, quando finalmente podia fumar o cigarro da paz — como ele lhe chamava — enquanto apreciava a tranquilidade noturna.
Ainda estava a pensar nela, porque lhe ficou entalado na garganta o seu desprezo pela simpatia dele. Sabia que era a dona da galeria da frente, pois já a vira muitas vezes ali na rua, e, embora não o admitisse a ninguém, tinha um fascínio secreto por pintura e sabia que na Art Vinci qualidade era coisa que não faltava. De vez em quando, dava uma espreitadela pela janela da galeria para admirar as telas expostas e ver se havia alguma novidade. O que não sabia, enfim, nem lhe ocorrera, era que ela tivesse uma personalidade altiva e pouco sociável. Supôs que, sendo dona de uma galeria de arte, só se relacionasse com gente rica e exigente, e que, nesse meio, a simpatia fosse a moeda de troca do negócio. E ele bem sabia que tratar mal os clientes não os trazia de volta.
Ergueu os olhos para o céu e conseguiu ver por cima dos prédios uma grande e deslumbrante lua cheia. Acabou de fumar o cigarro, deitou-o no cinzeiro pregado à parede a pensar nos clientes fumadores, levantou-se e foi a pé para casa. O prédio dele ficava duas portas para a esquerda a contar do bar. Eram pouco mais de uma dezena e meia de passos.
2
O ministro da Administração Interna saiu do edifício sem desarmar o sorriso, mas a pensar que os filhos da mãe dos jornalistas não o deixavam em paz. Pedro Macário avançou dois passos e ficou cercado por microfones e câmaras de televisão e repórteres excitados: Senhor ministro, confirma a notícia de que Vadim Sidorov manteve contactos consigo? O Governo vai cancelar o Visto Gold a Vadim Sidorov? Admite demitir-se? Vai demitir-se? Tem condições para permanecer no Governo?
E ele todo sorridente a furar pelos abutres e a responder- -lhes obrigado, senhores, obrigado, e a entrar no carro oficial por uma porta, enquanto Tomás Araújo, o seu assessor de imprensa, entrava pela outra.
— Filhos da puta — vociferou.
— É o carrossel da política — gracejou Tomás, a pensar que havia sempre um ministro na berlinda e que isso até era bastante conveniente para o primeiro-ministro, porque enquanto os jornalistas perseguiam os membros do seu Governo com perguntas inconvenientes, não era ele quem sofria com a má imprensa. E um ministro caído em desgraça podia ser substituído em qualquer altura. Mas o assessor não sabia da missa a metade, porque se soubesse não estaria tão descontraído.
Sentado mais tarde no sofá da sala em frente à televisão com o comando na mão, Pedro Macário aumentou o som quando se viu, numa reportagem de um canal de notícias por cabo, a furar pelos jornalistas e a entrar no automóvel. Não estou mal, pensou. O seu lado narcisista sempre mais atento à imagem do que ao conteúdo. O fato de marca escondia competentemente a barriga que começara a pressionar os botões da camisa desde que abandonara os jogos de padel com os amigos. Quarenta e oito anos, demasiados almoços de trabalho, muito álcool e pouco desporto, a receita clássica. Mas podia vangloriar-se de ter o cabelo todo. Liso, farto, castanho-claro, sem brancas e sem entradas. Além de falso magro, também era falso alto, só um bocadinho acima da média, mas de costas direitas e queixo levantado, parecendo olhar os outros de cima, com aquele ar de superioridade que o caracterizava. A reportagem na televisão ainda não terminara e o seu telemóvel já estava a tocar. Era Marcos Coutinho, chefe de gabinete, conselheiro político e homem de confiança. Voltou a baixar o som da televisão, atendeu.
— Dia difícil, não?
— Mais ou menos — respondeu o ministro —, mas eles hão de se cansar do assunto.
— Não sei, não. Estava aqui a ver-te na televisão e não me parece que o silêncio seja a melhor estratégia. É sempre melhor dar-lhes algumas migalhas. Diz-lhes só aquilo que pode ser verificável, que o Sidorov queria investir em Portugal, mas que o chutaste para canto e que a agência das migrações cumpriu todos os trâmites normais para a atribuição de um Visto Gold. Não houve tratamento de favor.
Lá fora, na varanda, a milhas de distância das preocupações políticas do marido, Maria Ana fumava um cigarro, admirando absorta a lua cheia, tão grande e luminosa que parecia estar perto. A varanda do apartamento, no último andar de um prédio de luxo — esquina do Campo Pequeno com a Avenida da República —, proporcionava uma deslumbrante vista panorâmica sobre Lisboa e permitia ver o céu limpo e estrelado nas noites de verão.
Por algum motivo que não saberia explicar — ou que não queria admitir a si própria —, a visita ao velho bar em frente à galeria tinha-lhe ficado na cabeça, e agora até lhe parecia que, apesar de tudo, o raio do bar tinha o seu encanto. Voltada para o parapeito, Maria Ana recordou com um sorriso sonhador a cara do tipo atrás do balcão quando ela se mostrara indiferente ao esforço dele para a agradar. E sim, tinha de reconhecer que ele era atraente: alto, cabelo muito curto, braços fortes, expressão cativante. Mas o sorriso desvaneceu-se no instante em que ouviu atrás de si a porta de vidro da varanda a deslizar e os passos do marido a aproximar-se. Maria Ana não se voltou. Pedro encostou-se a ela, abraçou-a, e os beijos no pescoço e o bafo a álcool a invadir-lhe as narinas provocaram-lhe um estremecimento de repugnância involuntário. O que foi?, perguntou ele entre dois beijos. Nada, disfarçou, contrariando o instinto com um falso gemido de prazer. As mãos dele subiram-lhe pela barriga e envolveram-lhe os seios. Ela inclinou a cabeça para trás, deixando-se beijar demoradamente, antes de o rejeitar com gentileza.
— Estou tão cansada, que só me apetece tomar um banho e dormir — disse, esquivando-se ao abraço dele e indo para dentro.
Mas Pedro já não queria parar o que começara e não estava disposto a engolir uma nega. De modo que foi atrás dela, alcançou-a na sala e tornou a abraçá-la por trás, recomeçando a beijá-la, surdo aos seus protestos, sedento de a possuir. Obrigou-a a voltar-se de frente para lhe abrir o botão das calças sem lhe dar ouvidos quando ela exclamou irritada porra, Pedro, já disse que agora não, porque lhe respondeu agora sim. E sem que ela o conseguisse impedir, baixou-lhe as calças e as cuecas com um puxão frenético e repetiu, mais para si do que para ela, agora sim. Arrebatado com a pressa de a ter, forçou-a a virar-se e a debruçar-se sobre o encosto do sofá e reteve-a nessa posição com uma mão apoiada nas costas dela, enquanto abria a braguilha com a outra. E Maria Ana, chocada com a brutalidade dele, desistiu de o contrariar quando o sentiu penetrá-la à força, e suportou a humilhação com lágrimas nos olhos, enquanto ele investia nela sem delicadeza. E depois de tudo terminar, de Pedro sossegar, de a sua mão afagar as costas dela num gesto de amor fingido, Maria Ana deixou a sala em silêncio e foi-se refugiar na casa de banho e meter-se debaixo do chuveiro, desolada e encolhida num pranto de raiva e de revolta.
Na sala, Pedro serviu-se de mais uma dose de uísque e abateu-se no sofá, satisfeito, com o comando da televisão na mão, a passar distraidamente pelos canais.
Quinto era um homem de rigorosas rotinas e hábitos frugais. Acordava cedo, ia direto para o duche, vestia jeans, camisa e ténis, roupa vulgar. Tomava sempre o pequeno-almoço em casa e saía por volta das onze horas. Morava sozinho, num prédio tão antigo quanto quase todos os daquela freguesia histórica que já vinha do século dezoito. Arrendava um extenso loft de cem metros quadrados, pé-direito alto, janelas enormes. O espaço era um pouco desolado, quase sem mobília, dir-se-ia típico do homem solteiro na casa dos trinta que gasta um monte de dinheiro a arrendar um apartamento demasiado grande para uma pessoa só, mas depois está-se nas tintas para a decoração. Tinha um sofá de quatro lugares, mas não tinha televisão, porque lhe bastava a que via no bar e porque pouco se interessava pelos canais italianos e menos ainda pelos portugueses. Um bom jogo de futebol sim, mas esses via-os no bar, que era onde podia assistir a um dérbi ou a um clássico rodeado de gente, com a malta toda a virar jolas e a torcer por este ou por aquele. Nos grandes jogos, o bar era como no estádio, cheio de clientes barulhentos, cachecóis e camisolas.
A Quinto também não se lhe conhecia amigos ou família. Esta, se a tinha, estava lá para Itália, embora ele fosse reservado sobre esse tópico e ninguém lhe ouvisse falar de pais, irmãos ou primos. Se lhe perguntavam alguma coisa, o máximo até onde ia era que nascera na Calábria, na biqueira da bota do mapa italiano, antes de desviar a conversa para outro tema qualquer. E quanto a amigos, bastavam-lhe os clientes habituais, que, embora não fossem exatamente o que se podia chamar de pessoas chegadas, já lhe davam água pela barba. Quinto aturava-lhes as bebe- deiras e os desabafos espontâneos sobre o dinheiro que lhes faltava para pagar a renda, o carro e a escola dos filhos, ou o raio da mulher que está sempre a foder-me os cornos ou a amante que não sabe manter-se no seu lugar. Uns queixavam-se do chefe, outros gabavam-se dos negócios que faziam. Os bêbedos eram tolerados, desde que não armassem confusão, os agarrados eram corridos, porque Quinto não queria que o bar ganhasse fama de ser mal frequentado. Drogados, traficantes e polícias manho- sos eram o género de clientela que destruía rapidamente a reputação de um estabelecimento e ele encarregava-se de os enxotar sempre que lhes tirava a pinta, ou porque havia cenas esquisitas de transações por baixo da mesa ou porque se fechavam na casa de banho para consumir. Eram todos corridos sem contemplações.
Também se contava uma história — contava-se, porque ele não abria a boca para confirmar coisa nenhuma e não dava confiança a ninguém para que lhe perguntassem se era verdade — que um dia lhe entraram pela porta dois mânfios muito educados, daqueles que não levantavam a voz enquanto se propunham extorquir uma batelada a um proprietário indefeso a troco de um acordo informal para lhe protegerem a casa. E se o dono do bar lhes respondia ingenuamente obrigado, mas não preciso dos vossos serviços porque não costumo ter problemas desses, eles iam-se embora com um tá-se bem, até à próxima, amigo, e depois enviavam os seus comparsas para armarem uma daquelas cenas de pancadaria de voarem cadeiras e partirem-se mesas, garrafas e cabeças. E no dia seguinte, lá voltavam os pachorrentos com a mesma proposta, agora que o proprietário já tinha problemas desses. De modo que, ao que se dizia, Quinto teria respondido aos dois tipos de T-shirt a rebentar pelas costuras com tanto músculo de ginásio, um careca, o outro de cabelo à tropa de elite, que ia pensar no assunto. E, ao que parecia, alguns dias mais tarde, os dois armários teriam tido um grave «acidente», atropelados por uma furgoneta branca quando atravessavam uma rua na passadeira, ou algo assim do género, porque não havia pormenores e a história não era clara, a não ser que, contava-se, os mânfios tinham passado uma longa temporada no hospital e Quinto não voltara a ser incomodado. Mas isto eram histórias que corriam, embora fosse difícil acreditar que alguém tão simpático e tão pacífico como Quinto fosse capaz de passar a ferro dois culturistas armados em gângsteres.
Quinto saiu de casa, desceu no velho elevador industrial, atravessou a rua e entrou na pequena tabacaria de vão de escada que ficava na entrada do prédio em frente. Demorou o seu tempo a conversar com o dono, um homem de idade com uma vida atrás do balcão rodeado de revistas penduradas. Depois, comprou cigarros, o jornal, despediu-se, saiu.
Caminhou lentamente pelo passeio com a descontração de quem não tinha pressa para coisa nenhuma. Esse era um dos privilégios da sua vida simples e solitária, sem mulher, sem filhos, sem família. As obrigações resumiam-se ao bar, que era seu praticamente desde que chegara a Lisboa. Comprara-o falido, encerrado e barato, no rescaldo da crise do subprime em 2008 e antes de o mercado imobiliário ter começado a recuperar e a valorizar estupidamente, com os preços a escalarem todos os meses a uma velocidade estonteante. Calhara bem, porque adquirira o bar no momento certo e agora valia o dobro ou o triplo do preço que pagara em dinheiro vivo, sem empréstimos, documentos e perguntas incómodas, toma lá, dá cá, acabou a conversa. De forma que era patrão de si próprio e não tinha de dar satisfações a ninguém. E apesar de poder não abrir a porta e ficar em casa ou a fazer o que lhe desse na real gana sempre que quisesse, Quinto ia trabalhar todos os dias e cumpria religiosamente o horário de abertura e o de encerramento. E, ao contrário do que seria de esperar, nunca se empenhara muito em expedições turísticas para explorar a cidade ou conhecer melhor o país. Aliás, raramente saía do bairro onde morava e trabalhava. As únicas exceções eram as incursões ocasionais a um ou outro museu para visitar exposições de pintura. De resto, era discreto, pouco curioso e nada dado a aventuras.
Aproximou-se da galeria e deteve-se em frente à grande fachada envidraçada. Estava ali a espreitar as novidades não passara nem um minuto quando lá dentro uma mão bateu no vidro e lhe fez sinal para entrar. Quinto hesitou, a pensar que estranho era ela chamá-lo assim alegremente quando na véspera se revelara fria e desinteressada, mas lá se dirigiu para a porta, quando mais não fosse por lhe parecer indelicado voltar costas e ir-se embora.
Maria Ana recebeu-o à porta com um bom-dia encantador e um sorriso de orelha a orelha, enquanto ele se espantava por ela parecer ter mudado da noite para o dia, como se não fosse a mesma pessoa que estivera sentada ao balcão do bar sem lhe mostrar os dentes uma única vez.
A galeria revelou-se enorme, ainda maior do que Quinto percecionara ao vê-la de fora. Era a primeira vez que ali entrava e ficou impressionado com o espaço aberto, minimalista, grandioso. Ao fundo, viu a assistente loura dela a orientar dois homens que penduravam uma tela numa das estruturas brancas alinhadas como muros falsos que se estendiam paralelamente ao longo da sala. Maria Ana explicou-lhe que estavam a preparar a inauguração de uma exposição para a próxima sexta-feira.
— Ainda temos aqui muito trabalho — disse, olhando na direção de um conjunto de caixotes de madeira, que Quinto presumiu serem telas por desembalar. Mas algumas já estavam penduradas e eles foram desfilando lentamente enquanto Quinto as apreciava com genuíno interesse. Pressentindo-lhe um olhar emocionado, perguntou-lhe se gostava de pintura contemporânea. Ele respondeu por acaso, até gosto, e ela penalizou-se mentalmente por ter sido preconceituosa, pois não imaginara o tipo do bar da frente interessado em obras de arte.
— Algum pintor em particular?
— Todos os que são bons.
Ela sorriu.
— Não tem preferências?
Ele encolheu os ombros e recitou:
— Baselitz, Miquel Barceló, Philippe Garel.
— Ah, estou a falar com um entendido.
— Um curioso, talvez.
— O que é que acha destes?
— São bons.
— Por acaso, são muito bons.
— É verdade, são muito bons.
— São de uma pintora portuguesa com muito talento.
Quinto observou demoradamente um autorretrato da autora em vários tons de cinza e preto com laivos de vermelho. Parecia tão concentrado, que Maria Ana duvidou de que ainda a estivesse a ouvir, de modo que se remeteu ao silêncio, espreitando-o pelo canto do olho, estudando-lhe os traços do rosto quase com a mesma atenção que ele devotava à tela. Uns longos segundos depois, Quinto olhou para ela como se tivesse despertado do transe e esboçou um sorriso embaraçado. Maria Ana adorou aquela expressão sincera de menino apanhado em falso e sorriu-lhe também.
Ela voltou-se, avançando para o quadro seguinte, Quinto seguiu-lhe o passo elegante em cima de umas sandálias atadas por tiras nos tornozelos. Vestia T-shirt creme e saia curta de cabedal. Virou-se para ele, rodando de uma forma talvez propositadamente graciosa, perguntou-lhe:
— Não quer vir à inauguração?
Ele hesitou, torceu o nariz, disse:
— Sexta-feira é dia de Benfica-Sporting e vou ter o bar cheio. Não vai dar para sair de lá.
— Talvez depois do jogo?
— Duvido.
Quando ele saiu, ela deixou-se ficar discretamente atrás do vidro a vê-lo atravessar a rua e entrar no bar. Sentiu um aperto no peito, um palpitar do coração, um frenesim na alma. O que é que tu estás a fazer, Maria Ana?, pensou.
— O que é que tu andas a preparar, amiga?
A voz atrás de si apanhou-a desprevenida. Levou a mão ao peito e disparou um protesto inocente.
— Credo, Isabel! Assustaste-me.
— É porque andas a fazer alguma.
— Ando lá agora a fazer alguma...
— O que é que o tipo do bar veio cá fazer?
— Estava lá fora a espreitar pela janela e eu convidei-o para entrar.
— Hum...
— Hum, nada. Vai trabalhar, anda.
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